Por: Renato Drummond Tapioca Neto
Parte VI – A queda de uma rainha e a ascensão de outra.
Enquanto toda a corte celebrava as festas de início de ano, Catarina de Aragão tentava se apegar aos últimos fios de vida que ainda lhe restavam. Em sua reclusão, tinha à sua disposição poucos serviçais, entre eles uma amiga que a acompanhara desde sua viagem para a Inglaterra em 1501, Maria de Salinas. Chapuys, por sua vez, obteve permissão para visitar a pobre mulher, mas enquanto subia à barca rumo ao castelo de Kimbolton, fora detido pelo conde de Suffolk, que portava uma mensagem do rei na qual se lhe dizia que Catarina estava in extremis, e que dificilmente chegaria a tempo de encontrá-la com vida. Mesmo assim, o embaixador conseguira um salvo-conduto para visitar a tia de seu amo (Carlos V), porém, encontrou-a em condições de saúde gravíssimas. A visita do emissário, juntamente com a presença de sua amiga Maria de Salinas, animou o coração daquela mulher de 50 anos, a ponto de fazê-la se sentir melhor. Entretanto, seria apenas um alívio passageiro.
Segundo o parecer dos médicos, Catarina sofria de “violentas dores de estômago, flatulência, vômitos e debilidade geral. Os seus anos de reclusão, a sua dieta, a má saúde anterior podiam explicar o seu esgotamento” (HACKETT, 1950, pag. 273). Não obstante, a ci devant rainha apresentava os sintomas de uma hidropisia cardíaca. Na tarde do dia 6 de janeiro, conseguira levantar-se e pentear os próprios cabelos, mas à meia noite seu estado teve uma grave piora. Sentindo que sua hora final se aproximava, quis ouvir a missa em latim durante as quatro da manhã (hora canônica), recebeu a extrema unção e ditou a última de suas cartas, direcionada ao seu “caríssimo senhor, rei e marido”:
“… Aproximando-se a hora da minha morte, eu não posso pelo amor que vos tenho, deixar de recordar-vos a salvação da vossa alma, que deveis preferir a todas as considerações do mundo ou da carne, quais quer que sejas. Pelas quais, todavia, causastes tantas desventuras a mim, e tantos embaraços a vos mesmo. Mas eu vos perdôo tudo e peço a Deus que faça outro tanto. Quanto ao mais, recomendo-vos Maria, nossa filha, suplicando-vos que sejais para ela um bom pai, como eu até aqui tenho desejado…” (apud HACKETT, 1950, pag. 274).
Em sua triste correspondência, Catarina ainda pedia ao rei para que cuidasse dos criados que tinham ficado ao seu serviço, pagando-lhes os salários atrasados e provendo bons casamentos para suas damas. Por fim, em um tom que pode parecer quase patético, ela terminava a missiva dizendo que “finalmente, juro-vos que os meus olhos os desejam acima de tudo”. Falecera às duas da tarde do dia 7.
O embaixador Chapuys só teve notícia da morte de Catarina apenas no dia 9. O rei, de acordo com uma das versões, caiu em prantos ao saber da notícia; em outro relato, juntou-se à Ana Bolena nas festividades todo vestido de amarelo (a cor da alegria – segundo Antonia Fraser, é possível que ele tenha demonstrado ambas as reações). Para David Loades,
“… Não há dúvida de que nos últimos anos de vida [Catarina de Aragão] assumiu uma qualidade de quase mártir e retirou uma satisfação lúgubre do fato de, em 1533, a filha ter sido também afetada por causa dela. […] Sem de fato o desejar, tornou-se a alavanca para o sobrinho penetrar ma política inglesa e um fulcro que o imperador considerava valioso para lidar com o rei da Inglaterra. Apesar de ter passado mais de 35 anos na Inglaterra e de ter conhecido sorte e azar, Catarina nunca esqueceu que tinha sangue real espanhol…” (LOADES, 2010, pag. 120).
Junto com a ex-rainha, ia embora todo o medo de Henrique de uma retaliação imperial. Tão logo, Carlos V começou a demonstrar intenções de estabelecer uma nova aliança com os ingleses. Todavia, uma virada de sorte acabaria por mudar todo o destino da política tudoriana e de sua soberana: mademoiselle boullan perdera o bebê.
Os acontecimentos que levaram Ana Bolena a sofrer um aborto prematuro em 29 de janeiro¹ são muito confusos. De acordo com a narrativa mais aceita, concede-se ao duque de Norfolk a culpa, ao dar à rainha uma falsa notícia de que o rei havia morrido em um torneio de justa, quando apenas ficara desacordado por duas horas em decorrência de uma queda (embora todos que estavam presentes durante o ocorrido tivessem pensado igual ao duque). Outro caso bastante utilizado pelos romancistas seria de que Ana Bolena, grávida de 15 semanas, teria surpreendido Jane Seymour sentada no colo de seu marido aos beijos com ele. Destarte, a violência impactante com que esses fatos chegaram ao conhecimento de Ana foi suficiente para fazê-la abortar. Seu raio de esperança havia finalmente se extinguido, dando lugar à escuridão com que Henrique VIII a faria afundar. Ao se dirigir ao leito da esposa, teria dito:
– “Vejo que Deus não quer dar-me filhos homens”. Ao passo que Ana respondeu, aludindo ao impacto que sofrera:
– “Porque vos amo muito mais do que vos amava Catarina, o meu coração se parte quando vos vejo fazer a corte a outras [Jane Seymour]”. O rei, em seu tom frio de desprezo, respondera apenas que “quando estiverdes restabelecida, eu vos falarei”².
Henrique estava começando a acreditar que Deus havia amaldiçoado este casamento do mesmo jeito que fizeram com o primeiro. Naquele período já tinha quase 45 anos, e sem nenhum sucessor legítimo ao trono. Aos seus mais chegados havia grunhido que fora “seduzido e forçado a esse casamento por feitiçaria. Por isso Deus não permite que eu tenha filhos varões. E por isso eu quero realizar uma nova união”. (apud HACKETT, 1950, pag. 278). A sucessora de Ana Bolena, contudo, já havia sido escolhida. Nas palavras de Antonia Fraser,
“A essa altura, o relacionamento do rei com Jane Seymour adquiriu um novo significado, com a primeira rainha morta e a segunda, de acordo com a opinião generalizada, incapaz de gerar filhos homens. Uma paixão que poderia, em circunstâncias muito mais felizes – isto é, mais felizes para Ana Bolena –, ter sido agradável, mas transitória, tornou-se o foco de especulação universal”. (FRASER, 2010, pag. 311).
A família Seymour possuia nobres ancestrais. O pai de Jane, Sir John, fora feito cavaleiro por Henrique VII e havia acompanhado o sucessor deste nas comemorações do “campo do tecido de ouro” em 1520. Uma vez que toda a corte tinha observado como se dera a ascensão dos Bolena, chegara o tempo de outra família aristocrata repetir a fórmula utilizada pelos mesmos, e sendo assim, o rei transferiu sua nova eleita para os aposentos de Thomas Cromwell, que eram contíguos aos seus.

Ilustração do século XIX mostrando Ana Bolena soltando o seu lenço para Henry Norrys durante o torneio de justa, e também última vez em que vira Henrique (por George Cruikshank).
Enquanto isso, em seu infortúnio, Ana fechava-se cada vez mais em sua corte íntima, composta por cavaleiros da câmara privada do rei, como Henry Norris, William Brereton e Francis Weston, além de seu próprio irmão George e de mais algumas damas, que se deleitavam ao som das cordas de um paupérrimo tocador de alaúde chamado Mark Smeaton, a quem Ana havia resgatado da miséria. Mal sabia o círculo de amigos que Cromwell estava reunindo provas contra a rainha, suficientes para declarar seu casamento inválido e culpá-la por alta traição. Os acontecimentos daqueles primeiros meses de 1536 só fizeram corroborar para o desespero que estava tomando conta dela: em 23 de abril, Nicholas Carew (que fazia parte da facção anti Bolena, e estava intercedendo a favor de Jane Seymour) havia sido nomeado cavaleiro da Ordem da Jarreteira, em vez de George Bolena. Sua situação mostrava-se mais complicada a cada passo, partindo do pressuposto de que Catarina não fora julgada ou condenada por Henrique devido ao fato de ter em seu apoio o Imperador; já Ana, não tinha qualquer personalidade poderosa pronta a tomar partido de sua causa. Em fins de abril, durante um torneio de justa, seria a última e derradeira vez em que veria Henrique.
Notas:
¹A data do aborto da rainha é fornecida por Charles Writhesley, na sua “Crônica da Inglaterra”.
²Diálogo extraído da obra “Henrique VIII”, escrita por Francis Hackett (1950, pag. 278).