“Meus olhos vos desejam acima de tudo”: a última vontade de Catarina de Aragão

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

1536 foi um ano bastante decisivo na vida de Henrique VIII, rei da Inglaterra, bem como para aqueles que estavam próximos de si. Desde 1531 que ele e sua primeira esposa, Catarina de Aragão, não mais se viam. A outrora rainha foi banida da corte, deixando seu lugar vacante para Ana Bolena, com quem o rei se casou em 1533. Agora, esta segunda rainha também corria risco de ser substituída por outra mulher, enquanto Catarina jazia moribunda no castelo de Kimbolton. Há muito tempo que sua saúde vinha se deteriorando, devido, em parte, às condições insalubres das muitas casas em que residiu após o seu banimento da corte e também aos constantes abalos emocionais que sofreu por causa do tratamento hostil que Henrique lhe dispensava. Com o rompimento da igreja inglesa com a Sé de Roma, a filha da poderosa Isabel I de Castela foi privada do seu título régio, do seu séquito de damas, de seus rendimentos e, o pior de tudo, da companhia de sua única filha viva, Maria. A menos que ela reconhecesse a suposta invalidade do seu casamento, permaneceria relegada pelo rei. Catarina, porém, não estava disposta a se submeter a tal exigência. Para ela, continuava sendo a única e verdadeira esposa de Henrique VIII e rainha da Inglaterra.

Entretanto, os anos de luta cobraram seu preço no corpo daquela mulher, que em 16 de dezembro de 1535 completou 50 anos de idade. Nos primeiros dias de 1536 ela já podia sentir que o fim estava próximo e, portanto, tomou as medidas necessárias para preparar a passagem de sua alma. Impedida de ficar ao lado daqueles que lhe eram queridos, Catarina de Aragão ao menos teve o conforto de conversar longamente com seu conterrâneo, o embaixador imperial Eustace Chapuys, que partiu de Kimbolton em 4 de janeiro deixando a tia do seu senhor, imperador Carlos V, aos cuidados da fiel amiga, Maria de Salinas, que viajou da Espanha junto com Catarina em 1501. O diplomata recordou que, na sua última conversa com a rainha, ele a viu sorrir “duas ou três vezes, e depois de a deixar ela estava sendo entretida por uma das pessoas que deixei para diverti-la”. De acordo com Chapuys, Catarina estava aparentemente bem quando ele regressou a Londres, mas dois dias depois sua saúde voltou a piorar. Teria sido esse o momento em que ela fez seus últimos desejos e ditou uma carta endereçada àquele que ela sempre considerou seu marido, independentemente das afirmações contrárias feitas pelo mesmo.

O embaixador imperial, Eustace Chapuys, visita Catarina de Aragão em seu leito de doente.

O embaixador imperial, Eustace Chapuys, visita Catarina de Aragão em seu leito de doente.

A missiva, muito tocante, começava com um conselho a Henrique VIII, censurando-o por seu comportamento nos últimos anos:

Meu caríssimo senhor, rei e marido,

Aproximando-se a hora da minha morte, eu não posso pelo amor que vos tenho, deixar de recomendar-vos a salvação da vossa alma, que deveis preferir a todas as considerações do mundo ou da carne, quaisquer que sejam. Pelas quais, todavia, causaste tantas desventuras a mim, e tantos embaraços a vós mesmo…”

Nestas poucas linhas, Catarina de Aragão dizia muito mais do que estava exposto. Ela exortava Henrique a se arrepender de seus atos (especialmente do rompimento com a Igreja Católica), para salvar o reino e sua própria alma imortal da ira divina. Como o rei era considerado um representante de Deus em seus próprios domínios, Catarina temia que o pai de sua filha tivesse incorrido em danação por colocar as “considerações do mundo ou da carne” acima das espirituais. Aqui, ela talvez fazia uma alusão ao desejo do monarca por tomar Ana Bolena como esposa e à obsessão dele por um herdeiro do sexo masculino, motivos pelos quais ele causou “tantas desventuras” para a sua primeira rainha. Naquele momento, é possível que a missivista soubesse que o rei já estava se cansando de Ana e enamorado de uma jovem chamada Jane Seymour, ex-dama do séquito de Catarina. Com a Inglaterra dividida pelo movimento reformista, à beira de uma guerra civil e sem o tão sonhado herdeiro varão por quem Henrique VIII fizera tudo aquilo, o rei constatou com frustração que seus propósitos não haviam se concretizado, provocado apenas “embaraços” para si mesmo.

…Mas eu vos perdoo tudo e peço a Deus que faça outro tanto. Quanto ao mais, recomendo-vos Maria, nossa filha, suplicando-vos que sejais para ela um bom pai, como eu até aqui tenho desejado…

Na sequência da carta, Catarina de Aragão dizia ao rei que, apesar de ter causado “tantas desventuras a mim”, o perdoava, como aliás sempre fizera nos seus anos de mútuo convívio. O tom que ela utiliza neste documento se assemelha mais ao de uma mãe para com seu filho, do que uma esposa ao seu marido. Sendo 6 anos mais velha que Henrique, é provável que com o passar do tempo Catarina tivesse ocupado nas afeições do monarca o lugar que outrora pertenceu a Isabel de York. Ele estava disposto a ajudar a viúva do seu irmão Arthur, caso ela consentisse na anulação do seu segundo casamento. A rainha, por sua vez, jamais aceitou essa separação ou deixou de gostar do rei. Todavia, aconselhava sua filha Maria que se submetesse à vontade do pai, desde que “não ofenda a Deus e perca a sua alma”, ou seja, desde que não mudasse de religião e reconhecesse um estatuto que a transformava em bastarda. Catarina pediu ao pai de Maria nesta carta para que fosse gentil com ela, “como eu até aqui tenho desejado”. Infelizmente, a jovem tinha perdido o título de princesa e foi rebaixada à condição de dama de companhia de sua meia-irmã, Elizabeth. Mas não era apenas a filha sua única preocupação:

…. Devo pedir-vos também que respeitai as minhas donzelas, e lhes deis maridos, o que não é muito, porque não passam de três; e a todos os outros meus servidores dai, além do que lhes é devido, um ano de salário, pois senão se achariam em necessidade. Finalmente, juro-vos que meus olhos vos desejam acima de tudo. Adeus.

Como punição por não se submeter à sua vontade, Henrique VIII castigou Catarina de Aragão: despediu quase todos os seus criados, cortou sua mesada e a manteve afastada dos súditos para evitar a comoção popular. Contudo, Catarina era uma mulher bastante querida pelo povo e aqueles que permaneceram ao seu lado o fizeram por vontade própria, pois não recebiam salários pelos serviços prestados. Apesar de o rei ter ordenado que ela fosse tratada como “princesa viúva de Gales”, seus servos continuavam a chama-la de rainha, colocando assim suas vidas em risco. Dessa forma, é natural que ela se lembrasse deles nesta última carta e pedisse bons casamentos para as suas damas, que eram Blanche e Isabel de Vergas e Elizabeth Darrell. Foram estas mulheres que forneceram a Chapuys o relato dos últimos momentos de vida de Catarina de Aragão e é graças a elas e a Maria de Salinas que sabemos de todos esses detalhes. Por fim, a missivista terminava a carta expressando um desejo que, na opinião de Antonia Fraser, é quase patético: o de ver o marido novamente. Faziam quase 5 anos que ela e Henrique não se encontravam e mesmo assim ela continuava a atender as vontades do rei, exceto na questão da anulação do casamento.

Cena da morte de Catarina de Aragão, extraída da segunda temporada de The Tudors (2008).

Cena da morte de Catarina de Aragão, extraída da segunda temporada de The Tudors (2008).

Após ditar essa carta, Catarina de Aragão, ajudada por uma de suas damas, conseguiu colocar sua assinatura no papel: “Katherine The Queen”, em claro desafio à lei que a rebaixava à posição de “princesa viúva”. Logo em seguida, ela teve uma forte recaída. Sequer conseguia comer ou beber alguma coisa sozinha. De noite, reuniu forças suficientes para pentear os cabelos grisalhos e amarra-los. Em seguida, solicitou a presença do seu médico, dom Miguel de Sá, pedindo que este lhe falasse a verdade acerca de sua condição. Sem ter como negar, dom Miguel disse com franqueza: “Madame, a senhora vai morrer”. A resposta do médico apenas confirmou o que Catarina já sabia.  Diante disso, ela expressou o desejo de que fosse enterrada no convento dos Frades Observantes, embora a ordem tivesse sido suprimida na Inglaterra pouco tempo antes. Ela também pediu para que 500 missas fossem rezadas pela sua alma e que alguém fizesse uma peregrinação ao santuário de Nossa Senhora de Walsingham (que logo seria demolido) em seu nome. A rainha tinha poucos pertences, mas deixou para a filha Maria “o colar de ouro que eu trouxe comigo da Espanha” e suas peles. Infortunadamente, estes itens seriam confiscados pelo rei.

Na madrugada de 7 de janeiro, Catarina pediu para o seu capelão, Jorge Athequa, bispo de Llandaff, que ouvisse a sua confissão, antecipando assim a hora canônica. Às 10 da manhã, ela recebeu a extrema-unção, fazendo com suas damas uma oração “que teria partido qualquer coração”, pedindo perdão a Deus “para o rei, seu marido, pelo mal que ele lhe fizera”. As horas se arrastaram por mais um pouco e quando deu duas da tarde, ela disse aquelas palavras finais proferidas por Cristo e com as quais todo católico da época desejava morrer: In manus tuas, Domine, comendo spiritum meum (Em tuas mãos, Deus, entrego a minha alma). Pouco depois, faleceu, assistida pela amiga Maria de Salinas. Sua morte causou verdadeira comoção popular, mas uma última humilhação lhe estava reservada, pois Catarina não seria enterrada como rainha da Inglaterra, e sim como “princesa viúva de Gales”, um título que ela rejeitou a vida toda. Tampouco foi sepultada no convento dos Frades Observantes, mas na catedral de Peterborough, local onde jaz até hoje. Chapuys, que recebeu a notícia da morte de sua senhora no dia 9, se recusou a comparecer ao cortejo fúnebre, por causa das honras de princesa viúva prestadas a ela.

Túmulo de Catarina de Aragão na catedral de Peterborough. As letras em dourado, que dizem "Rainha Catarina da Inglaterra", foram um presente de Mary de Teck, esposa do futuro rei George V.

Túmulo de Catarina de Aragão na catedral de Peterborough. As letras em dourado, que dizem “Rainha Catarina da Inglaterra”, foram um presente de Mary de Teck, esposa do futuro rei George V.

Rumores de que Catarina de Aragão teria sido envenenada por Ana Bolena logo começaram a surgir. De acordo com a autópsia do cadáver, seus órgãos internos estavam normais, exceto o coração, que estava muito negro e deformado, o que corroborou para a hipótese de envenenamento. Contudo, opiniões médicas recentes apontam para o fato de que a rainha provavelmente tinha um tumor maligno no coração. Alguns anos depois, o texto de sua última carta começou a circular entre os católicos romanos. De acordo com seu biógrafo, Giles Tremlett, é possível que a missiva seja falsa, tendo sido forjada com base nos relatos de seus últimos instantes de vida para atestar o veredito de culpa contra Henrique VIII. Por outro lado, de acordo com a lei inglesa, uma mulher casada não podia fazer um testamento, então a única alternativa para Catarina seria elaborar uma lista de súplicas para o rei, na esperança de que fossem atendidas. Sendo assim, temos um forte indício da veracidade do documento. Em todo caso, o conteúdo da carta, conforme apresentado neste texto, estava em perfeita sintonia com os sentimentos de Catarina naqueles momentos. O documento se configura num testemunho coerente do caráter daquela princesa de Aragão e Castela, que até o fim da vida foi uma mulher piedosa, leal, compassiva e corajosa.

Referências Bibliográficas:

FRASER, Antonia. As Seis Mulheres de Henrique VIII. Tradução de Luiz Carlos Do Nascimento E Silva. 2ª edição. Rio de Janeiro: Record, 1996.

HACKETT, Francis. Henrique VIII. Tradução de Carlos Domingues. – São Paulo: Pongetti, [1950].

MATTINGLY, Garrett. Catalina de Aragón. Tradução de Ramón de La Serna – Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1942.

TREMLETT, Giles. Catherine of Aragon: The Spanish Queen of Henry VIII. – Pennsylvania: Walker & Company, 2010.

WEIR, Alison. The Six Wives of Henry VIII.  – New York: Grove Press, 1992.

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