Por: Enzo Novello
O mundo foi pego de surpresa – ou pelo menos a parte do mundo que se importa com isso – com o discurso de Ano Novo da rainha Margrethe II da Dinamarca, no qual a soberana octogenária anunciou sua intenção de abdicar do trono que ocupava há cinquenta e dois anos. Citando problemas de saúde, declarou que já não conseguia dar conta do cargo como outrora e que era a altura apropriada para transmitir a responsabilidade para a próxima geração.
Não é necessariamente surpreendente, a nível europeu, que um monarca abdique. Quatro dos seis monarcas dos Países Baixos o fizeram, bem como dois reis belgas e quatro grão-duques de Luxemburgo. Mas estas, que são pejorativamente chamadas bicycle monarchies (termo, por vezes com conotação depreciativa, que os britânicos usam para monarquias mais “informais”, sobretudo as do Benelux), são estados monárquicos mais recentes e formados por processos históricos diferentes de outros reinos do continente europeu. Na Escandinávia, essas renúncias não são de todo comuns. Aliás, na Dinamarca, que é a monarquia mais antiga da Europa, o único precedente aconteceu há quase 900 anos e numa época em que a sucessão ainda não era hereditária.

A rainha Margrethe II surpreendeu a todos ao anunciar sua abdicação ao trono, no seu tradicional discurso de Ano Novo.
A família real é popular entre os dinamarqueses e muitos apontam a própria rainha como causa disso. Ao excelente cumprimento de suas funções constitucionais, se acrescenta uma personalidade carismática com um quê de irreverência, sensibilidade artística e envolvimento em projetos culturais (seja ilustrar a edição dinamarquesa de O Senhor dos Anéis, desenhar figurinos para para balés ou elaborar, através de colagens, a arte conceitual que serviu de guia para a cenografia de uma produção recente da Netflix). Se confiarmos nos números apresentados pelo periódico inglês The Times, sob o cetro de Margrethe o índice de aprovação da monarquia subiu de 45%, em 1972, para hoje passar dos 80%[i]. Logo, não é espantoso que muitos tenham se emocionado com a decisão da monarca. Ela foi, afinal, uma figura constante no imaginário nacional. Contudo, nos discursos que emergiram no contexto da abdicação, com frequentes referências à rainha como um símbolo nacional, como elemento unificador ou mesmo como “mãe do país”, é possível perceber a perduração (ou, pelo menos, os frutos) de um processo iniciado há séculos.
O estabelecimento da identidade nacional dinamarquesa, ou seja, um conjunto de elementos em comum que inspirasse naqueles que habitavam o território dinamarquês um sentimento de unidade e pertença, foi influenciado por transformações territoriais, sociais e políticas. O século XIX viu o Império Oldenburg, um estado compósito multilinguístico e multicultural (que incluía a Islândia, a Noruega, a Groenlândia, os ducados de Schleswig e Holstein e mais), após uma série de derrotas militares, se transformar em um Estado Nação homogêneo e de pequenas dimensões. Para este processo, dois eventos foram absolutamente fulcrais: a perda da Noruega em 1814, que passou ao domínio sueco, e a perda dos ducados de Schleswig e Holstein em 1864, após uma derrota militar para a Prússia e a Áustria. Dessa forma, o território nacional ficou essencialmente restrito a áreas habitadas por falantes da língua dinamarquesa, tendo esta última se tornado elemento chave da construção identitária. Já o considerável desenvolvimento postal e de transporte abriu a possibilidade de conexões que ultrapassassem a esfera local, permitindo a circulação de informações, ideias e pessoas por todo o território nacional, ao que se acresce um conjunto de leis assinado pelo rei Frederik VI, que decretava a obrigatoriedade da educação para crianças tanto no campo quanto nas cidades, que ajudou a uniformizar a transmissão da língua, da história e de valores religiosos pelo país.
E qual o lugar da monarquia entre estas transformações? De maneira transnacional, sobretudo na segunda metade do século XIX, intelectuais que teorizaram os nacionalismos emergentes foram muitas vezes atraídos pela instituição monárquica, que fornecia um foco explícito de identidade nacional. Estando acima da política, a coroa podia inspirar simpatia independente de afiliações partidárias e representar não interesses pessoais, mas os dos cidadãos como um todo e mesmo da própria nação. Vai se estabelecendo, portanto, uma relação simbiótica entre a monarquia e os discursos nacionalistas.

Segundo Jes Fabricius Møller: “O monarca é, portanto, não apenas um representante do Estado, mas também – e o que é talvez mais importante – um símbolo da ou para a nação. Isto faz da monarquia uma instituição dependente da afeição pública pelo monarca reinante”.
Encadeado pela Revolução Francesa e impulsionado pelas revoluções liberais que se proliferaram pela Europa, houve um processo de transformação no modo que as dinastias reinantes “justificavam” a sua posição. A decadência do Antigo Regime enterrou a ideia do direito divino dos reis, que não mais reinavam porque Deus assim quis, mas porque o povo sobre quem reinavam consentia. Como consequência direta, por exemplo, a cerimônia de coroação, com profundo significado religioso, sai de moda em muitos países (ainda que com exceções, como a Grã-Bretanha e o Brasil), sendo substituída por uma aclamação. Se, por um lado, houve uma intelectualidade que enxergava na coroa um elemento unificador e símbolo nacional, por outro, havia também a necessidade da realeza de legitimar suas pretensões dinásticas e os privilégios que ainda possuíam, e.g. a existência de uma lista civil que custeasse os seus gastos. Em resumo, se a legitimidade não vinha mais diretamente dos céus, os monarcas passaram a ter que incluir a “sedução das massas” na sua ordem do dia. Fazendo uma ponte com o momento atual, a fala de um cidadão dinamarquês, Erik Magten, para a agência de notícias britânica Reuters ilustra bem a sobrevivência dessas relações: ele diz que a família real proporciona uma «experiência» aos dinamarqueses e eles retribuem «um pouco» com seus impostos[ii].
Sendo a Dinamarca uma monarquia parlamentar e democrática, as funções do monarca como Chefe de Estado são puramente simbólicas e cerimoniais. A coroa não possui mais qualquer forma de poder político ou judicial e ainda que a assinatura de Sua Majestade seja necessária para resoluções administrativas e constitucionais, como a nomeação e destituição de ministros ou decisões sobre a política externa, deve ser necessariamente acompanhada pela de um ministro e não há qualquer liberdade de veto. A última vez que um rei agiu por conta própria em questões políticas foi em 1920, quando Christian X demitiu o governo eleito sem se certificar de que havia uma maioria contra ou buscar o apoio do Primeiro Ministro, o que culminou em uma grave crise constitucional. Quando estão no exterior, os membros da família real têm feito esforços para promover businesses dinamarqueses, mas o impacto econômico dessas visitas ainda é impreciso. Em suma, a sua relevância para a sociedade assenta muito na importância histórica da instituição monárquica, sendo a Dinamarca um reino cuja história se estende pelas brumas do tempo, e no papel do monarca enquanto símbolo nacional. As multidões que se reúnem em frente aos castelos de Amalienborg ou Christiansborg têm uma motivação mais emocional do que racional: estão lá para saudar e homenagear um símbolo pelo qual sentem uma ligação afetiva, não para celebrar a boa governação de um líder político. Segundo Jes Fabricius Møller: “O monarca é, portanto, não apenas um representante do Estado, mas também – e o que é talvez mais importante – um símbolo da ou para a nação. Isto faz da monarquia uma instituição dependente da afeição pública pelo monarca reinante”[iii].
E se no passado a monarquia teve sua importância no processo de nation-building, na contemporaneidade ela ocupa espaço no de nation-branding (conjunto de estratégias recorridas por um país para transmitir uma determinada imagem ou ideia benéfica de si). Sendo a terra natal do célebre autor Hans Christian Andersen, a ideia dos contos de fada permeia o imaginário que os dinamarqueses exportam para o exterior, principalmente com intenções voltadas para o fomento do setor turístico – páginas de turismo como Visit Denmark e Visit Copenhagen recorrem a esse discurso para promover o país como destino de viagem[iv]. Basta lembrar que um dos monumentos mais famosos da capital faz alusão ao conto fantástico A Pequena Sereia. A ideia de uma monarquia, naturalmente, serve muito bem a esse propósito. Os sites turísticos ressaltam os castelos e palácios habitados por “príncipes e princesas da vida real”. Essa noção da Dinamarca como uma fairy-tale land é não raramente associada à família real, principalmente no contexto dos seus casamentos, como aconteceu no caso dos dois filhos da rainha emérita[v].

Margrethe II “conseguiu nutrir com extremo sucesso a imagem mítica e quase sagrada da casa real”, desempenhando “o papel de uma figura unificadora, uma mãe do país determinada”, o que “tornou-lhe possível atenuar as tensões na sociedade e, assim, estabilizar o capitalismo dinamarquês”.
A relação afetiva entre a população e a figura reinante se faz sentir até hoje, como mostram as reações ao discurso de ano novo da rainha. Entre as declarações de cidadãos dinamarqueses recolhidas pelo britânico The Guardian, Morten Pelch disse: “Eu chorei. (…) Ela é a mãe do nosso país (…). E ela esteve lá desde que eu era pequeno. Hoje, toda a Dinamarca chora”[vi]. O entusiasmo para com a realeza foi assim justificado por Anna Karina Laursen, questionada pela agência Reuters: “A família real representa tudo que é dinamarquês, os seus contos de fadas e tradições”[vii]. Mesmo nas redes sociais, principalmente no TikTok, houve uma proliferação de reaction videos ao discurso: muitas exclamações de surpresa e até alguns olhos marejados[viii].
O jornal digital de política dinamarquesa Altinget reuniu declarações das principais figuras políticas do país, entre as quais se encontram inúmeras referências à Margrethe II como um símbolo unificador e ao seu bom trabalho como representante da Dinamarca e dos dinamarqueses. Até mesmo Pelle Dragsted, líder do partido eco-socialista Enhedslisten (o único com representação no Parlamento que é declaradamente contra a monarquia), classificou o momento como o fim de uma era e afirmou que a rainha conseguia unificar todos os dinamarqueses em sua «gloriosa diversidade». Especialmente emblemáticos foram os comentários da Primeira-Ministra Mette Frederiksen, “A Rainha Margrethe é o epítome da Dinamarca e através dos anos colocou palavras e sentimentos em quem somos como povo e como nação”, e de Pernille Vermund, líder do partido conservador Nye Borgerlige, “Dizer adeus à nossa rainha como regente é para mim (…) como dizer adeus a uma parte do meu país, da minha história, da minha fundação”[ix]. Fica evidente a identificação da figura da monarca com a Nação: a rainha é o ápice de danskhed, ela simboliza a essência do que é ser dinamarquês.
A revista independente Revolution, de viés marxista, afirmou que, em seus cinquenta e dois anos como Chefe de Estado, Margrethe II “conseguiu nutrir com extremo sucesso a imagem mítica e quase sagrada da casa real”, desempenhando “o papel de uma figura unificadora, uma mãe do país determinada”, o que “tornou-lhe possível atenuar as tensões na sociedade e, assim, estabilizar o capitalismo dinamarquês”[x], atribuindo este sucesso em parte a nostalgia de uma época de estabilidade e prosperidade econômica, afinal ela subiu ao trono quando o país já se recuperava dos efeitos da Segunda Guerra. Contudo, defende a referida revista, o atual rei não gozará deste trunfo, porque ascende em um contexto de muito menos estabilidade e porque não possui as mesmas competências de monarca constitucional que sua mãe. É inegável que, sob o comando de Margrethe, a monarquia dinamarquesa navegara por águas calmas, como comprovam a popularidade da casa real e a pouquíssima contestação do regime. A sobrevivência da instituição e a sua prosperidade são evidências do sucesso de um processo político-cultural que foi gradualmente substituindo o papel político da coroa dinamarquesa por um papel simbólico, fazendo dela elemento unificador e nacional-identitário. Se o reinado de Frederik X será tão exitoso quanto o de sua predecessora, só o tempo dirá… mas os dinamarqueses já podem se orgulhar de ter acrescentado mais um elo a uma corrente, literalmente, milenar.
Notas e Referências Bibliográficas:
[i] https://www.thetimes.co.uk/article/denmark-king-crown-prince-frederik-danish-republicans-9w7xwjkxd. Consultado em 13/01/2024
[ii] https://www.reuters.com/world/europe/danes-shrug-off-cost-fairytale-royals-they-await-new-king-2024-01-10/. Consultado em 13/01/2024. O autor assume a responsabilidade por todas as traduções aqui apresentadas.
[iii] MØLLER, JES FABRICIUS, “The Monarch Head of State and National Symbol” in CHRISTIANSEN, Peter Munk, ELKLIT, Jørgen, NEDERGAARD, Peter (ed.), The Oxford Handbook of Danish Politics, Oxford, Oxford University Press, 2020, p. 55.
[iv] https://www.visitcopenhagen.com/copenhagen/activities/why-copenhagen-modern-day-fairy-tale; https://economictimes.indiatimes.com/magazines/travel/copenhagen-is-a-fairy-tale-destination-with-hans-lookalikes-renaissance-castles-and-vikings-blowing-lurs/articleshow/59612852.cms?from=mdr; https://edition.cnn.com/travel/article/copenhagen-fairy-tale-capital-world/index.html; https://www.visitdenmark.com/sites/visitdenmark.com/files/2021-05/fairytales_itinerary_1.pdf. Consultados em 14/01/2024.
[v] Para o casamento do filho mais novo da rainha, príncipe Joachim, exemplos podem ser encontrados no discurso da mídia dinamarquesa, cf. PHILLIPS, Louise, “Media discourse and the Danish monarchy: reconciling egalitarianism and royalism”, Media, Culture & Society, v. 20, n. 2, 1999, pp. 59-70. Para o então príncipe herdeiro Frederik, remetemos para o discurso feito pelo premier Anders Fogh Rasmussen: https://english.stm.dk/the-prime-minister/speeches/speech-by-prime-minister-anders-fogh-rasmussen-at-the-dinner-at-christiansborg-palace-tuesday-11-may-2004/. Consultado em 14/01/2024.
[vi] https://www.theguardian.com/world/2024/jan/01/all-of-denmark-is-crying-danes-react-to-margrethe-iis-abdication. Consultado em 13/01/2024. Grifo nosso.
[vii] https://www.reuters.com/world/europe/danes-shrug-off-cost-fairytale-royals-they-await-new-king-2024-01-10/. Consultado em 13/01/2024.
[viii] https://people.com/queen-margrethe-abdication-viral-video-shows-shocked-reaction-news-across-denmark-8422328. Consultado em 13/01/2024.
[ix] https://www.altinget.dk/artikel/en-dronning-af-vor-tid-og-med-format-til-det-sidste-saadan-lyder-reaktionerne-paa-dronning-margrethes-historiske-beslutning. Consultado em 13/01/2024.
[x] https://marxist.dk/artikler/danmark/6582-dronningens-abdikation-dansk-kapitalisme-mister-en-stottepille.html. Consultado em 14/01/2024.


