A “doença da realeza”: como a hemofilia passou da rainha Vitória para os seus descendentes

A hemofilia pode ser considerada uma desordem sanguínea rara, que esteve presente entre os membros da família real britânica por gerações e foi passada adiante para outras casas dinásticas do continente europeu. Mas como essa enfermidade, conhecida na segunda metade do século XIX e durante os primeiros anos do século XX como “doença real”, passou da rainha Vitória do Reino Unido para os seus descendentes? A soberana foi o ponto de partida através do qual um número grande de seus netos herdou a hemofilia, além de outras doenças raras e letais. Vitória era portadora de um distúrbio que prejudicava a capacidade do corpo de coagular o sangue. Muitos de seus descendentes do sexo masculino desenvolveram a hemofilia. Sua linhagem levou adiante a doença, que foi alvo de preocupação para muitas pessoas, especialmente entre a família imperial russa, os Romanov. O herdeiro do trono, Alexei, bisneto da rainha inglesa, foi tratado tanto por médicos quanto por monges, como o famoso Rasputin, que supostamente curava as dores do garoto com orações.

O herdeiro do trono russo, Alexei Romanov.

Conforme dito acima, a hemofilia é uma desordem sanguínea rara, caracterizada pela incapacidade do corpo em produzir uma proteína vital para a coagulação sanguínea, conhecida como Fator VIII. Devido a isso, o corpo fica praticamente incapacitado de curar suas feridas, uma vez que as crostas, o famoso “cascão”, se formam com bastante lentidão. A hemofilia pode se apresentar de forma leve ou mais aguda, mas, na sua pior forma, pode levar o corpo a contínuas hemorragias internas e profundas, que duram por muito tempo e oferecem um grande risco à vida. A rainha Vitória era portadora de um subtipo de hemofilia, conhecida como “Haemophilia B”, uma versão mais severa da doença. Em artigo intitulado Genotype Analysis Identifies the Cause of the “Royal Disease” (Análise genotípica identifica a causa da “Doença Real”), publicado pelo pesquisador Evgeny I Rogaev e sua equipe da University of Massachusetts Medical School, foi apresentado pela primeira vez o subtipo da hemofilia presente na família imperial russa. Segundo o artigo:

A “doença real”, uma enfermidade do sangue transmitida da rainha Vitória para as famílias reais europeias, é um exemplo impressionante de herança recessiva ligada ao X. […] Embora a doença seja amplamente reconhecida como uma forma de hemofilia do distúrbio de coagulação do sangue, sua base molecular nunca foi identificada, e a doença real está provavelmente extinta.

O oitavo filho da rainha Vitória, príncipe Leopoldo, foi o primeiro integrante da família a manifestar os sintomas do mal. A criança nasceu em abril de 1853, de constituição frágil. Aos oito anos, ele foi diagnosticado com a hemofilia. Depois de um ataque grave de hemorragia, ele foi levado para fazer tratamento no sul da França. A enfermidade foi passada ao príncipe pelo cromossomo X de Vitória. Este, por sua vez, se materializava exclusivamente em forma de doença nos descendentes do sexo masculino da soberana. Depois de outro forte ataque de hemorragia em 1868, a rainha afirmou que a partir de então Leopoldo seria seu “principal objeto de interesse na vida”. Todas as noites, se despedia dele com um beijo, aflita e com “ansiedade constante em relação a ele”. Para o príncipe, era insuportável ter que ficar em casa, lutando contra várias lesões na perna e sangramentos, enquanto seus irmãos se divertiam fora. No ano de 1884, ele sofreu uma queda em Cannes e machucou gravemente o joelho. Pouco depois, teve um ataque de convulsões e morreu de hemorragia cerebral. O que atenuou a dor de sua mãe foi saber que o príncipe agora podia descansar de toda aquela “sucessão de provações e sofrimentos”, que só pioravam devido ao seu “incessante anseio pelo que não podia ter”, conforme declarou a soberana.

Príncipe Leopold, primeiro descendente da rainha Vitória a manifestar os sinais da hemofilia.

A hemofilia deixou um rastro grande de tristeza na vida da soberana. Apenas alguns anos antes da morte de Leopoldo, em 1872, o netinho de Vitória, Frittie, filho da princesa Alice com Luís IV, Grão-Duque de Hesse, apresentou os primeiros sinais da doença aos dois anos. Um ano depois, a criança morria em decorrência de uma hemorragia interna, depois de cair de uma janela. Essa morte assombrou bastante tanto a princesa Alice, quanto sua filha mais nova, Alix. Foi por meio da futura imperatriz Alexandra Feodorovna da Rússia que o gene hemofilia passou para os Romanov. Quando o herdeiro do trono russo nasceu em 1904, os sintomas da doença logo foram diagnosticados:

Identificamos a provável mutação causadora de doenças aplicando metodologias genômicas (amplificação de múltiplos alvos e sequenciamento massivamente paralelos) a espécimes históricos do ramo Romanov da família real. […] A mutação ocorre em F9, um gene no cromossomo X que codifica o fator IX da coagulação sanguínea e está previsto que altere a emenda do RNA e leve à produção de uma forma truncada do fator IX.

Os cientistas descobriram também que a mutação não produziria as proteínas do Fator IX outro tipo de coagulante sanguíneo, que, por sua vez, impedia a coagulação do sangue e, por fim, levava a uma forma mais grave da doença denominada Hemofilia B. Abaixo, uma árvore genealógica contendo os descendentes da rainha que manifestaram a doença:

 

Não obstante, a hemofilia também apareceu na família real prussiana, quando a terceira filha da princesa Alice, Irene, se casou com o seu primo em primeiro grau, o príncipe Henry, que também era neto da rainha Vitória. A enfermidade se manifestou em dois filhos do casal, os príncipes Waldemar e Henry. A maioria dos descendentes homens da rainha que manifestaram sinais da doença faleceram muito cedo, sendo o caso mais famoso, conforme dito antes, o do príncipe Leopoldo e o do herdeiro do trono russo, que recebia atença espiritual do monge Rasputin. China Miéville, autor de “Outubro: história da Revolução Russa” (Editora Boitempo, 2017), classifica Rasputin como “um siberiano despenteado, mal educado e egocêntrico”; um autointitulado “homem santo”, que parecia ser capaz, por qualquer combinação de charme, conhecimento e sorte, de aliviar o sofrimento de Alexei. Agora, o tratamento da hemofilia é geralmente realizado por meio de terapia gênica, que envolve a injeção de ácido nucleico (um componente do DNA) através de sangue doado, a fim de adicionar a capacidade de produzir coágulos. A hemofilia desapareceu da família real britânica quando seus membros foram aos poucos deixando de se casar com primos e contraindo matrimônios com pessoas de fora da realeza.

Fonte:

DOYLE, Liam. Haemophilia: How ROYAL disease spread through Queen Victoria’s bloodline. 2018 – Acesso em 08 de novembro de 2018.

 

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