Nos anos finais de sua vida, a rainha Vitória desfrutou de uma belíssima amizade com Abdul Karim, um escriturário na prisão de Agra (Índia) que foi enviado para a Inglaterra por ocasião do jubileu de ouro da soberana. Por décadas, o relacionamento entre esses dois indivíduos de mundos tão distintos permaneceu apagado dos anais da história inglesa, graças à ação de membros da própria família real (entre eles, o filho da rainha, Eduardo VII), que não viam com bons olhos tal ligação. Essa situação mudou quando a jornalista Shrabani Basu descobriu na Casa Osborne, residência de veraneio da rainha, um retrato de Abdul. Intrigada pelo achado, a jornalista se dedicou incansavelmente por quatro anos a desenterrar essa história, por meio de documentos como os diários de Vitória, seus cadernos com lições de urdu, os diários de seu médico e de outros membros da casa real, bem como o diário do próprio Abdul, que permanecia arquivado no Paquistão. A compilação desse corpus lhe permitiu escrever o livro Victoria & Abdul – The Extraordinary True Story of the Queen’s Closest Confidant, publicado em 2010. A obra, ainda sem tradução no Brasil, serviu de inspiração para o filme Victoria e Abdul – O Confidente da Rainha, lançado em 2017 e dirigido por Stephen Frears. No papel principal, temos a atriz Judi Dench, que já havia interpretado a soberana 20 anos antes, no filme Sua Majestade, Mrs. Brown.

Fotografia da rainha Vitória com seu professor de urdu, Abdul Karim.
Victoria e Abdul se inicia com um banquete oferecido em honra da rainha, no qual os emissários da Índia, Mohammed e Abdul, teriam que entregar à Vitória o mohur, espécie de medalha comemorativa, cunhada em homenagem ao jubileu de ouro da soberana (50 anos de reinado). A cena chama a atenção principalmente pelo excesso de protocolo, algo que deixa os indianos bastante desconcertados. Todas as entradas e saídas deveriam ser meticulosamente observadas. Cada gesto coreografado nos seu mínimos detalhes. Eles não tinham permissão de fixar o olhar na monarca, que chega com toda pompa, paramentada com as insígnias da realeza e escoltada por suas damas. Judi Dench está impecável nesse momento e bastante cômica, diga-se de passagem. É engraçado vê-la devorando os pratos com rapidez, enquanto a corte se esforça para acompanha-la. Naquela fase da vida, Vitória sofria com obesidade mórbida, mas permanecia uma ávida apreciadora dos prazeres da mesa. Entre um prato e outro, a personagem se permitia tirar um rápido cochilo, o que denota a fadiga que ela, uma mulher de então 68 anos, sentia ao ter que protagonizar todo aquele excesso de cerimonial. O clima de monotonia do banquete é quebrado justamente quando os criados indianos aparecem para lhe entregar o mohur e Abdul, contrariando as instruções de Sir Henry Ponsonby (Tim Pigott-Smith), lança um olhar demorado para a soberana, que o retribui.
Segundo as descrição da personagem, feita por Shrabani Basu na sua biografia, “Abdul Karim era alto, inteligente e tinha um olho para a arte”. Sendo assim, a escolha do ator indiano, Ali Fazal, para o papel de Abdul, foi mais do que ideal. Seu inglês carregado de sotaque empresta um tom de verossimilhança ainda maior ao seu personagem. Abdul tanto seduz quanto se deixa seduzir por Vitória naquele banquete. Imediatamente, a rainha demonstra interesse em conhece-lo. Este, que já havia demonstrado anteriormente desrespeito pelo protocolo, por sua vez, se sente nenhum pouco constrangido em se ajoelhar e beijar os pés da monarca, atitude que a deixa bastante surpresa. A cena seguinte, com os dois conversando sozinhos no gabinete da rainha, evidencia a grande diferença cultural que existia entre ambos. Apesar de ser imperatriz da Índia, Vitória desconhecia quase completamente a história, a língua e a geografia daquele país. A visão exótica de Abdul, aliado ao conhecimento de mundo que ele possuía, lhe deixa então bastante intrigada. Há também um certo apelo erótico na cena entre os dois. Fica claro para o telespectador o fascínio que a beleza física de Abdul exerce sobre Vitória. Este, ciente dos seus atrativos, não hesita em usar seu charme para conquistar a soberana e conseguir uma posição de destaque na corte, como seu Munshi, ou professor de urdu.

Abdul (Ali Fazal) ensina a rainha Vitória (Judi Dench) a escrever em urdu.
Com efeito, a nomeação de Abdul deixa o palácio real em polvorosa. A questão vai muito mais além da diferença de classes que existia entre professor e aluna. Ela também abrangia a distinção racial. Para muitos, era inaceitável que a rainha da Inglaterra e imperatriz da Índia fosse ensinada por um escriturário da prisão de Agra, que não pertencia à elite branca. O preconceito é evidenciado por meio das falas de personagens como Lady Churchill (Olivia Williams) e o médico de Vitória, Dr. Reid (Paul Higgins), que não suportavam ter que se rebaixar em detrimento de um criado vindo da Índia. O líder desse grupo de antagonistas era Bertie, o príncipe de Gales e futuro rei (Eddie Izzard). Há uma certa frieza entre o herdeiro e sua mãe. Bertie, que espera com impaciência pela morte da rainha, vê-se preterido por Abdul. À medida em que os dias vão se passando, o relacionamento entre os dois fica mais próximo. Abdul se torna um confidente para Vitória e a presença masculina na sua vida. Nem mesmo pequenos incidentes como a descoberta do casamento de Abdul ou o fato de que ele é portador de gonorreia consegue afasta-lo da companhia da soberana. Ao Manter o secretário indiano ao seu lado, a rainha desafia toda a corte. Os ânimos ficam ainda mais acirrados quando ela se dispõe a lhe conceder o título da cavaleiro, algo que desagrada até mesmo ao primeiro-ministro, Lord Salisbury (Michael Gambon).
Diante do ressentimento da corte, o príncipe de Gales ordena uma investigação detalhada acerca das atividades de Abdul Karim. Mas a tarefa não é fácil. Nem mesmo o companheiro indiano, Mohammed (Adeel Akhtar), se dispõe a ajudar nas buscas, apesar da generosa recompensa que Bertie lhe oferece. É através dos lábios de Mohammed que o telespectador tem um vislumbre do desprezo que o povo indiano nutria pelo colonizador britânico, que saqueou seus templos e palácios e matou sua gente. Todas essas questões, porém, são abordadas na periferia do longa-metragem, mas de uma forma clara e direta. Um aspecto positivo do filme é a escolha dos cenários, que vão desde os montes da Escócia nas cercanias da residência real em Balmoral, até o belíssimo palácio de Glassat Shiel. A fotografia do filme é esplêndida nos seus mínimos detalhes e a escolha do figurino, bastante fiel à moda de fins do século XIX, ajudam ainda mais a compor esse cenário primoroso. Algumas cenas, como a que Vitória recebe uma manga podre da Índia, foram adaptadas com exatidão do livro de Shrabani Basu. “A história da manga é verdadeira. A Rainha realmente queria comer uma manga, mas levava seis semanas para chegar de navio, então ela sempre estava meio podre”, nos conta a biógrafa. A corte, que não suportava mais tolerar Abdul como centro das atenções da rainha, arquiteta então um complô contra sua soberana.

“A fotografia do filme é esplêndida nos seus mínimos detalhes e a escolha do figurino, bastante fiel à moda de fins do século XIX”
Em face da traição da casa real, que ameaça se demitir caso a rainha não afaste Abdul, Vitória, no auge de sua velhice, demonstra que ainda lhe restam forças suficientes para enfrentar a todos, principalmente seu filho, que pretendia declara-la insana para governar em seu lugar. Essa, na minha opinião, foi uma das cenas mais impactantes do filme, na qual ela demonstra o pleno domínio de suas faculdades mentais:
Eu tenho 81 anos de idade. Eu tive nove filhos e 42 netos e tenho quase um bilhão de cidadãos. Eu tenho reumatismo, um útero colapsado, tenho obesidade mórbida e sou surda de um ouvido. Conheci 11 Primeiros Ministros e aprovamos 2.347 atos legislativos. Eu estive no cargo por 62 anos e 234 dias. Sendo assim, eu sou o monarca mais antiga na história do mundo. Eu sou responsável por cinco palácios e uma equipe de mais de 3.000. Eu sou rabugenta, chata, gananciosa, gorda, mal-humorada, às vezes egoísta e míope, tanto metaforicamente, quanto literalmente. Eu sou, talvez, desagradavelmente ligada ao poder e não deveria ter esmagado o ovo do Imperador da Rússia. Mas eu sou tudo menos louca. Se a corte deseja me desobedecer, que assim seja. Deixe-a fazer isso na minha presença.
Um a um, a soberana os desafia a se demitirem na sua presença, arrancado dos seus criados nada além de um olhar arrependido e o silêncio. Mesmo idosa e cada vez mais enfastiada da vida na corte, Vitória demonstra que ainda tem sede pelo poder. Para manter sua amizade com Abdul, a despeito do preconceito racial de sua família e criados, arainha desafia todos os protocolos e demonstra quem realmente governava naquele lugar.
Ao Manter Abdul do seu lado, a rainha estava ciente do quanto o tornara uma pessoa odiada. Ela era seu escuto contra o príncipe de Gales e a corte. Porém, a saúde da soberana declinava aos olhos de todos. A cena da despedida entre a Abdul e Vitória, no seu leito de morte, foi a mais tocante de todas. Ali ela deixa clara a natureza de seu sentimento por ele: ela o amava como uma mãe. Assim termina esse belíssimo filme, com cerca de 1h51min de duração. Victoria e Abdul – O Confidente da Rainha é altamente recomendado para o público em geral, especialmente por sua fidelidade aos fatos. Apesar de algumas passagens ficcionais, Shrabani Basu o considera 90% fiel aos acontecimentos narrados no seu livro. Tudo isso aliado a ótimas atuações e a uma belíssima fotografia. Após a morte da soberana, o novo rei tratou de expulsar Abdul e sua família da Inglaterra, ordenando também que todas as cartas da rainha dirigidas ao indiano fossem queimadas. “Tentaram de todas as formas apaga-lo da história”, esclarece a biógrafa Shrabani Basu. Mesmo após o falecimento de Abdul, em 1909, Eduardo VII não descansou, ordenando que duas buscas fossem feitas em Agra, destruindo os cartões-postais de natal assinados por Vitória. Felizmente, os diários da soberana, assim como os próprios escritos de Abdul Karim, sobreviveram para testemunhar a bela história de amizade que existiu entre ambos.
Confira abaixo o trailer de Victoria e Abdul – O Confidente da Rainha (2017):
Renato Drummond Tapioca Neto
Graduado em História – UESC
Mestre em Memória: Linguagem e Sociedade – UESB
Fonte: MORISAWA, Mariane. A história secreta que inspirou o filme ‘Victoria e Abdul’. – Acesso em 14 de outubro de 2010.
Amo de paixão seu blog, tenho 15 e sou apaixonado pela realeza 💓
Queria muito que você falasse do filme : troca de rainhas” e também queria que falasse também de Mariana de Bourbon acho a história dela fantástica .
Por favor queria muito!!!
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O cara contaminado com gonorréia mulçumano, só queria saber se ele traiu a esposa ou o contrário, até porque essa região severa com as mulheres pegas em adultério, mas roteiro parece que não quis abordar isso. Minha nota pro filme é 3, uma pena, o filme é ruim.
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