Por: Renato Drummond Tapioca Neto
No dia 08 de fevereiro de 1587, uma rainha ungida por Deus era decapitada por ordens de outra soberana, sob acusação de traição. Mary Stuart havia sido coroada soberana da Escócia quando ainda não havia feito um mês de vida. Pelo casamento, foi também agraciada com a coroa da França, além de possuir uma forte reivindicação ao trono da Inglaterra. Essa enorme herança, com efeito, foi a causa do esplendor e também de declínio daquela que fora a mulher mais cobiçada pelos príncipes da Europa. À beira da morte, Mary dedicou seus últimos instantes a preparar sua alma para o pós-vida através de orações, além de dispor meticulosamente dos bens materiais que ainda lhe restavam da melhor forma possível, distribuindo-os entre aqueles que permaneceram ao seu lado durante todo o seu cativeiro. Também escreveu cartas ao seu cunhado, o rei Henrique III da França, bem como ao seu esmoler, pedido a todos os que estavam tristes pela sua morte iminente para que “abandonassem o pranto, e em vez disso se regozijassem, porque ela ia agora partir de um mundo de infelicidades”. A Jane Kennedy, que havia passado toda uma geração ao seu serviço, ela indagou: “Eu não lhe disse que isso acabaria acontecendo? … Eu sabia que eles nunca me deixariam viver, eu era um obstáculo muito grande para a sua religião” (apud FRASER, 2011, p. 532).

Última carta de Mary Stuart, escrita horas antes de sua morte, endereçada ao rei Henrique III da França.
Solicitando papel e tinta, Mary Stuart escreveu uma carta a Henrique III, dando detalhes de como se sentia naquele momento, sua situação de rainha cativa, na qual condenava seus algozes e pedia também para que ele fosse gentil para com os criados que lhe serviram por tantos anos:
8 de fevereiro de 1587
Para o rei mais Cristão, meu irmão e antigo aliado, Irmão Real, tendo a vontade de Deus, pelos meus pecados eu penso, me jogado para o poder da rainha minha prima [Elizabeth I], em cujas mãos eu sofri muito por quase vinte anos, finalmente fui condenada à morte por ela e seus ministros. Eu pedi pelos meus papéis, que haviam sido tirados de mim, a fim de que eu possa escrever a minha vontade, porém, tenho sido incapaz de recuperar qualquer coisa que me seja útil, ou mesmo obter permissão de sair, seja para fazer a minha vontade ou para ter meu corpo livremente transportado depois da minha morte, como eu gostaria, para o vosso reino, onde tive a honra de ser rainha, vossa irmã e velha aliada.
Hoje à noite, depois do jantar, fui informada da minha sentença: eu serei executada como uma criminosa às oito da manhã. Eu não tenho tempo para lhe contar tudo o que tem acontecido, mas se vós escutar o meu médico e meus outros infelizes servos, saberá a verdade e como, graças a Deus, desprezei a morte e como me encontro inocente de qualquer crime, mesmo se eu fosse sua súdita [de Elizabeth]. A Fé Católica e a afirmação do meu Direito Divino à coroa inglesa são as duas questões pelas quais eu fui condenada, e mesmo assim não estou autorizada a dizer que morro pela religião Católica, por causa do medo da interferência deles. A prova disso é que levaram embora o meu capelão e, apesar de ele ainda estar no edifício, não tem permissão para vir e ouvir a minha confissão e ministrar o Último Sacramento, enquanto eles têm sido bem insistentes em que eu receba o consolo e instrução do seu ministro, trazido aqui de propósito. O portador desta carta e seus companheiros, a maioria deles vossos súditos, irão lhe testemunhar minha conduta nas últimas horas. Resta-me implorar a Sua Cristianíssima Majestade, meu cunhado e velho aliado, que sempre professou seu amor por mim, que me dê agora prova de vossa bondade nesses pontos: em primeiro lugar pela caridade, que pague aos meus infelizes servos os salários que lhes são devidos – este é um fardo da minha consciência que só vós poderá aliviar: além disso, que orações sejam oferecidas a Deus por uma rainha que carregou o título de a Mais Cristã, e que morre como uma católica, despojada de todos os seus bens. Quando ao meu filho, eu recomendo-o a vós na medida em que ele merece, pois não posso responder por ele. Tomei a liberdade de vos enviar duas pedras preciosas, talismãs contra a doença, confiando que vós desfrutareis de uma boa saúde e uma vida longa e feliz. Aceite-as de vossa adorada cunhada que, na morte, vos dá testemunho de seus sentimentos. Novamente, eu recomendo-vos meus servos. Dê instruções, se isso for do vosso agrado, para a salvação da minha alma, que parte do que vós me deveis seja pago, e que pelo amor de Jesus Cristo, seja deixado àqueles que lhe contarão como morri o suficiente para realizar missas em minha memória e as costumeiras esmolas.
Quarta-feira, duas da manhã
Vossa mais amada e verdadeira irmã.
Mary R.
Na sua última carta, Mary Stuart afirmava que a causa principal de sua morte se devia à sua religiosidade. Na qualidade de rainha católica, muitos ministros da Coroa inglesa temiam vê-la como presumível herdeira do trono, ameaçando assim a estabilidade da religião protestante naquele reino. Partindo dessa convicção, Mary assumiu o papel de mártir católica, chegando até mesmo a escolher vestes de peregrina para o momento em que o carrasco lhe tiraria a vida. Um dado curioso no documento, e que não deve passar despercebido, é que a missivista solicita ao rei francês que arque com as dívidas deixadas por ela, especificamente para com a sua criadagem. No imaginário católico-cristão, temia-se que assuntos não resolvidos nesta vida poderiam ser um entrave para a entrada da alma ao paraíso. Daí a preocupação de muitos que estava à beira da morte em saudar todos os seus débitos neste mundo, para que o espírito se libertasse da matéria. Gestos de caridade, como esmolas aos pobres, também eram considerados bem vistas aos olhos do Senhor. Além disso, ela também pedia para que missas fossem celebradas em seu louvor, uma vez que não tivera acesso a um padre de sua religião que pudesse lhe ministrar os sacramentos, na esperança de garantir sua transição para o mundo espiritual. Por último, ela implora ao rei que leve seu filho, o rei James VI da Escócia, em consideração, embora “na medida em que ele merece, pois não posso responder por ele”. Seu coração, por sua vez, deveria ser enterrado na França, uma vez que ali passara os momentos mais felizes de sua vida.

Solicitando papel e tinta, Mary Stuart escreveu uma carta a Henrique III, dando detalhes de como se sentia naquele momento.
O pouco dinheiro que Mary ainda dispunha naquele momento, bem como seus objetos de uso pessoal, foi dividido em pequenas porções, colocadas dentro de pacotes assinados pela própria rainha, com o nome de cada um dos servos a quem ela desejava presentear. Bourgoing, por exemplo, recebeu anéis, caixas de prata e o livro de canções da rainha; Elizabeth Courle recebeu alguns retratos em miniatura, adornados em ouro, de Mary, Francisco II e James; Melville recebeu uma pequena tábua de ouro com outro retrato de James. Algumas peças que remetiam ao seu status real, porém, foram destinadas aos seus parentes Guise, ao rei e a rainha da França, e a sua sogra, Catarina de Médici. Por último, a outrora rainha da Escócia reelaborou seu testamento, tendo seu primo Henrique, duque de Guise, Beaton, o bispo de Ross, e du Ruisseau, seu chanceler em França, como executores:
Em nome do pai, do Filho e do Espírito Santo;
Eu, Mary, pela graça de Deus rainha da Escócia, viúva dotada de França, estando prestes a morrer, e não tendo meio de fazer meu testamento, fiz estes artigos por escrito, os quais exijo e quero que tenham a mesma força como se tivessem feitos em forma.
Protestando morrer na fé católica, apostólica e romana. Antes de tudo, quero que seja feito um ofício completo por minha alma na igreja de Saint-Denis, na França, e outro em S. Pedro de Reims, onde todos os meus servidores se encontrarão de modo por que será ordenado àqueles a quem encarrego, aqui abaixo citados.
E ainda, que uma missa anual seja estabelecida para orar por minha alma, perpetuamente, no lugar e da maneira que for julgada mais cômoda.
Por quem de direito, quero que minhas casas de Fontainebleau sejam vendidas, esperando que, além do mais, o rei me ajude, como requer minha memória.
Quero que minha terra de Trespagny caiba ao meu primo de Guise, para uma de suas filhas, se ela vier a se casar. Nesses quarteirões, deixarei a metade dos meus pagamentos vencidos que me são devidos, ou uma parte, com a condição de que a outra seja paga para ser pelos meus executores utilizada em esmolas perpétuas.
Por quem melhor puder, os documentos serão procurados e liberados de acordo com a citação para fazer a sua demanda.
Quero, também, que o dinheiro que se retirar do meu processo de Secondat seja distribuído como se segue:
Primeiro, para o pagamento das minhas dívidas e mandatos junto citados, que já não serão pagos. Primeiro, os dois mil escudos de Courle, que desejo lhe sejam pagos sem nenhuma contradição, como se fosse um presente de noivado, sem que Nau, nem outra pessoa, lhe possa exigir nada, por qualquer obrigação que ele tenha, tanto mais que ela é apenas fictícia e o dinheiro era meu e não emprestado, o que não deixei de lhe mostra, e depois retirei, e não me tomaram depois com o resto. Charteloy, a quem dou, se ele o puder cobrir, como prometeu, por pagamento, os quatro mil francos prometidos por minha morte, e mil para casar uma das irmãs dele, e tendo-me pedido o resto para as suas despesas na prisão. Quanto à exigência de tal quantia à Nau, não é obrigatória; e por isso, sempre foi minha intenção ser ela a última paga, e ainda no caso em que possa haver a aparência de nada ter feito contra a condição pela qual eu os tinha dado, com o testemunho dos meus servidores.
Quanto à parte dos dois mil e duzentos escudos em ele me fez abonar, por ele emprestados, para meu serviço de Beauregard, até seiscentos escudos; e de Gervais trezentos, e o resto não sei de onde, é preciso que ele reveja e seu dinheiro e que eu fique quite, e diminuída a partilha, pois eu nada recebi, mas será tudo nos cofres deles, se não fosse assim já estariam pagos. Seja como for, é preciso que essa parte me volte, eu nada tenho recebido, e se ela for paga, devo ter de recorrer aos meus bens; depois quero que Pasquier conte o dinheiro que gastou e recebeu por ordem de Nau, pelas mãos dos Srs. De Châteauneuf, o embaixador da França.
Quero ainda que minhas contas sejam ouvidas e o meu tesouro pago; mais ainda, que os penhores de partes da minha gente, tanto do ano passado como do presente, sejam todos pagos antes de qualquer outra coisa, tanto penhores como pensões, fora as pensões de Nau e de Courle, até que se saiba o que lhes deve caber e o que terão merecido de mim em pensões, não querendo isto dizer que a mulher de Courle esteja necessitada, ou ele sendo maltratado por mim; com os penhores de Nau, o mesmo.
Quero que os dois mil e quatrocentos francos que dei a Jane Kennedy lhe sejam pagos em prata, como fiz com o seu primeiro presente; fazendo isto, o pagamento de Volly Douglas voltará para mim, e eu dou a Fontenay, pelos seus serviços e gastos não recompensados…

Mary dedicou seus últimos instantes a preparar sua alma para o pós-vida através de orações.
O testamento ainda segue com disposições claras sobre o que os executores deveriam fazer com o dinheiro das vendas das propriedades da soberana na França e quais as outras pessoas que deveriam ser beneficiadas com ele. Terminando o texto, assinou-o como “Marie Regina” (Maria Rainha). Em seguida, Mary passou a se dedicar à preparação de sua alma para a execução, marcada para as 8 da manhã. Enquanto debaixo dos seus aposentos chegavam os sons dos carpinteiros construindo o patíbulo no qual teria lugar sua morte, misturados aos barulhos das botas metálicas dos soldados indo e voltando, Mary resolveu se deitar em sua cama sem se despir ou sequer tentou dormir. Pediu apenas para que Jane Kennedy lesse sobre a vida de santos e pecadores. Ao final da história sobre o bom ladrão, a rainha concluiu que “na verdade ele foi um grande pecador, mas não tanto quanto eu”. Com efeito, ela já havia aceitado seu destino com calma e resignação. Era preciso descansar o seu corpo e mente, pois, dentro de instantes, o último grande ato de sua vida seria dramatizado. Mary Stuart então fechou os olhos e não disse mais qualquer palavra, ficando com um sorriso tímido em seus lábios, à espera do momento que se aproximava.
Referências Bibliográficas:
DUCHEIN, Michel. Maria Estuardo. Traducción de César Aira. Buenos Aires, Argentina: Emecé Editores, 1991.
DUNN, Jane. Elizabeth e Mary: primas, rivais, rainhas. Tradução de Alda Porto. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.
FRASER, Antonia. Mary queen of Scots. New York: Delta, 2001.
HAHN, Emily. Mary queen of Scots. New York: Random House, 1953.
HENRY-BORDEAUX, Paule. Maria Estuardo. Traducción de Ramon Lamoneda Izquierdo. México, D.F.: Biografias Gandesa, 1957.
MHLSTEIN, Anka. Elizabeth I and Mary Stuart: the perils of marriage. Translated by John Brownjohn. Great Britain: Haus Publishing, 2007.
ZWEIG, Stefan. Maria Stuart. Tradução de Alice Ogando. 12ª ed. Porto, Portugal: Livraria Civilização Editora, 1969.