Parte I – Uma educação renascentista
Por: Renato Drummond Tapioca Neto
Filha de um cavaleiro, Sir Thomas Bolena, com uma jovem aristocrata, Elizabeth Howard, Ana Bolena provavelmente nasceu em Blickling Hall (Norfolk), e talvez fosse a mais nova de três irmãos que sobreviveram à idade adulta. Muito do que se sabe hoje a respeito de sua vida está voltado para o campo das especulações. Entre elas, o ano exato de seu nascimento. Uma análise cronológica dos acontecimentos o estabelece entre os anos de 1500 a 1507, porém, é mais plausível que tenha ocorrido em junho de 1501. Uma das provas para tal suposição deriva de uma carta que o seu pai, quando afundado em desonra (provocada pela queda da filha em 1536), enviou ao secretário Cromwell pedindo-lhe ajuda, afirmando que sua mulher, nos primórdios do casamento, concebia uma criança por ano. É possível que tal união tenha ocorrido em 1498, já que o dote da noiva foi pago pela família desta apenas dois anos depois, ou seja, em 1500. Outros autores, como Carrolly Erikson, adotam 1507 como uma possível data de nascimento, baseados nas pesquisas de William Camden, feitas em 1615.

Retrato póstumo de Ana Bolena, por artista desconhecido, baseado em rascunho de Hans Holbein (o Jovem)
Com efeito, Alsion Weir, em sua biografia sobre Maria Bolena (2011), diz que “de acordo com uma nota marginal feita por William Camden em 1615, Ana Bolena nasceu em 1507, data essa também fornecida por Henry Cliffort nas suas memórias de Jane Dormer, duquesa de Feria, impresso em 1643, muito tempo depois de escrito; de acordo com a carta, Ana “sequer tinha vinte e nove anos de idade’, no tempo de sua execução em 1536” (WEIR, 2011, p. 15). Essa sugestão perde plausibilidade quando confrontada com o fato de que Ana foi descrita em 1514 como tendo aproximadamente quinze anos, e vinte em 1521. Nas palavras da historiadora Antonia Fraser, “essa hesitação e confusão quanto à juventude de Ana Bolena tem uma explicação bem simples: ali está uma jovem comparativamente desconhecida, que de repente salta para a fama (ou notoriedade) na idade adulta”. Passados alguns anos, “ela se tornou uma espécie de ‘não ser’ depois de sua queda. Passou-se uma geração e, vejam só, ela era a mãe do soberano que reinava (FRASER, 2010, p. 158).
Sua genealogia também não era das mais ilustres (embora possamos identificar na mesma alguns membros da nobreza): o pai era neto de Sir Geoffrey Bolena, outrora prefeito de Londres (1447) e comerciante de tecidos que, com o dinheiro que acumulou, comprou as terras de Blickling Hall, em Norfolk, e o Castelo de Hever, em Kent. Já pelo lado materno, descendia da nobre casa dos Howard, que tinham parentesco direto com o rei Eduardo I. Com o término da Guerra das Duas Rosas (1485), a família Howard sofreu um duro golpe em suas finanças, visto que Thomas Howard, segundo duque de Norfolk, lutava por Ricardo III, derrotado por Henrique Tudor (futuro Henrique VII). Como consequência, seu título de nobreza e outras posses foram confiscados pela coroa e ele foi preso. Contudo, 4 anos depois Thomas Howard obteve a liberdade, conseguindo manter, inclusive, o condado de Surrey. A família Bolena, por sua vez, gozava de crescente prosperidade naquele período e mantinha boas relações com os Howard, de modo que foi possível arranjar um casamento entre a filha mais velha do conde, Elizabeth, com o herdeiro dos Bolena, Thomas.

Arquiduquesa Margarida da Áustria, por artista desconhecido.
Cortesão deveras experiente e fluente em mais de um idioma, Thomas Bolena conseguiu para a filha mais jovem uma posição no séquito de Margarida da Áustria, regente dos países baixos (dependentes do comércio de tecidos e lãs da Inglaterra). A corte borgonhesa era um verdadeiro centro artístico e intelectual do período. Enviada para este espaço provavelmente em 1513, foi aí que Ana desenvolveu muitos de suas aptidões para a música, dança e pintura, uma vez que a arquiduquesa era particularmente conhecida por seu patronato a pintores e escultores, e também pelos poemas de sua autoria. À época, mademoiselle Boullan (como era então chamada na corte borgonhesa), deveria estar com doze ou treze anos (idade mínima para uma fille d’honneur, o que mais uma vez corrobora para que seu nascimento tenha ocorrido em 1501) e já havia atraído boa impressão por parte da nobreza local. Em missiva ao pai da mesma, a regente escreveu que a achava “tão apresentável e tão agradável, considerando-se sua a pouca idade, que estou mais agradecida ao senhor por tê-la mandado para mim, do que o senhor a mim” (FRASER, 2010, p. 163).
De La Vure (hoje Terveuren), quando a corte da Arquiduquesa passava o verão em Freyr, um palácio localizado nas proximidades de Bruxelas, Ana escreveu ao pai sua primeira carta de que se tem registro, na qual compartilhava das ambições de seu progenitor. Escrita em francês, a missiva atesta como a autora ainda se encontrava deficitária no idioma comercial da Europa. A mensagem dizia o seguinte:
Senhor, eu entendo pela sua carta que você deseja que eu me torne uma mulher de boa reputação quando eu for para a corte, e você me diz que a rainha se dará ao trabalho de conversar comigo, e isso me dá grande alegria, de pensar em falar com uma pessoa tão sábia e virtuosa. Isso me deixará entusiasmada para falar bem o francês, e especialmente também porque você me aconselhou para trabalhar bastante nisso, tanto quanto eu puder (apud IVES, 2010, p. 22).
Entretanto, esse documento também demonstra certa maturidade e independência por parte da jovem, pois no segmento do mesmo, ela escreve em linhas bem delineadas que redigia a missiva sem a orientação de Symonnet, seu tutor. Isso, por sua vez, denota que a filha desejava mostrar ao pai como seus estudos estavam progredindo. Ao atingir as expectativas de Sir Thomas, um destino ainda mais brilhante aguardava Ana, quando foi convocada para integrar, um ano depois, o grupo de damas de Mary Tudor, que viajava para a França para se casar com o idoso rei Luís XII. Segundo Antonia Fraser, aos 13 anos, Ana Bolena já tinha idade para demonstrar sua inteligência, convencendo seu pai de que valia a pena continuar investindo nela. Não obstante, “tinha um personalidade muito diferente da de sua doidivanas irmã Mary; muito mais inteligente e muito mais aplicada” (2010, p. 163-4).

Carta de Ana Bolena endereçada ao pai, em 1513 (arquivo da biblioteca de Corpus Christi College, em Cambridge).
Ana, certamente, teve acesso à coleção de manuscritos iluministas de Margarida, incluindo livros e objetos de arte, e rapidamente absorveu boa parte da ideologia que aquela atmosfera renascentista poderia lhe oferecer. Em 14 de agosto de 1514, Sir Thomas escreveu à arquiduquesa pedindo permissão para que esta dispensasse sua filha das atividades na corte. Sendo assim, após ter passado pouco mais de um ano nos países baixos, onde adquiriu uma educação sofisticada, mademoiselle Boullan juntou-se à sua irmã mais velha no serviço de Mary Tudor, que deixou a Inglaterra com extensa comitiva em outubro, e foi coroada rainha consorte da França em seis de novembro daquele ano. Eric Ives aponta para o fato de que “em agosto de 1514, porém, Ana havia sido listada para a França, mas o que aconteceu então não é claro. Sua irmã Maria também iria, e a lista nos arquivos franceses mostra que Maria Bolena era uma das damas do séquito da nova rainha da França, mas não faz menção a Ana” (2010, p. 27). Porém, a irmã mais nova de Henrique VIII não conservou por muito tempo o status de soberana do país mais requintado da Europa, pois seu marido, o rei, já muito doente e idoso, faleceu. A princesa Mary, porém, retornou à pátria novamente casada, dessa vez com Charles Brandon, sem que os demais soubessem. Enquanto isso, a filha mais nova dos Bolena permaneceu subordinada à nova rainha, Claudia de Valois, em um universo pecaminoso e repleto de glamour, onde uma dama facilmente se entregaria aos jogos de amor, cujo maior prêmio era sua honra.
CONTINUA…
Referências Bibliográficas:
ERIKSON, Carolly. Ana Bolena: Un Amor Decapitado. Tradução de León Mirlas – Buenos Aires: Atlántida, 1986.
FRASER, Antonia. As Seis Mulheres de Henrique VIII. Tradução de Luiz Carlos Do Nascimento E Silva. 2ª edição. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010.
IVES, Eric W. The life and death of Anne Boleyn: ‘the most happy’. – United Kingdom: Blackwell Publishing, 2010.
LINDSEY, Karen. Divorced, Beheaded, Survived: A Feminist Reinterpretation of the Wives of Henry VIII. – Cambridge, M A: Da Capo Press, 2013.
WEIR, Alison. Mary Boleyn: the mistress of kings. – New York: Ballantine Books, 2011.