A intriga do colar da Rainha – Parte II

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

Parte II – A Trapaça

Antes que os guardas pudessem prendê-lo na frente de toda a corte, Luís de Rohan, cardeal de toda a França, se abaixara como se estivesse a ajeitar seus sapatos. Porém, nesse ínterim, aproveitou para rabiscar um breve bilhete para seu secretário, o abade de Georgel, e entregou-o a um pajem que o acompanhava. Na missiva, ele pedia que Georgel queimasse todos os documentos que poderiam lhe comprometer. No dia seguinte, o clérigo fora levado para a prisão da Bastilha e lá ele deu a entender aos seus inquisidores sua versão dos fatos. Pouco tempo depois, certa condessa Jeanne La Motte faria companhia ao cardeal na mesma prisão (embora em celas diferentes). Mas quem era essa mulher que alegava ter sangue real da casa dos Valois? Os biógrafos de Maria Antonieta são nada simpáticos para com a sua pessoa. Setefan Zweig, Evelyne Lever e Antonia Fraser, por exemplo, referem-se à moça como uma charlatã, cujo pai (Jacques de Saint-Rémy) era um vagabundo, e a mãe uma mulher que se viu obrigada a prostituir-se após a morte do marido. Enquanto criança, Jeanne fora obrigada a pedir esmolas na rua, até que um dia encontrou uma benfeitora, a marquesa de Boullainvilliers, que ficara encantada com a história que aquela menina lhe contara.

De acordo com o depoimento de Rohan, no ano de 1781, a marquesa lhe recomendara aquela jovem à qual resgatara da pobreza. A nobre ainda lhe confidenciara que a moça era descendente de um filho bastardo de Henrique II (rei da França entre 1547 e 1560) e de sua amante Diane de Poitiers. Poucos anos antes, ela havia se casado com Nicolas de La Motte, um gendarmerie de baixa nobreza, que comprara um título de Conde. Para Zweig,

“Jeanne poderia de novo sentir-se satisfeita. Mas considerava ainda aquele notável empurrão para cima como um simples degrau. O Senhor La Motte tinha o título de mojor do rei, mas agora se atribuía, por sua própria iniciativa, o de conde […] Semelhante título valia cem mil libras por ano, quando usado por uma mulher bela e sem escrúpulos, bem decidida a depenar energicamente todos os vaidosos e tolos”. (ZWEIG, 1981, pags. 169-170).

Sem dúvida, Jeanne viu no libertino cardeal de Rohan o tipo de homem certo a quem poderia se agarrar. Após a morte da marquesa, passara então para o protetorado do clérigo, que tinha fama de ser homem pervertido. Sendo assim, convém acreditar que os dois teriam se transformado em amantes.

Jeanne de Valois-Saint-Rémy (por François Bonneville).

Jeanne de Valois-Saint-Rémy (por François Bonneville).

Todavia, Rohan estabelecia também seu patronato para outras figuras excêntricas, entre elas o “divino” Cagliostro, um renomado mágico que profetizava acontecimentos em favor de cardeal. De acordo com a trama original, fora a partir do contato com este charlatão que Jeanne ficara sabendo que seu bem feitor aspirava a uma alta posição política, mas sempre encontrava suas pretensões barradas pela influência da rainha. A condessa de La Motte viu, então, nessa evidência uma chance de extorquir mais dinheiro dele: passara então a alegar ao mesmo de que mantinha boas relações com Maria Antonieta, e que a soberana estava disposta a esquecer de todos os velhos atritos do passado. Para tanto, contara com a ajuda de outro de seus presumíveis amantes, Retaux de Villette, que falsificava supostas cartas de amizade, com papéis decorados com a flor de lis real, e que continham a enigmática firma “Maria Antonieta da França”. Provavelmente, foi ao tomar posse de tais missivas que Rohan cometeu seu maior deslize, pois como membro de uma das famílias mais importantes do reino, deveria saber que uma monarca francesa só assinava quaisquer correspondências apenas com seu nome e sobrenome, sem acrescentar no fim o do país ou de qualquer outro título que pudesse possuir.

Tão logo começara a tirar dinheiro do cardeal, a fama das boas relações entre a condessa de La Motte e rainha começara a se espelhar, e chegara aos ouvidos de Boehmer e Bassenge. Os joalheiros, por sua vez, pediram para que Jeanne intercedesse junto com a soberana a favor da compra do colar, e em troca ela receberia uma pequena percentagem em cima do valor da venda. Mas a vil mulher estava com suas ambições um pouco mais acima: ela, juntamente com seu marido e seu amante, tratou de conceber um plano no qual faria com que o cardeal, a pedido da rainha, que supostamente desejava o colar em segredo, fosse o fiador da compra do mesmo, e que após o negócio, depositasse a joia nas mãos da condessa para que enviasse a peça à soberana. Assim que este plano ousado fora concluído, a arquiteta do mesmo apresentara ao clérigo as “intensões” de Maria Antonieta. Entretanto, depois de tanto dinheiro que gastara com Jeanne para que esta continuasse a intervir em seu favor perante a rainha, Rohan estava começando a suspeitar desta estória, pois até então não recebera quaisquer palavras de Sua Majestade pessoalmente. É nesse momento que entra em cena a parte mais perigosa e excitante da trama.

"La Reine en Gaulle", por Elizabeth Vigée Le Brun (1783)

“La Reine en Gaulle”, por Elizabeth Vigée Le Brun (1783)

Por aquela época, Maria Antonieta fora vítima de um escândalo envolvendo um retrato seu pintado por Elizabeth Vigée-Lebrun. Intitulado La Reine em gaulle, a tela apresentava a rainha em trajes simples de musselina (um tecido relativamente barato), com um chapéu de palha na cabeça e uma rosa nas mãos. Para as línguas ferinas do período, tais vestes foram consideradas indignas de uma soberana, quando na verdade ela só estava querendo adotar um estilo de vida mais simples. Caroline Weber explica que aquelas roupas tiveram um papel importantíssimo no plano concebido pela condessa: seu marido encontrara em meio às ruas de paris uma atriz de rua chamada Nicole, e que era muito parecida com Antonieta. Então, arrumando-a com o mesmo figurino do quadro de Lebrun, Jeanne marcara um encontro à noite entre o cardeal e a falsa rainha no bosque de Vênus (localizado nos Jardins de Versalhes). As autoridades encarregadas de investigar o caso concluíram que tal entrevista se dera da seguinte forma:

“… um vulto branco, indistinto e cambiante, deslizou em direção a Rohan vindo do outro lado do bosque. Atrás dele, Rohan vislumbrou a condessa de La Motte e seu companheiro, Réteaux de Villette, montando guarda para proteger a privacidade dele e da rainha. O vulto aproximou-se, e mesmo no escuro, mesmo para seus olhos de cinquenta anos, ganhou contornos como o dia. Pouco a pouco ele discerniu uma chemise de musselina com babados amarrada com uma fita, cabelo muito louro caindo sob um chapéu de palha e uma clara e delicada mão estendendo-se para lhe dar… uma rosa: a flor característica da rainha. ‘O senhor sabe o que isso significa’, sussurrou a aparição, já recuando. Em êxtase, o cardeal apoderou-se da flor. Apertando-a contra o peito, prostrou-se para beijar a orla de sua gaulle. Veio então o sussurro premente de La Motte: ‘O conde e a condessa d’Artois estão se aproximando’. Antes que Rohan pudesse se levantar da relva, a sílfide branca desaparecera” (apud WEBER, 2008, pag. 188).

O cardeal acreditara no que seus olhos tinham visto. Desesperado por reaver as boas graças da rainha e conquistar o cargo de Primeiro-Ministro do reino, aceitara ser o fiador na compra do colar de diamantes. Em fevereiro de 1785, concluíra as negociações por escrito com Boehmer, e entregou a peça no valor de 1,6 milhão de livres para um pajem portando a libré com as cores da criadagem da rainha. O serviçal, por sua vez, era ninguém menos que Réteaux de Villette disfarçado, que após tomar posse da joia entregou nas mãos de Jeanne. A condessa e seus comparsas decidiram que os diamantes valiam muito mais separados do que juntos, e por isso trataram de vender as pedras avulsas.  Pouco tempo depois, um joalheiro judeu, em nome de seus colegas, se queixou à polícia dizendo que alguém chamado Rèteaux estava vendendo diamantes preciosíssimos por preços tão baixos que provavelmente deveriam ser roubados. As autoridades abordaram o homem, que alegou que vendia as pedras em nome da condessa de La Motte, uma prima do rei. Os lucros que Jeanne obteve foram tão grandes, que ela isolou-se com a pequena corte que se formara ao seu redor em sua propriedade Bas-sur-Aube, na Champagne, e praticamente esquecera-se do cardeal.

Nicole d'Oliva, uma atriz de rua contratada por Jeanne de La Motte para se passar por Maria Antonieta.

Nicole d’Oliva, uma atriz de rua contratada por Jeanne de La Motte para se passar por Maria Antonieta.

Enquanto isso, Rohan começava a se desesperar, pois depois de seu “encontro” com a soberana, nunca mais tivera notícias dela ou recebera quaisquer outras cartas. Estranhara também o fato de não ver Antonieta usando o colar. Percebendo que o prazo para o pagamento da primeira parcela da joia se aproximava, a condessa usou mais uma vez das habilidades de seu amante como falsário, e redigiu outra missiva assinada com “Maria Antonieta da França”, instruindo o cardeal a renegociar o valor da peça e a data de pagamento com Boehmer. Em 15 de agosto, durante a festa da Assunção, Rohan tinha então todos os motivos para crer que rei o condecoraria com a patente política que tanto desejava, mas em vez disso descobrira que durante todo este tempo estava sendo enganado por uma falsária e que maculara o bom nome da soberana, ocorrendo assim em crime de lesa majestade. Depois de todos os envolvidos na trapaça terem sido capturados (exceto Nicolas de La Motte, que fugira), com Jeanne negando todo o depoimento do cardeal, era preciso então que Luís XVI julgasse os prisioneiros. Sua mulher, entretanto, sabendo que se tornara estritamente ligada à trapaça, queria que o mesmo fosse resolvido de forma pública. Por fim coube ao próprio Rohan decidir que jurisdição preferia e como sabia que o rei não seria imparcial em seu caso, optara pelo Parlamento de Paris, uma escolha que seria especialmente danosa para a monarquia.

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