O passado no presente: três habitantes da Escócia medieval têm seus rostos revelados!

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

A Escócia durante o período da baixa Idade Média pode parecer aos olhos do leitor um lugar quase sombrio ou mesmo “selvagem” (perdoem-me a palavra) se comparada a países como a França e a Itália; uma terra dominada pelo regime feudal e divida por facções e clãs que lutavam pelo poder, mantido com bastante dificuldade pelo rei. Não obstante, seu vizinho do sul, a Inglaterra, nunca escondeu suas intenções de anexar aquele país aos seus domínios. Ali, o renascimento cultural ainda não havia penetrado como acontecera com outros países do continente europeu. Apenas a nobreza poderia comissionar aristas para pintar retratos, estes bastante modestos em relação à arte flamenga ou italiana. Além disso, os pintores trabalhavam em cima do que seus patronos queriam, escondendo os defeitos físicos e realçando o que o retratado tinha de melhor. Dessa forma, chegar a um resultado fidedigno do modelo original era quase impossível. Mas se por um lado sabemos como eram os nobres e reis da Escócia a partir de seus quadros, na outra mão não dispomos da mesma fortuna de fontes quanto à população em geral. Pelo menos até agora!

Escavações no cemitério da Igreja da Paróquia do Sul de Leith.

Escavações no cemitério da Igreja da Paróquia do Sul de Leith.

Nessa sexta-feira, dia 25, especialistas forenses divulgaram os rostos reconstruídos de três escoceses (uma mulher e um homem com idades de 25 – 35 anos e um adolescente entre 13 e 17 anos), descobertos em 2009 durante as escavações num cemitério há muito esquecido, localizado na Igreja da Paroquia do Sul de Leith, enquanto se realizavam trabalhos para uma linha de bondes em Edimburgo, capital da Escócia. Durante esses 5 anos, uma equipe de cientistas da Universidade de Dundee trabalhou na reconstrução facial de 14 pessoas dos quase 400 túmulos encontrados, que datam desde o século XIV. A maioria dos corpos foram enterrados em caixões de madeira e outros envoltos em simples mortalhas, o que pode dar uma ideia da classe social à qual pertenciam aquelas pessoas. Segundo o arqueólogo John Lawson: “esta é uma das maiores e mais importantes escavações urbanas de restos humanos realizadas em Edimburgo durante os últimos anos”. Ele destacou também que “isso nos permitiu destacar as vidas das pessoas comuns de Leith, colocando-lhes um rosto e mostrando como elas viveram e morreram”.

As pesquisas realizadas com os remanescentes humanos foram tão meticulosas, que foi possível diagnosticar a dieta de cada um dos indivíduos, além de suas idades, estatura e traços faciais: num dos corpos estudados, pertencente a um garoto de 14 a 17 anos de idade que faleceu algures entre 1393 – 1445, por exemplo, percebeu-se que sua alimentação era predominante composta de peixes e de produtos derivados do leite. Como Leith era uma das cidades portuárias mais importantes da Escócia, então o peixe era o alimento mais acessível às classes populares. De acordo com os registros da Igreja da Paroquia do Sul de Leith, fundada em 1438, o jovem foi um dos primeiros a serem sepultados no cemitério local. Junto com o corpo dele, foram identificados outros de comerciantes e marinheiros durante a escavação, além dos remanescentes de um homem com idade aproximada entre 25 e 35 anos, que faleceu em meados do século XVI – XVII, o que indica que os enterros naquele espaço continuaram pelos menos 2 séculos depois da fundação da Igreja.

Detalhes do crânio de um dos corpos encontrados nas escavações.

Detalhes do crânio de um dos corpos encontrados nas escavações.

Entre os restos mortais que foram exumados, se encontra o de uma mulher com idade de 25 – 35 anos, falecida devido à peste ou outra doença infecciosa e que foi enterrada em uma vala comum ao lado de outras duas mulheres e de uma criança com idade de 12 anos. Conforme podemos observar pela reconstrução facial dela, seu rosto apresenta traços fortes e um nariz longo, emoldurados por uma cabeleira em tons de castanho. Usando um pouco a imaginação, podemos supor que ela trabalhava como comerciante no mercado de peixes local, uma vez que as mulheres populares gozavam de maior liberdade de movimentos que as de classes economicamente mais abastadas, tendo que trabalhar para ajudar nas despesas de casa. Suas feições também ajudam a estabelecer um paralelo entre as mulheres do povo e as da elite: seus traços mais rústicos contrastavam com o ideal de beleza feminina daqueles séculos, que valorizava acima de tudo mulheres loiras, de pele leitosa, olhos azuis e maçãs do rosto coradas.

Seja na literatura, com personagens como Guinevere, à pintura, a exemplo das famosas Madonas ou na Vênus de Botticelli, o culto às mulheres loiras e de tez clara era unânime. Aquelas que não possuíam esses dotes recorriam a vários produtos para consegui-los, como os preparados a partir de urtiga, folhas de hera, cinabre, enxofre e açafrão, utilizados para clarear a pele e os cabelos. As mulheres do povo, por outro lado, se preocupavam menos com questões estéticas: quando eram meninas ajudavam no sustento da casa. Depois de casadas, preocupavam-se com o marido, os filhos e as despesas do mês. Vestir-se com luxo não estava exatamente em seus planos, até porque as roupas eram utilizadas como fator de divisão de classes. Mães desde jovens, os riscos de morrerem no parto eram gravíssimos. Poucas eram aquelas que conseguiam escapar de uma febre puerperal, mesmo entre a nobreza. Uma vez mortas, as mulheres do povo, durante o final da idade média na Europa, eram sepultadas em valas comuns em cemitérios nas Paróquias locais, assim como outras pessoas da mesma classe. Afinal, ser enterrado nas Igrejas era para aquela população uma garantia de estar mais próximo do céu.

Reconstrução facial de uma mulher entre 25 e 35 anos de idade!

Reconstrução facial de uma mulher entre 25 e 35 anos de idade!

Dessa forma, as pesquisas realizadas com os remanescentes humanos encontrados a 5 anos pela no cemitério da Igreja Paroquial do Sul de Leith ajudou a desvendar um pouco mais sobre a realidade e o cotidiano das classes populares ne Escócia medieval. Na opinião de John Lowson, “as reconstruções forenses têm realmente ajudado a identificar tais remanescentes como membros do povo, em vez de considera-los simplesmente como vestígios arqueológicos, mas pessoas que eram iguais aos habitantes modernos de Leith e Edimburgo”. Infelizmente, pesquisas com remanescentes humanos ainda são consideradas como um tabu para muitos membros da sociedade ocidental. Contudo, elas são de extrema importância para revelar a identidade de nossos antepassados, como eles viviam e se relacionavam, demonstrando que a linha que separa o passado e presente pode ser bem menor do que muitos imaginam.

Fontes:

STV NEWS e HERALD SCOTLAND

Bibliografia consultada:

DUBY, Georges (org.); ARIÈS, Philippe (dir.) História da vida privada, 2: da Europa feudal à Renascença. Tradução de Maria Lúcia Machado – São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média. – São Paulo: Cosac Naify, 2011.

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