Por: Renato Drummond Tapioca Neto
Ambientalizado nos anos finais do extenso reinado da gloriosa Elizabeth I, “Anonymous”, filme de Roland Emmerich, trás à tona mais polêmica em torno do célebre escritor da renascença nórdica, William Shakespeare, que, segundo adeptos da teoria da conspiração, não poderia ter escrito tantas peças e poemas em um espaço de tempo como o foi. Todavia, a presente produção polemiza não tanto pela exposição da farsa criacionista em torno do dramaturgo, mas pelo contexto histórico ao qual está inserida, revelando assim uma teia em que paixões e intrigas se revelariam numa combinação poderosa, onde o maior prêmio seria a coroa de Inglaterra.

Rhys Ifans, Edward de Vere, 17° conde de Oxford.
Com Roteiro de John Orloff, “Anonymous” se afigura como um verdadeiro escândalo que fascina o telespectador do começo ao fim. Tal como “Shakespeare in Love” (1998), ele pinta um quadro pitoresco dos personagens da última década do século XVI e início do XVII, marcados pela inovação do teatro na vida cotidiana das pessoas, que afluíam em massa para prestigiar as últimas criações de autores como Ben Jonson (interpretado por Sebastian Armesto) e Kit Marlowe. Em meio a esta explosão de criatividade, a voz de um povo se ergue dos palcos, representada na figura de um homem, que seduzia multidões por onde quer que fosse. Mas quem era William Shakespeare? Eis a pergunta que o longa-metragem, de 130 minutos, tenta responder.
O filme se inicia nos dias atuais, em um palco, com um narrador (Sir Derek Jacobi), que conta para seus ouvintes uma estória diferente acerca dos acontecimentos que culminaram na lenda de Shakespeare, outrora apenas um filho de fabricante de luvas, nascido na pequena cidade de Stratford-upon-Avon, que, apenas com o ensino básico completo, foi para Londres, onde se tornou ator e posteriormente dramaturgo, dono de 37 peças e 154 sonetos, além de diversos poemas, dos quais, nenhum manuscrito original sobreviveu. Essa interrogação transcendeu à idade contemporânea ainda sem resolução plausível, e parece-nos que a humanidade ainda se encontra descapacitada para oferecer luz perpétua a tal dilema.
Mas atentemo-nos mais para o enredo do filme em questão, do que para a vida e as dúvidas em torno de William Shakespeare, do contrário essa simples resenha transformar-se-ia numa exaustiva tese de doutorado, se é que posso assim me referir. Após o prólogo, um Bem Jonson assustado foge, com uma porção de cadernos em seus braços, de Robert Cecil (interpretado por Edward Hogg) e seus guardas. O motivo para a perseguição consistia no conteúdo das compilações que o fugitivo portava. Depois de ser preso na torre e submetido a penoso interrogatório, Jonson, então, num lapso de memória, retrocede para cinco anos no passado, quando um poderoso nobre assistia a uma de suas peças: o conde de Oxford.

Joely Richardson, como a jovem Elizabeth I, e Jamie Campbell Bower, como o jovem conde de Oxford.
Edward de Vere, 17° conde de Oxford, interpretado por Rhys Ifans (também presente no elenco de “Elizabeth, The Golden Age” como Robert Reston), é uma alma romântica que durante sua juventude fora discriminado por seu sogro, William Cecil (David Thewlis), por gostar de escrever poemas, uma atividade incomum para alguém de sua posição social. Pois que Edward, já que não podia assumir suas criações, viu na figura de Ben Jonson uma possibilidade de veicular seu trabalho, fazendo com que o domínio dos Cecils sobre Elizabeth se diluísse, e que o conde de Essex (Sam Reid), suposto bastardo da rainha, assumisse o trono em vez do rei da Escócia, secreto aliado de William.
Na pele da primeira Elizabeth, temos Vanessa Redgrave, já conhecida pelos amantes de Ana Bolena por interpretá-la em “A Man For All Seasons”. Vanessa, já mais velha, foi perfeita para o personagem da sexagenária rainha, enquanto sua filha, Joely Richardson (que fez Catarina Parr na quarta temporada de “The Tudors”), interpreta o papel da soberana em seus primeiros anos de reinado, perdidamente apaixona por um homem 16 anos mais novo que ela: Edward de Vere, conde de Oxford. Sendo assim, podemos perceber que a sucessão de acontecimentos se dá em formato de flashback, com o tempo avançando e retrocedendo conforme a necessidade de explicar certos detalhes.
Uma vez que Ben Jonson não teve a coragem de assumir as peças de Oxford, então outro o fez. E na noite de estreia de “Henrique V”, os olhos da Inglaterra estariam voltados para a não tão ilustre figura de Shakespeare, mostrado até então como um ator semianalfabeto e alcoólatra. Apesar dos imprevistos, as tramoias do conde continuaram com um novo bode expiatório, tendo Jonson como intermediário, para que a identidade de Edward não fosse revelada. A cada nova apresentação, de “Romeu e Julieta”, “Hamlet” a “Ricardo III”, a popularidade daquele homem crescia incomensuravelmente. Assim, nascia a lenda de William Shakespeare.

Xavier Samuel, como o conde de Southampton, e Sam Reid, como conde de Essex.
Enquanto isso, o quadro político da Inglaterra era bastante calamitoso: Elizabeth, sem nomear herdeiro, deixava espaço para que duas facções brigassem pela sucessão: de um lado, os Cecils, que apoiavam Jaime VI, rei a Escócia; do outro, o conde de Essex, que tinha como aliados seus colegas em patente, Oxford e Southampton. Nesse aspecto, a história segue conforme os registros, exceto pelo fato de Henry Wriothesley, (vivido por Xavier Samuel), terceiro conde de Southampton, ser mostrado como um bastardo da rainha com Edward de Vere, interpretado em sua tenra idade por Jamie Campbell Bower. Ora, histórias sobre uma soberana lasciva sempre foram irresistíveis para os detratores de Elizabeth, mas em “Anonymous” essa peculiaridade se transforma em obscenidade das mais chocantes: o próprio conde de Oxford, também era filho da rainha.
A partir de então, notamo-nos certo abuso por parte da produção do que se convém chamar de licença poética. Não apenas Edward é mostrado como o maior amor da rainha, quando na verdade Robert Dudley era alguém mais próximo disso, como também Elizabeth teria cometido incesto com o próprio filho. Todavia, John Orloff toca em um ponto interessante da história da monarca: era ela, ou não, uma virgem? Na trama, sua gravidez foi escondida da corte quando ela estava em sua anual viagem de verão pelo reino. Semelhante passagem se dá no livro “O bastardo da Rainha”, de Robin Maxwell (ainda não lançado no Brasil). Ambos os autores parecem concordar que era possível Elizabeth ter concebido sem que a corte suspeitasse, e assim afastar-se de um escândalo desse quilate.

Rafe Spall como William Shakespeare.
Cada vez mais crente que suas palavras poderiam insuflar o reino contra a gestão de Robert Cecil (que sucedeu seu pai após a morte do mesmo), o conde de Oxford planeja a invasão das tropas de Essex concebida no ano de 1601, mas que foi contida, e resultou na decapitação de Robert Devereux. Southampton fora poupado, graças à intervenção de sei pai, em troca da promessa de nunca revelar a verdadeira identidade do indivíduo. Em 1603, por cima de um Tâmisa congelado (uma das cenas mais estupendas da produção) o cortejo fúnebre da rainha atravessa rumo à abadia de Westminster, anunciando o fim de uma dinastia e o nascimento de outra: os Stuarts, sob Jaime VI da Escócia, agora o primeiro da Inglaterra.
Antes de encerrar a presente análise desse longa-metragem tão pitoresco, há que se fazer menção às excelentes atuações dos atores, com destaque para Vanessa Redgrave e Rhys Ifans. No quesito figurino, que a propósito concorreu ao Oscar 2012, o destaque fica para as roupas masculinas pela fidelidade com que reproduziram os gibões e os calções usados pelos ingleses de então. As roupas femininas primaram mais pela riqueza de adereços do que pela composição dos vestidos. Prova disso, são as próprias vestes da rainha. Quanto à crítica especializada, “Anonymous” dividiu elogios, com 46%, dos 151 reviwes publicados, abordando opiniões positivas.

Sebastian Armesto como Ben Jonson.
O desfecho da trama se dá quando Ben Jonson é chamado à casa de Edward de Vere, que deseja lhe entregar seus últimos manuscritos, antes que parta para a imortalidade. Ao tomar conhecimento disso, Robert Cecil apreende o pobre dramaturgo, mas acredita na confissão dele de que os papéis haviam sido destruídos quando seus soldados puseram fogo no teatro ao qual ele se esconde no início do filme. Dessa forma, o legado de Oxford seria preservado, mas sob o nome de outra pessoa: “Shake”-“Speare” (é curioso o fato de que em 1623, Jonson, então o mais célebre dramaturgo de seu tempo, escreveu uma dedicatória na coletânea de obras do homem transfigurado em mito, William Shakespeare, “a alma do século”).
Críticas, conspirações e teorias à parte, embora possa não ser o responsável por tão magnífico legado para as civilizações, as palavras de Shakespeare, conforme o narrador conclui no fim do longa-metragem, transcenderam na mais pura representação de que a escrita também representa poder, e se bem usada, pode erguer multidões e levantar e destruir impérios (como provou-nos a insurreição liderada pelo conde de Essex contra a influência de Robert Cecil). Destarte, uma das lições mais incríveis que podemos retirar de “Anonymous”, é que até mesmo o mais desacreditado dos homens, também é capaz de feitos heroicos.
Confira o trailer do filme:
Renato Drummond Tapioca Neto
Graduando em História – UESC
Texto publicado originalmente em: O Diário de Ana Bolena
Amei o filme….tudo nesse período parece estar cercado de mistérios e eternas suposições…
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