Por: Renato Drummond Tapioca Neto
Viena, 2 de novembro de 1755. Maria Teresa, rainha de Hungria por herança e imperatriz do Sacro Império Romano por casamento, entrava em trabalho de parto pela 15ª vez em sua vida. Aos 38 anos, ela e seu marido, o imperador Francisco I, já tinham produzido quatro arquiduques e dez arquiduquesas (das quais sete sobreviveram até aquele ano, uma taxa bastante elevada, se considerarmos os padrões de mortalidade infantil da época). Dessa forma, a experiência do parto não se constituía em novidade alguma para aquela soberana. Instalada no Palácio Hofburg, onde os Habsburgo residiam desde o final do século XIII, seus aposentos ficavam no primeiro andar da conhecida ala Leopoldina, que hoje fazem parte dos escritórios do presidente austríaco. Ali nasceu uma das personalidades mais famosas da história ocidental, destinada a viver momentos de extrema alegria e outros de profunda tristeza. Quem, naquele Dia de Finados, imaginaria que a 11ª filha do casal de imperadores seria protagonista da maior de todas as revoluções europeias, falecendo de uma forma tão sanguinária?

Retrato de Maria Teresa segurando uma máscara, por Martin van Meytens (c. 1744).
O nascimento de uma filha, por sua vez, não constituía um desapontamento para Maria Teresa. Seu destino seria, então, o mesmo do de suas irmãs mais velhas e de outras princesas austríacas antes dela: ser usada como um elemento de negociação nos arranjos matrimoniais envolvendo os Habsburgo e outras casas dinásticas do continente. Contudo, havia quem apostasse que a criança que a imperatriz carregava era um menino. O Conde Dietrichstein, por exemplo, chegou a apostar que aquele novo bebê era do sexo masculino. Para, para desapontamento do nobre, às 08h30min da noite daquele dia, a rainha-imperatriz deu à luz uma garotinha, ou, como escreveu em seu diário o Conde Khevenhüller, camareiro da corte e a quem devemos muito sobre os relatos daquele dia, “Sua Majestade deu à luz com muita alegria uma pequena arquiduquesa, pequena mas totalmente saudável”. Mal a criança havia nascido e Maria Teresa, até mesmo antes disso, tratou de se dedicar aos assuntos de Estado. Como ela gostava de dizer: “Os meus súditos são os meus primeiros filhos”(apud FRASER, 2009, p. 22).
Evelyne Lever, autora da biografia Maria Antonieta: a última Rainha da França, conta que por ocasião do parto de sua 11ª filha, a rainha-imperatriz, mulher que detestava perder tempo, aproveitou para extrair um dente deteriorado. Após essa operação, “ela se acomodou na poltrona baixa de braços, na qual, segundo o costume alemão, daria à luz a criança” (2004, p. 11). O Imperador Francisco, no momento em que sua esposa sentiu as primeiras dores, estava assistindo a missa finados com o filho José, na Igreja de Santo Agostinho, quando foi avisado de que o parto era iminente. Depois de deixar o arquiduque em seu apartamento, ele se juntou a outros cavalheiros e damas reunidos na Sala dos Espelhos para aguardar notícias da situação da soberana. Aqueles nobres, que antes tinham direito de assistir ao parto real, tradição comum em outras cortes, tiveram que permanecer do lado de fora: “Maria Teresa fora firme ao dar fim à prática, tão desagradável para a parturiente (mas ainda em vigor na corte de Versalhes), em que estes cortesãos ficavam realmente presentes na sala de parto” (FRASER, 2009, p. 21).

Retrato do Imperador Francisco I, atribuído a Martin van Meytens.
Com efeito, todas aquelas pessoas teriam que se contentar em apenas congratular o feliz pai enquanto a mãe, mal terminado o parto, tratava de assinar documentos ainda em seu leito. Apenas quatro dias depois as damas, que de acordo com o protocolo deveriam estar presentes no quarto de dormir, tiveram permissão para beijar a imperatriz. Os demais, incluindo o próprio Khevenhüller, receberam o mesmo privilégio no dia 8 de novembro e mais um grupo no dia seguinte. “Talvez fosse o tamanho pequeno do bebê, talvez o efeito terapêutico de trabalhar em seus papeis durante o dia”, explica Antonia Fraser, “mas Maria Teresa nunca parecera tão bem depois de um parto” (2009, p. 21). Logo após vir ao mundo, a pequena arquiduquesa foi entregue aos cuidados de uma ama de leite oficial, uma vez que grandes damas não amamentavam seus próprios filhos[1]. A criança foi deixada aos cuidados de Constance Weber, esposa de um magistrado. Constance, por sua vez, também estava amamentando seu filho José há três meses quando recebeu a princesinha. Como irmão de leite de uma arquiduquesa, José Weber e sua família se beneficiaram durante muito tempo. Maria Teresa e sua filha costumam vista-los, levando presentes para todas as crianças.
Porém, se o nascimento de uma oitava filha viva não era motivo de tristeza para Maria Teresa e Francisco I, voltemos a nossa atenção para a data propriamente dita: 2 de novembro, o Dia de Finados católico, em que os mortos eram lembrados numa série de missas solenes, em igrejas e capelas forradas com cortinas negras. Como diz Antonia Fraser,
Na verdade isso fez com que, durante a infância de Maria Antonieta, o seu aniversário fosse comemorado na véspera, Dia de Todos os Santos, um dia de branco e dourado. Além disso, 13 de junho, dia de seu padroeiro Santo Antônio, tendia a ser visto como o dia da festa pessoal de Maria Antonieta, assim como o dia de Santa Teresa d’Ávila, 15 de outubro, era o dia da santa padroeira de sua mãe (2009, p. 23).
Segundo os cálculos desta biógrafa, é possível que aquele bebê tivesse sido concebido perto de uma data muito mais festiva da igreja, na tradicional comemoração da purificação da Virgem Maria, em 2 de fevereiro. Foi também durante o período de gestação que o compositor Christoph Willibald Gluck havia sido contrato por Maria Teresa, em abril, para compor “música teatral de câmara” em troca de um salário oficial. Sua posse no cargo ocorreu em 5 de maio daquele ano, numa baile dado no palácio de Laxenburg. Para Fraser, “pode-se dizer literalmente que dois gostos que se firmaram em Maria Antonieta – o amor pelo palácio ‘de férias’ de Laxenburg e o amor pela música de Gluck – foram-lhe inculcados no ventre da mãe” (2009, p. 23).

Maria Antonieta recém-nascida, em 1755 (artista desconhecido).
Por outro lado, pouca atenção se deu ao fato de que naquele mesmo Dia de Finados, um grande terremoto devastou a cidade de Lisboa, deixando mais de 30.000 mortos. Como as notícias demoravam semanas para percorrer as cortes europeias, as celebrações do batizado da pequena arquiduquesa ocorreram de acordo com o protocolo, sem quaisquer perturbações, a despeito da ausência dos padrinhos: o rei e a rainha de Portugal[2]. De qualquer forma, não era esperado que comparecessem à cerimônia, visto que era costume em tais ocasiões se nomearem representantes. Os escolhidos, por sua vez, foram os próprios irmãos da criança: José e Maria Ana. Maria Teresa, entretanto, não estava presente no evento ocorrido na Igreja dos Frades Agostinianos, pois, de acordo com a etiqueta, os bastimos eram realizados bem depressa e na ausência da mãe, que permanecia repousando em decorrência do parto. Francisco I seguia com um cortejo até a Igreja, onde a família real sentou-se em fila ao longo de um banco comprido, para assistir ao batismo, oficiado pelo Arcebispo. Após a cerimônia, foram dadas festas de gala, que se arrastaram até o dia 4 de novembro e nos dois dias seguintes foram apresentados dois espetáculos gratuitos ao público, conforme ditava o ritual consagrado para aquelas ocasiões.
Com efeito, o nome escolhido para a pequena arquiduquesa foi Maria Antonia Josefa Joana. Mas, “como os nomes de todas as arquiduquesas começavam por Maria, em geral elas passavam a ser conhecidas pelo segundo nome. Maria Teresa se referia à sua filha mais moça como Antônia. Os franceses a chamaram Marie Antoinette” (LEVER, 2004, p. 11)[3]. Dentro da família, a criança ficou conhecida como Antoine. Como ressalta Antonia Fraser,
O diminutivo francês do nome de batismo, Antoine, era significativo. A sociedade vienense era poliglota – todos conseguiam se fazer entender com facilidade em italiano e espanhol assim como em alemão e francês. Mas o francês, reconhecido como idioma da civilização, era o idioma universal das cortes da Europa. […] Deste modo, tanto no círculo familiar quanto fora dele, Maria Antonia foi logo transmudada em Antoine, nome que também usava para assinar suas cartas. Para os cortesãos, a arquiduquesa mais nova seria conhecida como Madame Antoine (2009, p. 24-25).

Retrato de Maria Antonieta aos 7 anos de idade, em 1762, por Jean-Étienne Liotard.
Antoinette, como os franceses a chamavam, era, assim, o diminutivo de Antoine. Em português, seu nome foi traduzido como Maria Antonieta. Sua infância, contudo, seria a mais despreocupada. Em meio às suas bonecas, a pequena Antoine, alegremente amamentada por Constance Weber, sequer tinha noção do que o futuro lhe reservava. Mal ela havia começado a dar os primeiros passos, aprender balbuciar as primeiras palavras e sua mãe já estava a pensar em como usa-la como peão no seu tabuleiro de xadrez diplomático. O destino da futura rainha da França começou a ser traçado ainda em seu berço. Maria Antonieta até que poderia ter o mesmo desfecho feliz de muitas de suas irmãs, como Maria Carolina ou Maria Amália e ficar lembrada apenas como mais uma soberana francesa, a exemplo de suas antecessoras: Maria Leszczynska, esposa de Luís XV, e Maria Teresa da Áustria, esposa de Luís XIV. Mas quem, ao observar a história desta personalidade a partir deste belíssimo início, poderia imaginar que tantas calamidades, tantos dissabores e tantas desventuras cairiam sobre sua cabeça, transformando-a numa das personagens mais trágicas e ilustres da história mundial? A história muitas vezes é irônica e cheia de surpresas. A trajetória de Maria Antonieta é apenas um entre os muitos exemplos que podemos citar.
Referências Bibliográficas:
FRASER, Antonia. Maria Antonieta. Tradução de Maria Beatriz de Medina. 4ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2009.
LEVER, Evelyne. Maria Antonieta: A última rainha da França. Tradução de S. Duarte. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.
Notas:
[1] Antonia Fraser explica que naquele tempo se acreditava que a amamentação arruinava a forma do colo, bastante visível com através da moda do século XVIII.
[2] Eles tiveram que fugir de sua capital aproximadamente na mesma horam em que a filha dos imperadores nascia.
[3] Segundo Antonia Fraser, “o prefixo Maria fora adotado para todas as princesas Habsburgo na época de seu bisavô, o imperador Leopoldo I, e de sua esposa Eleanora de Neuberg; pretendia demonstrar a devoção especial da família Habsburgo pela virgem Maria” (2009, p. 24).
Maria Antonieta foi muito injustiçada pela História.
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~☆~°.°♫~☆~°.°♫Uma Musa ♫ ° ♫ °.°.°♫
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Que a verdade venha à tona.
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