Por: Renato Drummond Tapioca Neto
Há 15 de janeiro de 1559, um evento de proporções magistrais ganhava espaço nas ruas de Londres, então uma das cidades mais populosas da Europa: a coroação da última herdeira viva de Henrique VIII, Elizabeth, fruto da união do mesmo com sua segunda esposa. Muitas são as expectativas e esperanças depositadas nesta princesa com idade de 25, que ha pouco tempo estivera reclusa sob suspeita de conspirar contra a autoridade e vida do monarca vigente, sua meia-irmã, Mary I, que em seu curto reinado (1553-1558), varreu o país sob as chamas da inquisição e investiu quase todo o tesouro real em campanhas militares lançadas por seu marido, Felipe II rei da Espanha, que lhe custaram à perda de Calais (última conquista do grande Henrique V do outro lado do canal) para os franceses.

Elizabeth subindo o Tâmisa de barco em direção à Torre de Londres, por Ellis Silas (1953)
Todas as fogueiras, todos os patíbulos ainda armados, eram uma triste memória para os ingleses, que viam na ascensão de uma princesa protestante o fim de todos esses anos de medo, inclusive do medo de professar a própria fé. Mas chega de lamentações, o que os londrinos querem agora é comemorar. No dia 13 de janeiro de 1559, Elizabeth descera o Tâmisa rumo à torre de Londres, situada a leste da City (centro comercial), “ao mesmo tempo fortaleza, arsenal, castelo real e prisão de estado” – nas palavras de Jacques Chastenet – onde ela mesma já estivera presa. Assim como a Bastilha em Paris, a Torre estava ali para simbolizar o poder real, e para firmar esta certeza, a nova rainha passaria ali duas noites antes de prosseguir com o cortejo cerimonial rumo à Westminster.
Todavia, no dia 14, Elizabeth pretendia fazer o percurso oposto: em vez de seguir para a Abadia em barcaça, como fizera ao se locomover para a torre, decidiu ir pela cidade e assim manter contato com seus súditos. Foi uma empreitada um tanto corajosa por parte desta senhora real, uma vez que Londres, apesar de seu alto índice demográfico, ainda era uma cidade medieval para os padrões do século XVI, carente de saneamento básico, por onde se estendiam inúmeras barracas de comerciantes, pessoas de todos os tipos e índoles, com ruas estreitas e casas, quase todas, de madeira. Contudo, não se mantinha ali uma atmosfera de completa miséria.
Naquela data, porém, o tempo não se mostrava amistoso: caíra neve no sábado de procissão. Quando os sinos tocaram, os curiosos se aproximaram da torre para verem a ponte levadiça tocar o chão, dando passagem por sua porta abobadada ao cortejo real. Jacques Chastenet, autor da biografia mais completa lançada no Brasil sobre Elizabeth I, faz uma importante descrição do que a multidão viu naquele instante:

Elizabeth atravessando os portões da Torre de Londres (ilustração de por Ellis Silas, 1953).
“À frente cavalgavam timbaleiros e tocadores de trombeta, seguidos de arautos e passavantes de tabardos esquartelados com os leopardos da Inglaterra e os lírios da França. Depois vem uma cavalgada compreendendo algumas centenas de escudeiros e de senhores – gorros emplumados, barbas frisadas, golas bem pregueadas, cadeias de ouro, gibões bordados e rebordados, capas curtas, calções recortados, longas espadas batendo nos flancos das montadas ricamente caparazonadas. Os últimos a aparecer são os chefes das grandes casas feudais; trazem a regalia, insígnias monárquicas que vão servir para a coroação: a coroa de Alfredo, O Grande, a cap of maintenance, o globo, o cetro com a cruz, o cetro com a pomba, a espada do Estado, a espada da Justiça temporal, a espada da Justiça Espiritual, a espada da Misericórdia, o anel místico, as esporas de ouro…” (CHASTENET, 1976, pag.12).
Atrás dessa primeira parte do cortejo, havia o duque de Norfolk, conde-marechal hereditário e primo da rainha, levando na mão o seu bastão de comando. Então há o que Chastenet define de espaço entre uma dupla fileira de homens armados de roupas carmesins, do qual surge a liteira real, uma espécie de plataforma forrada de tecido dourado e puxada por quatro mulas, que sustenta o trono onde senta a rainha.
Elizabeth não poderia estar mais deslumbrante para a ocasião: trajava um vestido de brocado de ouro, incrustado de topázios, jacintos e granadas em todas as costuras; em suas orelhas pediam duas pérolas leitosas; no pescoço, vinha apertado um colar de gemas preciosas e uma gola extensa tecida a fios de ouro; sob os longos cabelos ruivos, quase dourados, encimava-se uma diadema. Para cada lado que virava, a monarca acenava para a multidão que lhe gritava “Deus salve a rainha”, na medida em que ela respondia: que “Deus agradeça a todos vocês”. No entanto, nem toda a Inglaterra estava jubilosa com o acontecimento, visto que o norte do país ainda se mantinha predominantemente católico e preso a velhas superstições (alguns anos mais tarde, essa parcela da população inglesa se levantaria contra sua rainha protestante).

Visão aérea da coroação de Elizabeth I.
Atrás de Elizabeth, vinha o seu palafrém, conduzido à mão pelo mestre de cavalaria, Lorde Robert Dudley, que no reinado anterior fora considerado traidor e encarcerado na torre. A procissão, com eclesiásticos e damas montadas em mulas atrás, avançava fazendo aqui e ali algumas paradas para pequenas apresentações alegóricas das virtudes da nova rainha. Dos temas exibidos, destaca-se em especial a Unidade e a Concórdia, que tinha como personagens os ancestrais Tudor de Elizabeth, incluindo sua mãe Ana Bolena; também havia o Tempo e a Verdade, que trazia uma bíblia inglesa com a figura da rainha; finalmente, entre as estátuas de Gog e Magog, eis que surge a profetiza Débora, a famosa juíza de Israel que conduziu o povo eleito à vitória (é irônico o fato de que 29 anos depois, Elizabeth, ao derrotar a armada espanhola, consolidaria sua supremacia na Europa, levando a Inglaterra para um período de estabilidade. Daí o fato de alguns historiadores de escola mais tradicional a definirem como a nova Débora).
De acordo com um cronista da época, “Se alguma vez, alguma pessoa teve o dom ou soube a forma de ganhar o coração das pessoas”, relatou, “essa pessoa foi a rainha”. No domingo, dia 15, considerada a data mais auspiciosa para a coroação pelo astrólogo Jonh Dee, Elizabeth caminhou por sob um tapete azul, desde o palácio de Withehall até a Abadia de Westminster, aonde Oglethorpe, bispo de Carlisle, conduziria a cerimônia de coroação, visto que o cargo de Arcebispo de Cantuária estava vago desde a morte do Primaz Pole. Católico fervoroso, o arcebispo de York havia se recusado a oficializar o evento. Philippa Gregory, em sua versão romanceada do acontecimento, discorre sobre o fato de que o bispo de Carlisle só aceitara coroar a nova rainha mediante a condição de que esta se casaria com um príncipe católico, o que decididamente não aconteceu.

Outro desenho da procissão de coroação de Elizabeth I (1559), arquivado no College of Arms
Após ter sido apresentada aos quatro pontos cardeais, seguiu-se “a prestação do juramento, a unção e a coroação propriamente dita” (CHASTENET, 1976, pag. 15). Uma cópia de um quadro original perdido, de autor desconhecido, retrata com primor a rainha envolta dos mantos litúrgicos, em cores ouro e púrpura, sentada no trono de Eduardo, o Confessor, de coroa na cabeça, globo e cetro nas mãos. Em seguida, ela recebeu a homenagem de cada um dos pares laicos e eclesiásticos, que se ajoelhavam perante a soberana, beijavam-lhe a face e depois tocavam na coroa, comprometendo-se a protegê-la. Jacques Chastenet, no prólogo do seu livro A vida de Elizabeth I de Inglaterra, diz que em meio a cânticos de alegria, a rainha comungava.
“… Mas, com profunda satisfação dos protestantes, na altura da Elevação, retira-se um momento para trás do altar. Algumas orações foram recitadas em Inglês. Os papistas disfarçaram mal o seu descontentamento” (CHASTENET, 1976, pag. 15).

Elizabeth I nos trajes da coroação (1559). Cópia de um original perdido do século XVI, por artista desconhecido.
Foi no meio do barulho ensurdecedor, “evocador do Juízo Final” segundo uma testemunha, que a procissão partiu da Abadia em direção a Westminster Hall, para o clássico banquete. Havia ali pratos e bebidas de todos os gostos, que variavam de pesadas peças de caça a cisnes inteiros e empadas gigantescas, de vinhos da França e Espanha à amarga cerveja que jorrava de fontes. A rainha não demonstrava o mínimo de cansaço, até mesmo permitindo-se caçoar de certos detalhes da cerimônia, como por exemplo, o óleo da sagração, que a seu ver era gordurento e mau cheiroso. Entretanto, nem todas as descrições do evento foram animadoras. O enviado do Duque de Mantova disse que em sua opinião “ela excedeu os limites que o decoro impõe”. Visão esta que não foi compartilhada pelos súditos ingleses, que o tempo todo prestava homenagens àquela jovem soberana, que carregava em suas costas a promessa de um governo próspero e tolerante. Era esse o mágico início de um dos maiores reinados já testemunhados pela Europa.
Referências Bibliográficas:
CHASTENET, Jacques. A Vida de Elizabeth I de Inglaterra. Tradução de José Saramago. 2ª edição. São Paulo: Círculo do Livro, 1976
DUNN, Jane. Elizabeth e Mary: primas, rivais, rainhas. Tradução de Alda Porto. – Rio de Janeiro: Rocco, 2004.
Texto publicado originalmente em: O Diário de Ana Bolena