Uma rainha difamada, um rei com problemas de consciência e o futuro de Inglaterra nas mãos de dois cardeais. Muitas vidas dependem da decisão de ambos, enquanto uma verdadeira conspiração entre a nobreza é feita para destronar uma das mentes políticas mais brilhantes que o país já conheceu. A arma dessa facção é nada menos que uma jovem e sedutora dama, com suas próprias ambições e cansada de tanto esperar pelo príncipe encantado. Mas até que os desejos dela se cumpram, muitos obstáculos ainda precisam ser derrubados.
No nono capítulo da primeira temporada de “The Tudors”, temos a continuação do polêmico julgamento sobre a validade do casamento real. Por não reconhecer a autoridade daquele processo, Catarina de Aragão (Maria Doyle Kennedy) se recusou a comparecer a qualquer outra sessão do tribunal legatino. Essa passagem condiz perfeitamente com os registros históricos, visto que a rainha, depois de pronunciar seu eloquente discurso perante Henrique, não mais esteve presente a qualquer reunião ocorrida em Blackfriars Hall que tivesse como motivo questionar a veracidade de seu matrimônio. Como a mesma havia ressaltado, não encontraria ali juízes imparciais e por isso encaminhava seu caso à única autoridade que reconhecia na terra: o papa. Mas, para a frustração da soberana, os debates continuaram mesmo sem sua presença, dessa vez contando com o depoimento de uma testemunha que faria de Catarina motivo de piada entre as tabernas de Londres.

Ana Bolena (Natalie Dormer) está cada vez mais impaciente com a espera pela anulação do casamento real!
A atuação de Kennedy nesse episódio, tal como nos anteriores, foi magnífica, especialmente nas cenas em que ela desafiava o cardeal Wolsey (Sam Neil). Mais desesperado do que nunca, para o Wolsey o que estava em jogo não era apenas a fidelidade da Inglaterra à Igreja Católica, como também sua posição política e a própria vida. Nesse sentido, Catarina poderia ter uma espécie de consolo: ao frustrar a intenções do legado papal, estaria afastando-o do rei e apressando sua queda. Diante dessa passagem, cabe ao telespectador perguntar: foram realmente Thomas Bolena, Norfolk e Suffolk que, através de Ana Bolena, provocaram a queda de Wolsey, ou foram às atitudes obstinadas da rainha que deixaram o prelado numa situação difícil? Em todo caso, se Catarina de Aragão tivesse facilitado as coisas para Henrique, talvez o cardeal conseguisse dar a volta por cima de seus inimigos. Mas quis o destino (ou melhor, Catarina) que as coisas ocorressem de outra forma.
Na outra mão, observamos que era desejo da cúria romana prolongar o julgamento o quanto fosse possível, apesar das ameaças do rei de rompimento com a Igreja Católica. Ficara claro, então, que o medo que o papa Clemente tinha do Imperador Carlos V, tio de Catarina, era muito maior do que perder a Inglaterra para o protestantismo. Esses fatos e questionamentos foram reproduzidos pela série com bastante precisão, inclusive algumas falas dos personagens constam em registros históricos, a exemplo do diálogo entre Wolsey e Suffolk (Henry Cavill) ocorrido após Campeggio anunciar que o julgamento seria transferido para Roma: irritado a decisão, o duque vociferou para Wolsey que nada de bom havia acontecido na Inglaterra desde que cardeais se envolveram em assuntos como aquele, ao passo que o prelado insistiu para que o locutor contivesse suas palavras, pois fora graças a ele (Wolsey) que Suffolk ainda matinha a cabeça sobre os ombros.

Nesse episódio, a série se despede de Margaret Tudor (Gabrielle Anwar), um personagem cuja complexidade talvez seja compreendida por poucos fãs da série!
Nesse ponto, o cardeal se referia ao casamento clandestino entre Charles Brandon com Margaret Tudor e aos seus esforços para apaziguar a ira do rei decorrente de tal união.Na análise do quarto capítulo da temporada, demonstrei que o roteirista Michael Hirstfundira duas personagens reais em apenas uma: o rei Henrique não tinha uma irmã, mas duas, sendo que fora Mary quem se casara com Suffolk, e não Margaret. Essa atitude do roteirista acabou por comprometer o futuro da série, visto que os descendentes de ambas as princesas viriam a desempenhar papeis importantes após a morte do rei. Mas deixemos esse detalhe um pouco de lado. Afinal, adaptações televisivas ou cinematográficas não têm compromisso com os fatos. Diretores e roteiristas, munidos da chamada “licença poética”, podem muito bem modificar os acontecimentos ao gosto do público, usando os registros históricos como pano de fundo para uma narrativa totalmente nova e contemporânea à época em que foi produzida.
Esse aspecto passa quase despercebido perante os olhos daqueles que julgam uma série como The Tudors por reproduzir os fatos de uma forma diferente da que é contada por historiadores e biógrafos. Para essas pessoas, deixo apenas um recado: até mesmo os pesquisadores inventam, embora essas invenções estejam encobertas por uma aparente camada de autoridade.Foi preciso tocar na história da Margaret/Mary para trazer maiores explicações sobre a composição da personagem na série, assim como para relembrar ao leitor que ela foi uma mulher bastante corajosa para seu tempo: princesa de sangue real, ela deveria ser usada como peão no jogo de alianças matrimoniais europeias. Acreditando que já tinha cumprido seu papel, ela tomou nas próprias mãos as rédeas de seu destino e se casou com o homem que queria.

Sem amigos com quem pudesse contar, o cardeal Wolsey (Sam Neill) estava abandonado à própria sorte e à mercê de seus inimigos!
Infelizmente para Margaret, sua união com Charles Brandon estava longe de ser um conto de fadas: o duque era um verdadeiro mulherengo e logo trocou a vida de casado pelos braços de outras mulheres. Henry Cavill, que interpreta o nobre, encarna aos olhos do telespectador o perfeito papel do canalha depravado. Foi preciso que a morte de sua esposa (molestada por uma tuberculose), triste e abandonada, lhe colocasse na cabeça um pouco de vergonha por suas atitudes. Assim, nos despedimos de mais uma personagem da série cuja importância talvez seja compreendida por poucos fãs da série. Na noite em que Margaret morreu, contudo, uma grande tempestade assolava o país.Os recursos técnicos utilizados para ilustrar o momento em que Henrique entra em contato com o livro de William Tyndale, A obediência do homem cristão, são bastante simbólicos: ali temos um rei que era um árduo defensor da doutrina católica, se deixando corromper por um pensamento condenado pela ideologia romana.
A atuação de Jonathan Rhys Meyers em momentos como esses são carregas daquele peso emotivo do qual o ator sabe transparecer muito bem. Seja nas cenas em que grita com Catarina de Aragão, ou nas quais se vê frustrado pela recusa de Ana Bolena, ele demonstra como consegue mergulhar de forma profunda no universo turbulento de Henrique VIII. Enquanto sua esposa protestava ter saído virgem de seu primeiro casamento, sua amada Ana lamentava por todos os anos que perdera de sua juventude por causa do processo de separação do soberano. Natalie Dormer também se mostra muito emotiva nas cenas desse episódio, alternando suas expressões entre a fúria, frieza e serenidade, que eram típicas de seu personagem. Quem não se deu muito bem com toda essa situação foi o cardeal Wolsey. Uma vez perdida a afeição do rei, ele sabe que está à mercê de seus inimigos mais do que nunca. Perder seu cargo como chanceler foi apenas uma das poucas humilhações que passaria até atingir o fundo do poço. Sem amigos com quem pudesse contar, ele estava abandonado à própria sorte.
Renato Drummond Tapioca Neto
Graduado em História – UESC
Eeeh voltou \o/! Ótima análise como sempre! Confesso que fui daqueles espectadores, que repudiavam todo o plot da Margaret e do Charles, não pela licença poética em si, mas pq acho q foi um plot que o Michael Hirst não soube desenvolver tão bem. Mas sim Margaret foi uma mulher corajosa, q infelizmente teve aquele final horrível (a morte dela foi triste e poética, como Michael Hirst adora fazer). Realmente o destaque da primeira temporada foram Wolsey e Catarina, a rivalidade deles é incrível, os atores são maravilhosos! Adoro as cenas de surto do JRM, acho que em cenas assim, dele gritando, brigando e frustrado, compensa o fato dele não se assemelhar com o verdadeiro Henrique! As cenas dele brigando com a Ana são sempre ótimas, ele e Natalie sabem muito bem representar o temperamento explosivo deles, sem serem caricatos! Bjs!
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As cenas com Natalie e Jeremy são umas de minhas favoritas tb, pq a personagem dela são fica intimidada perante o dele. Ana responde Henrique na mesma altura com que ele faco com ela, ao contrário da personagem Catarina. Fico muito feliz que tenha gostado da análise, Camila. Abraço!
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Amo história, principalmente no que diz respeito ao lado humano dela, desde o temperamento dos reis e imperadores, até as tramas relacionadas a fatos que influenciam nossa sociedade ainda hoje, como a criação da Igreja Anglicana. Sou uma admiradora árdua das antigas cortes europeias, mas como não sou uma especialista no assunto – aliás, estou longe disso, sou uma mera vestibulanda que sonha em passar na Universidade Federal de SC – admiro muito as suas análises, pois auxiliam no entendimento histórico, esclarecendo deslizes que possam influenciar neste devido a licença poética da série. Além disso, me identifico com sua opinião a respeito do elenco e da atuação do mesmo, sendo que fico absolutamente atônita com o poder que JRM consegue transmitir, ao mesmo tempo que se mostra temeroso em alguns aspectos como no caso da Doença do Suor, com o medo da morte, característica quase que inerente ao ser humano. Considero a Natalie uma maravilhosa atriz nesse papel, apesar de não ter muito com o que comparar pois não vi outros filmes que possuam a vida de Henrique VIII como tema principal. Gostaria de saber se você parou com as análises, pois sou uma apreciadora das mesmas, e anseio por mais delas. Obrigada!
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Muito obrigado pelo interesse, Kely. Para mim é uma honra poder ajudar às pessoas interessadas em história, compartilhando um pouco do que eu sei com elas. Embora ande em débito com as postagens do blog, pretendo dar continuidade à análise da série. Espero que você retorne mais vezes. Abraço!
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Sua análises são ótimas! Uma pena que parou, não tem intenção de continuar?
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Tenho sim, Saykis. O problema é o tempo mesmo 😦
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