Memória coletiva e memória histórica na obra de Maurice Halbwachs

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

O texto que se segue pretende analisar alguns dos conceitos abordados por Maurice Halbwachs em seu livro A Memória Coletiva, publicado pela primeira vez em 1950. Sociólogo francês que compôs seus principais trabalhos durante a primeira metade do século XX, até que a Segunda Guerra Mundial lhe ceifou a vida em 1945, Halbwachs revolucionou o pensamento de sua época ao afirmar que o fenômeno da recordação e da localização das lembranças não pode ser percebido e analisado se não forem levados em consideração os contextos sociais que servem de base para a reconstrução da memória. Esta última pode ser interpretada como as reminiscências do passado que reaparecem no presente, no pensamento de cada indivíduo, ou como a nossa capacidade de armazenar certa quantidade de informações concernentes a fatos que foram vividos no passado. Uma vez que a lembrança necessita de uma comunidade afetiva, construída graças ao nosso convívio social com outras pessoas, para tomar consistência, podemos então basear nossa impressão nas lembranças de outros indivíduos que compõem o mesmo grupo no qual estamos inseridos para reforçar, enfraquecer, ou mesmo completar a nossa própria percepção dos acontecimentos.

Maurice Halbwachs

Maurice Halbwachs

Para Maurice Halbwachs, por mais que tenhamos a percepção de ter vivenciado eventos e contemplado abjetos que somente nós vimos, ainda assim nossas lembranças permanecem coletivas e podem ser evocadas por outros. Isso porque, como afirma o autor, jamais estamos sós, mesmo quando os outros não estejam fisicamente presentes, pois os carregamos conosco em pensamento. “Para confirmar ou recordar uma lembrança, não são necessários testemunhos no sentido literal da palavra, ou seja, indivíduos presentes sob uma forma material e sensível” (HALBWACHS, 2013, p. 31). Contudo, para que se possa recordar de um evento passado, não basta que ele seja evocado por outros para que possamos lembra-lo. É preciso que o indivíduo traga consigo uma espécie de semente de rememoração para que todos esses conjuntos de testemunhos exteriores se transformem numa massa consistente de lembranças. Quando ocorre de não nos recordarmos do evento narrado por aqueles que, assim como nós, estiveram presentes na ocorrência do mesmo, podemos então dizer que um elo se rompeu entre nós e o grupo do qual fazíamos parte.

Assim, para se recordar, é preciso que o nosso pensamento não deixe de concordar, em certo sentido, com os pensamentos dos outros membros do grupo. Dessa forma, explica o autor, esquecer determinado período de nossa vida é também perder o contato com aqueles então que nos rodeavam. Para Maurice Halbwachs:

Não basta reconstituir pedaço por pedaço a imagem de um acontecimento passado para obter uma lembrança. É preciso que esta reconstituição funcione a partir de dados ou de noções comuns que estejam em nosso espírito e também no dos outros, porque elas estão sempre passando destes para aqueles e vice-versa, o que será possível se somente tiverem feito e continuarem fazendo parte de uma mesma sociedade, de um mesmo grupo (HALBWACHS, 2013, p. 39).

Apenas nessas condições uma lembrança poderá ser ao mesmo tempo reconhecida e reconstituída. Só se pode falar em memória coletiva a partir do momento em que evocamos um evento que teve lugar na vida de nosso grupo.

Para o autor, ao lado de uma memória coletiva (definida por Pierre Nora como o que fica do passado no vivido dos grupos, ou o que os grupos fazem do passado) podemos identificar outra aparentemente individual, que, como disse Jean Duvignaud em prefácio à obra de Halbwachs, “está enraizada em diferentes contextos que a simultaneidade ou a contingência aproxima por um instante”. Dessa forma, “a rememoração pessoal está situada na encruzilhada das redes de solidariedade múltiplas em que estamos envolvidos” (2013, p. 12). A memória individual pode ser entendida, assim, como um ponto de vista sobre a memória coletiva, mas este pode se alterar de acordo com o lugar em que ocupamos em determinado grupo e condicionado às relações que mantemos com outros ambientes. Por outro lado, “se a memória coletiva tira sua força e sua duração por ter como base um conjunto de pessoas, são os indivíduos que se lembram, enquanto integrantes do grupo” (HALBWACHS, 2013, p. 69). Cada membro do grupo percebe essa massa de lembranças transportadas pela memória coletiva com maior ou menor intensidade, partindo de seu próprio ponto de vista.

A memória coletiva, por sua vez, engloba as memórias individuais, mas não se confunde com elas, evoluindo conforme suas leis. Quando ocorre de determinadas lembranças individuais a invadirem, estas mudam de aspecto na medida em que “são substituídas em um conjunto que não é mais uma consciência pessoal” (HALBWACHS, 2013, p. 72). Quanto à memória individual, diz Maurice Halbwachs:

Ela não está inteiramente isolada e fechada. Para evocar seu próprio passado, em geral a pessoa precisa recorrer às lembranças de outras, e se transportar a pontos de referência que existem fora de si, determinados pela sociedade. Mais do que isso, o funcionamento da memória individual não é possível sem esses instrumentos que são as palavras e as ideias, que o indivíduo não inventou, mas toma emprestado de seu ambiente (HALBWACHS, 2013, p. 72).

Com efeito, as lembranças que se destacam em primeiro plano na memória de um grupo são aqueles que foram vivenciadas por uma maior quantidade de seus membros. Já as relacionadas a um número menor estariam em segundo plano, na medida em que são evocadas pelo grupo apenas em condições específicas. Não obstante, um grupo mantém relações com outros grupos e a partir desse contato resultam muitos acontecimentos e também muitas ideias. Em alguns casos, tais relações são permanentes ou se repetem com frequência durante muito tempo.

"É preciso que o indivíduo traga consigo uma espécie de semente de rememoração para que todos esses conjuntos de testemunhos exteriores se transformem numa massa consistente de lembranças".

“É preciso que o indivíduo traga consigo uma espécie de semente de rememoração para que todos esses conjuntos de testemunhos exteriores se transformem numa massa consistente de lembranças”.

Para além dos conceitos de memória individual ou coletiva, podemos classificar a memória de outra forma: pessoal e a outra social; ou ainda, memória autobiográfica e memória histórica. A primeira delas receberia uma ajuda da segunda, já que a nossa história pessoal também faz parte da história em geral.  Esta última seria bem mais extensa, representando para nós o passado de forma resumida e esquemática, enquanto a memória de nossa vida nos apresentaria do passado um panorama mais denso e contínuo. Na opinião de Maurice Halbwachs, nossa memória se apega mais ao fato vivido do que aquele que entremos em contato através dos livros.  A menos que tenha alguma relação dinâmica com o tempo vivido, a história se assemelha para o autor como uma espécie de cemitério, tão pobre e vazio de sentido como as inscrições nas lápides dos túmulos e onde se estaria o tempo todo procurando espaço para novas sepulturas.  Não obstante, por história não podemos entender apenas como uma sucessão cronológica de acontecimentos, “mas tudo o que faz com que um período se distinga dos outros, do qual os livros e as narrativas em geral nos apresentam apenas um quadro muito esquemático e incompleto” (HALBWACHS, 2013, p. 79).

Por outro lado, é através da memória histórica que um fato exterior à nossa vida deixa sua impressão em determinado dia ou hora e é a partir dessa impressão que recordamos esse momento. Nós ainda conseguimos nos identificar com momentos anteriores a nossa existência na medida em que eles foram vividos por outros membros do grupo ao qual fazemos parte. Na família, esse papel é mais bem representado pela figura dos avós, que transmitem aos netos suas experiências, possibilitando com que estes reconstituam o contexto social vivido por aqueles, “mas com o relevo e a cor de um personagem que está no centro de todo um quadro, que o resume e o condensa” (HALBWACHS, 2013, p. 85). Desse modo, compreendemos o que o autor quer dizer ao afirmar que ao lado de uma história escrita, há o que ele denomina de uma história viva, onde podemos encontrar sempre um número grande de certas correntes antigas que aparentemente desapareceram.

Qualquer ambiente, estado de pensamento, ou sensibilidades de outrora carregam consigo impressões e vestígios sem os quais não conseguiríamos reconstruir o quadro de uma época. A lembrança, nesse sentido, pode ser entendida como “uma reconstrução do passado com a ajuda de dados tomados de empréstimo ao presente e preparados por outras reconstruções feitas em épocas anteriores”, da qual “a imagem de outrora já saiu bastante alterada” (HALBWACHS, 2013, p. 91). As novas imagens do passado recobrem, assim, as antigas e é necessário que nossas lembranças se renovem e se complementem, enquanto nos sentimos mais envolvidos nos grupos e participando das suas memórias de forma mais estreita. Os grupos, nesse processo, teriam um papel protagonista na atualização e complementação de nossas lembranças a partir do confronto de testemunhos entre seus membros. Ao contrário do que Bergson postulou, o nosso passado não subsiste intacto em alguma galeria subterrânea do nosso pensamento. Maurice Halbwachs afirma que é na sociedade onde “todas as indicações necessárias pera reconstruir tais partes de nosso passado que representamos de modo incompleto ou indistinto, e que até acreditamos terem saído inteiramente da nossa memória” (HALBWACHS, 2013, p. 97).

Diante de tais considerações podemos entender que memória coletiva e história são duas esferas que não se confundem. Para Maurice Halbwachs:

A história é a compilação dos fatos que ocuparam maior lugar na memória dos homens. No entanto, lidos nos livros, ensinados e aprendidos nas escolas, os acontecimentos passados são selecionados, comparados e classificados segundo necessidades ou regras que não se impunham aos círculos dos homens que por muito tempo foram seu repositório vivo. Em geral a história só começa no ponto em que termina a tradição, momento em que se apaga ou se decompõe a memória social (HALBWACHS, 2013, p. 100-1).

A memória, na concepção do autor, ainda se distinguiria da história sob pelo menos dois aspectos: primeiro que ela é uma corrente de pensamento contínuo, que nada tem de artificial e que não ultrapassa os limites do grupo, enquanto na história se tem a impressão de que de um período a outro, tudo se renova. O outro ponto de diferenciação no pensamento de Halbwachs é que existem muitas memórias coletivas, enquanto a história se pretende universal. Não obstante, enquanto a memória leva em consideração, em primeiro plano, as semelhanças, a história se baseia nas diferenças.

Neste breve esboço do pensamento de Maurice Halbwachs, contido no livro A Memória Coletiva, objetivamos discutir os conceitos por ele trabalhados, reservando algumas críticas às suas ideias para o final. Primeiramente, Halbwachs pouco ou quase nada fala das relações de poder que se estabelecem entre os grupos e como a memória foi por muito tempo um recurso utilizado para legitimar o poder de algumas classes sociais em detrimento de outras. Hoje, os estudos da memória democratizaram-se, de modo que vários grupos, independente de status econômico ou etnia, se sentem compelidos a buscar suas origens. Outro problema se dá na questão da transmissão das lembranças dos mais velhos aos mais jovens, que segundo Marc Bloch estaria suscetível a enganos provocados pela narrativa e também de falseamento.

Edição brasileira de "A Memória Coletiva", escrito por Maurice Halbwachs (editora Centauro).

Edição brasileira de “A Memória Coletiva”, escrito por Maurice Halbwachs (editora Centauro).

Além disso, a concepção do autor da história como um cemitério onde se estariam o tempo todo procurando lugares para novas sepulturas já foi contesta por historiadores como o próprio Marc Bloch, para o qual os motivos que nos movem a olhar para o passado estão sempre no presente. Dessa forma, tanto a história quanto a memória só fariam sentido mediante certas determinações do presente. Todavia, Halbwachs deve ser analisado antes de tudo como homem de seu tempo, para quem algumas concepções acerca da história (campo que na primeira metade do século XX ainda passava por um processo de questionamento de suas abordagens, métodos e objetos) poderiam ser desconhecidas. Por fim, salientamos que as contribuições do trabalho do autor para o estudo das memórias individuais e coletivas, são indispensáveis para as ciências humanas (especialmente para os campos da sociologia, psicologia, antropologia e da história), por oferecerem um rico painel sobre as identidades e como a memória se constitui num elo de pertença entre os grupos, ligando o passado ao presente e prestando um relevante serviço ao futuro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CASADEI, Eliza Bachega. Maurice Halbwachs e Marc Bloch em torno do conceito de memória coletiva. In: Revista Espaço Acadêmico, n° 18, maio de 2010, p. 153 a 161.

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Tradução de Beatriz Sidou.  2ª ed. São Paulo: Ed. Centauro, 2013.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. Tradução de Bernrado Leitão. – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1994.

NORA, Pierre. Entre a memória e a história: a problemática dos lugares. In: Projeto História, n° 10, p. 7-28, dez. 1993.

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