A erupção do ontem no hoje: a literatura como recurso para a escrita do passado

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

Concebidas como duas áreas específicas do saber humano, cada uma com seu próprio método, história e literatura se assemelham em muitos aspectos, principalmente pelo caráter narrativo e de representação da realidade em ambas. Contudo, enquanto a história busca nas fontes elementos que corroborem para uma interpretação do tempo vivido, a literatura não tem esse compromisso com a veracidade dos fatos, mas sim com a verossimilhança, ou seja, uma forma de captar o real em que as possibilidades de criação e fantasia são maiores do que aquelas permitidas ao historiador (PESAVENTO, 2000, p. 11). Dessa forma, é possível dizer que a narrativa literária não tem a necessidade de comprovar qualquer coisa, porém, partilha com a história uma preocupação acerca da refiguração temporal. Literatura e história dão voz ao passado, proporcionando assim a “erupção do ontem no hoje”. Essa representação do daquilo que ‘já foi’, por sua vez, “é que permite a leitura do passado pelo presente como um ‘ter sido’, ao mesmo tempo figurando como o passado e sendo dele distinto” (ibidem).

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A interação da História com outras disciplinas se constitui numa valorosa ferramenta para o pesquisador.

A literatura se constitui, para o historiador, numa valorosa fonte ou documento de pesquisa, mas se analisada através da representação do mundo que ela comporta. Com efeito, não se deve procurar no texto literário a comprovação dos fatos ali narrados, mas sim a explicação da realidade impressa no mesmo, ou seja, a sensibilidade perante as coisas do mundo de acordo com a ótica do escritor. Na opinião de Sandra Jatahy Pesavento:

… a História tem para com esta recriação do mundo feito texto, uma condição: é preciso que tudo tenha acontecido. O como é fruto das escolhas e estratégias ficcionais do historiador, mas é preciso que algo tenha realmente ocorrido. Assim, a História, este romance verdadeiro, como refere Paul Veyne, verdadeiramente constrói o real passado pela escritura. Na mesma linha, Michel de Certeau estabelece que, na articulação entre o discurso e o real, a escrita da história se inscreve como uma ficção ou fabricação do passado (PESAVENTO, 2003, p. 35).

A história, não obstante, pode ser entendida como uma narrativa do que aconteceu, na medida em que traduz uma alteridade no tempo, obedecendo, nesse caso, aos critérios e normas escolhidas pelo historiador.

Por ser uma escolha e, portanto, manifestação de uma ação pessoal, o historiador utiliza de estratégias ficcionais, ao selecionar ou rejeitar materiais, organizar um enredo, escolher as palavras e metáforas mais adequadas para seu trabalho, etc. (ibidem). Dessa forma, o profissional de história reconstrói os eventos do passado, demonstrando assim “os seus procedimentos narrativos e os recursos metodológicos e teóricos empregados”, viabilizando com isso a “possibilidade de reconhecer que as novas abordagens e objetos de estudos utilizados revelam a diversidade de leituras possíveis e, portanto, diversas formas diferentes de escrita, complementares entre si” (SANTOS, 2007, p. 2). Nesse sentido, a interação da História com outras disciplinas se constitui numa valorosa ferramenta para o pesquisador, permitindo que outros pontos de vista sejam explorados para a construção do saber histórico. Nesse sentido, o recurso dos textos literários como fonte para o fazer histórico ganha maior destaque, visto que eles permitem ao profissional adentrar com maior facilidade no campo das representações.

Segundo Roger Chartier (1991), o conceito de representação pode ser entendido como “a relação entre uma imagem presente e um objeto ausente, uma valendo pelo outro porque lhe é homóloga”. Não obstante:

São essas modalidades variáveis que permitem discriminar diferentes categorias de signos (certos ou prováveis, naturais ou instituídos, aderentes a ou separados daquilo que é representado, etc.) e caracterizar o símbolo por sua diferença com outros signos (CHARTIER, 1991, p. 185).

Contudo, é possível dizer que essa relação de representação é interferida pelo que Chartier denomina de “fraqueza da imaginação”, algo que faz com que “se tome engodo pela verdade, que considera os signos visíveis como índices seguros de uma realidade que não o é”. Sendo assim, a ideia de representação não está ligada a uma verdade única. O que pode significar determinada coisa para uma pessoa, pode não ser o mesmo para outra e, por isso, não devemos atribuir a este conceito um caráter fixo, e sim mutável, variando de acordo com o tempo e a visão de outrem.

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“Neste mundo verdadeiro das coisas de mentira, a literatura diz muito mais do que outra marca ou registro do passado” (PESAVENTO, 2003, p. 40).

A narrativa histórica, entretanto, traz consigo elementos de historicidade que, não obstante, devem guiar o leitor a uma realidade extratextual, “mas que só pode ser acessada pelo trabalho de imaginação, principiado pelo texto e completado pela leitura” (PESAVENTO, 2003, p. 38). Dessa forma, não seria equivocado dizer que leitores de história, em suma, buscam em determinado texto compreender o passado da forma como este se sucedeu, ou o mais próximo disso. Nesse caso, a tarefa do historiador torna-se destacada, na medida em que ele é interpretado pelos demais como uma autoridade sobre o tempo vivido. Porém, mesmo o pesquisador em história utiliza dos vários recursos da linguagem para criar suas narrativas e assim convencer o leitor daquilo que ele esta escrevendo, ancorado em evidências de pesquisa.

Ainda de acordo com Pesavento (2003, p. 38), estas evidências se constituem na exibição de fontes, bibliografia, citações, notas de rodapé, etc. A função de tais recursos, para esta autora, é a de provocar o leitor: caso ele não acredite naquilo que está escrito, que refaça o caminho do escritor através das evidências para comprovar a argumentação dele. Contudo,

Na prática, sabe-se que o público não enfrentará o desafio, se contentando com a evidência da pesquisa e da erudição, o relato do caminho percorrido, resguardadas pela autoridade da fala. Já o escritor de literatura não necessita de tais recursos ou artifícios, tudo investindo na qualidade da escrita do texto e na coerência do sentido da sua narrativa. Tem, talvez mais consciência do público leitor e que é preciso cativá-lo (PESAVENTO, 2003, p. 29).

Nesse sentido, pode-se afirmar que a literatura atua como fonte de si mesma, uma vez que a mensagem por traz dela configura-se no presente de sua escrita, e não sobre a temporalidade do passado. Para Sandra Jatahy Pesavento (2003, p. 40), a literatura é sempre um registro, seja ela de cunho realista, “dispondo-se a dizer sobre o real por forma de observação direta, fruto da vivência do escritor no seu tempo”, seja pela “recuperação idealizada de um passado, distante ou próximo”.

La lectrice ("A leitora"), óleo de Jean-Honoré Fragonard, 1770–1772.

La lectrice (“A leitora”), óleo de Jean-Honoré Fragonard, 1770–1772.

Por fim, diz-nos Pesavento (2003, p.40): “neste uso que a História faz da Literatura como fonte, há que considerar que o texto literário, tal como a pintura, por exemplo, fala das verdades do simbólico, ou seja, da realidade do imaginário de um determinado tempo, deste real construído pela percepção dos homens, e que toma o lugar do real concreto”. Visto que “neste mundo verdadeiro das coisas de mentira, a literatura diz muito mais do que outra marca ou registro do passado. Ela fala do invisível, do imperceptível, do apenas entrevisto na realidade da vida, ela é capaz de ir além dos dados da realidade sensível, enunciando conceitos e valores”. Nesse caso, “a Literatura é o domínio da metáfora da escrita, da forma alegórica da narrativa que diz sobre a realidade de uma outra forma, para dizer além”. Em outras palavras, o cruzamento da narrativa literária com a narrativa histórica pode oferecer um novo viés para se pensar não apenas o tempo vivido, como também o nosso presente e até mesmo nossas perspectivas para o futuro.

Referências Bibliográficas:

CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. – 5ª edição. Rio de Janeiro: Campus, 1997.

CHARTIER, Roger. Debate Literatura e História. Topoi, Rio de Janeiro – n° 1, novembro de 1999. Acesso em: 27 de novembro de 2013.

.O Mundo como Representação. Revista Estudos Avançados, São Paulo, vol. 5, n° 11, 1991.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Literatura, História e Identidade Nacional. – 2000 –  Acesso em 20 de novembro de 2013.

_. História e História Cultural. – Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

WATT, Ian. A ascensão do romance. Tradução de Hildegard Feist.- São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

Um comentário sobre “A erupção do ontem no hoje: a literatura como recurso para a escrita do passado

  1. Adorei o texto, Renato!
    Em romances históricos baseados em fatos verdadeiros, o escritor pode criar uma ficção com diálogos, enredos, descrição do período, desde que não deturpe o personagem.
    É uma forma divertida de conhecer o passado e o personagem focado nele.
    Abraços.

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