MONTENEGRO, Fernanda. Prólogo, ato, epílogo: memórias. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
Depois de alguns anos de espera, a Companhia das Letras lançou em 2019 a autobiografia da eterna musa da dramaturgia brasileira. Se a história é um palco, Arlette Pinheiro da Silva, mais conhecida como Fernanda Montenegro, reinou soberana, dando vida e dramaticidade a papeis inesquecíveis, que marcaram a trajetória do teatro nacional. Aclamada tanto dentro quanto fora do país, em Prólogo, ato, epílogo, escrita com a colaboração de Marta Góes, a autora conta para nós, por meio de uma escrita leve e gostosa, um pouco de sua infância colorida, pincelada com tons híbridos de português e italiano, que se mesclam na alma dessa carioca da gema. Assim, ela deixa para a posteridade um importante registro não apenas de sua vida, mas também um louvor àqueles que contribuíram para que sua arte se tornasse colossal, emocionando os corações e invadindo os lares de muitos brasileiros. Tendo atravessado algumas das fases mais conturbadas da história política desse país ao longo de seus 90 anos, como a Era Vargas e o Regime Militar, Fernanda nos mostra que a arte se configura numa importante forma de resistência à ignorância e à opressão, dois dos maiores problemas que ainda hoje afligem a nossa sociedade.

Fernanda Montenegro
Com 342 páginas, a autobiografia de Fernanda se divide em três partes, intituladas prólogo, ato e epílogo, da mesma forma que em uma peça de teatro. Os capítulos são separados por intervalos e abarcam a vida da autora desde a infância até a sua consagração nos palcos do Brasil e do mundo. Durante a leitura da obra, tem-se a impressão de que ela está ali, do nosso lado, contando sua vida e, entre uma pausa e outra, convidando-nos para uma boa xícara de café com biscoitos. Apesar da escrita fluída e despojada, não é um livro que se deva ler de uma só vez. O ideal é saboreá-lo aos poucos, de preferência (re)assistindo as cenas que ficaram imortalizadas pela atriz, como o engraçadíssimo quadro de Guerra Dos Sexos, na versão de 1983, em que ela e Paulo Autran protagonizam uma verdadeira algazarra na mesa de café da manhã. Da modo similar, Fernanda vai atirando ao seu leitor, uma vez atrás da outra, toda a sua educação, humildade, carisma e sabedoria. Em tempos de crise moral e política como a que vivemos tão intensamente nos últimos anos, poder escutar uma voz como a dela se constitui num verdadeiro deleite para os olhos e os ouvidos.
Tendo iniciado sua carreira como atriz de rádio aos 15 anos de idade, em 1944, a então Arlette Pinheiro da Silva precisou suportar uma série de preconceitos ligados ao exercício dessa profissão, principalmente numa época em que atrizes e prostitutas precisavam portar carteira de identificação. Desde o século XIX, o ofício de atriz era muito malvisto pela sociedade brasileira, por se considerar que tal prática maculava a reputação das jovens. Portanto, para seguir os seus instintos, Arlette teve que enfrentar as opiniões de alguns daqueles que lhe eram mais próximos. Mas, se o rádio marcou o começo de tudo, foi no teatro que ela se consagrou. Sobre a mudança de nome, Fernanda diz o seguinte:
Arlette era o meu nome de locutora e radioatriz. Como redatora, passei a assinar Fernanda Montenegro – com certo humor. Eu achava que “Fernanda” tinha um clima de romance do século XX – existiam muitas Raymondes e Fernandes naquelas histórias. E Montenegro era o nome de quem sempre ouvi falar. Um médico de subúrbio que nos velhos tempos atendeu nossa família durante anos, curando a todos e, segundo (claro) minha avó, milagrosamente (MONTENEGRO, 2019, p. 67).
Assim, a Arlette ficaria reservada apenas para os seus mais chegados, enquanto que ao mundo seria revelada a face de Fernanda Montenegro. Com os anos, ela se tornaria uma das maiores atrizes nacionais, muito embora Fernanda tenha o costume de se referir a si mesma ao longo da obra com extrema modéstia.
Para além do panorama da vida cultural no Brasil até os dias de hoje, a autora também traça um painel da imigração italiana e portuguesa no país, no início do século XX. Ela narra as dificuldades que seus antepassados tiveram que suportar desde a travessia oceânica, colocando suas vidas em risco rumo a uma terra estrangeira, passando também pelos inúmeros desafios de sobrevivência que tiveram de enfrentar no exaustivo trabalho nas lavouras. Seu pai, Vitório Esteves da Silva, era marceneiro, descendente de portugueses dos Açores, enquanto sua mãe, Carmen Nieddu Pinheiro da Silva, provinha de uma família de italianos oriunda da Sardenha. Apesar de ter convivido pouco com seu pai, Fernanda se refere a ele com muito carinho, bem como à sua avó, Maria Francisca Pinna Nieddu, que certamente foi a figura mais proeminente de sua infância. Crescendo numa família com tradições e costumes estrangeiros, Arlette acabaria incorporando muito dessa bagagem cultural na sua forma de ver o mundo e as pessoas. Ao lado do também ator, diretor e produtor Fernando Torres, ela firmou uma das maiores parcerias da dramaturgia brasileira, que acabou rendendo algumas das melhores obras-primas de nossos palcos. Fernando também seria o seu companheiro de toda uma vida, com quem viria a ter dois filhos, o cineasta Cláudio Torres e a também atriz, Fernanda Torres.

Fernanda Montenegro em ensaio icônico para a edição de outubro de 2019 da revista “Quatro cinco um”.
Em meio às alegrias da maternidade, Fernanda rememora os tempos difíceis do início de sua carreira como atriz de teatro e televisão, quando ela e seu marido precisavam tomar vários empréstimos para financiar a produção de peças como O Mambembe, de Artur de Azevedo. É dessa época de desafios que, por insistência de Fernanda, Nelson Rodrigues produziu a icônica O Beijo no Asfalto, até hoje um enorme sucesso. Ao lado do ator Ítalo Rossi, ela viveu personagens marcantes, como em O homem, a besta e a virtude, peça dirigida pelo italiano Gianni Ratto, com quem Fernanda trabalhou por cerca de dez anos e aprendeu muito sobre o ofício que ela desempenha tão bem. Até que o ano de 1964 chegou e, com ele, um dos períodos mais sombrios de nossa história política. Durante a ditadura militar, muitos artistas foram perseguidos, presos e/ou exilados do país, por serem considerados uma ameaça ao sistema. A autora relata com tristeza o acossamento de vários de seus colegas de profissão através de ações truculentas das forças coercitivas do Estado, bem como a censura sofrida por muitos autores, que tiveram suas peças removidas dos palcos por transmitirem mensagens não admitidas pelo governo. Apesar disso, a arte resistiu e foi por meio dela que esses mesmos artistas insuflaram as chamas da luta contra o regime militar.
Um dado curioso, pouco conhecido pela maioria das pessoas hoje, é que, após a derrocada da ditadura no Brasil, em 1985, Fernanda Montenegro foi convidada no governo Sarney para assumir a pasta do recém-criado Ministério da Cultura. Numa carta bastante polida, reproduzida no livro, a atriz agradece o convite e esclarece os motivos pelos quais declinava do cargo:
A esse convite devo responder com a mesma limpeza de propósitos. Vejo o Ministério da Cultura como o cerne do atual governo. No meu entender, nenhum outro lhe é superior. Ele dará o tom da Nova República. E, para não ser assim, melhor seria não tê-lo criado, permita-lhe dize-lo com todo respeito e confiança. A participação nessa esfera não pode ser exercida num quadro de nostalgia, de perda ou de degredo. […] Diante da sondagem que me foi feita, repasso minha vida e, felizmente ou infelizmente, compreendo que o meu amor profundo para com o exercício do Teatro ainda não foi esgotado. Ao contrário: está mais vivo do que nunca. Deixando agora o Teatro, a sensação que eu teria seria de uma vida inacabada. Creio firmemente que cada cidadão deva exercer sua arte ou seu trabalho em conformidade com sua vocação. Estaria sendo leviana se, pensando desse modo, agisse de outro. […] Não é fácil dizer não. […] Não vejo que seja mais fácil decidir pelo Teatro. Ou mais seguro. O teatro nunca foi fácil ou seguro. […] Mas esse é o meu lugar (MONTENEGRO, 2019, p. 160-L).
Desse modo, a atriz deixava de assumir um importante cargo público para trabalhar pela cultura da forma que melhor entendia: nos palcos do Teatro, nas telas da Televisão e nas câmeras do Cinema, onde ela também veio a se consagrar em produções que até hoje arrancam a admiração do público. Ah, Fernanda! Quem dera se todas as atrizes de sua geração tivessem o mesmo discernimento que o seu!
Tendo acumulado uma série de prêmios e condecorações ao longo de sua carreira, Fernanda Montenegro tinha pique mais que suficiente para surpreender a todas e todos nos anos 1990, quando deu vida à professora Dora em Central do Brasil (1998), filme de Walter Salles. Além de ganhar o Urso de Prata de Melhor Atriz, Fernanda também concorreu ao Óscar na mesma categoria. De lá pra cá, ela estreou outra gama de filmes e séries premiadas, como Casa de Areia (2005), em que contracenou com sua filha, Fernanda Torres, além de encantar os telespectadores no papel de Dona Picucha, em Doce de Mãe (2012), pelo qual ganhou em Nova York o Emmy de Melhor Atriz. A perda de seu companheiro, Fernando, em 2008, por sua vez, foi um duro golpe para aquela que ficou eternizada como a dama do teatro brasileiro. Apesar disso, aos 90 anos, ela continua deleitando a todos com seu profissionalismo, emprestando vida a muitas personagens fortes e agora escrevendo a própria biografia. Sem dúvidas, ela nos brinda com uma obra belíssima, que deveria ser lida por todas as idades e sexos.
Renato Drummond Tapioca Neto
Graduado em História – UESC
Mestre em Memória: Linguagem e Sociedade – UESB