Nos dias de hoje, o público feminino goza de uma série de prerrogativas sociais, políticas e econômicas que antes só eram privilégio dos homens. Até a primeira metade do século XX, enquanto o discurso moralista e ideológico pregava que as mulheres das classes médias e alta da sociedade deveriam permanecer enclausuradas dentro de suas casas, desempenhando o papel de “anjo do lar”, as das classes mais populares precisavam trabalhar para ajudar aos maridos no sustento da família. Trabalhavam mais e ganhavam menos, em péssimas condições e sem qualquer segurança contra eventuais acidentes. Algumas delas sonhavam com uma vida diferente, em que houvesse igualdade de direitos para os dois gêneros. Logo, esses sonhos tomaram corpo na forma de palavras, que foram transmitidas a outras, conquistando assim milhares ao redor do mundo. Mas com o tempo elas perceberam que só palavras e gestos pacíficos não iriam leva-las ao lugar esperado. Era preciso mais do que isso. Portanto, algumas largaram a vida que tinham para trás e se engajaram numa verdadeira luta em prol da dignidade da mulher, manifestada através do exercício da cidadania e do poder de escolher seus representantes por meio do voto. Esse grupo de mulheres ficou conhecido pela história como as sufragistas.
As sufragistas foram ridicularizadas e ignoradas pelo governo durante muito tempo, quando finalmente recorreram a estratégias mais extremas para serem ouvidas. Se a mídia não se interessava por elas, criariam seus próprios jornais e fundariam sindicatos. Para chamar atenção à sua causa, quebraram janelas de lojas e explodiram propriedades. Várias mulheres foram presas e agredidas. Algumas, inclusive, perderam a própria vida nesse processo. Infelizmente, a maioria das pessoas atualmente ignora como a luta pela igualdade de direitos foi acirrada. Se hoje muitas das garotas nascidas nesse mundo podem ser educadas como seus irmãos, obterem um nível superior, ocuparem cargos que antes só eram permitidos aos homens e possuírem a guarda de seus filhos, foi porque anos atrás mulheres (e alguns homens) corajosas batalharam para que essa realidade fosse possível. Sendo assim, é preciso falar mais neste assunto, no intuito de corrigir certas impressões equivocadas que muitos têm acerca de movimentos que lutam pela liberdade feminina. Esta é a intenção de Suffragette, filme britânico lançado em outubro de 2015, que narra a estória de um grupo de lavadeiras operárias que aderiram à luta pelo direito ao voto na Inglaterra de 1912.

Casada e mãe de um garoto, Maud Watts (Carey Mulligan) só queria cumprir sua jornada na lavanderia e depois voltar para o aconchego do marido, Sonny (Bem Whishaw), e do filho.
Dirigido por Sarah Gavron, Suffragette não poderia ter vindo em melhor hora. Embora seu roteiro esteja contextualizado a 100 anos atrás, os problemas levantados por ele são bastante atuais, como a desigualdade de salários, exploração de trabalho, trabalho infantil, intolerância, censura, violência contra a mulher e estupro. Mesmo com tanta militância feminina, é triste perceber que estas mazelas sociais ainda não foram superadas. O conservadorismo da sociedade ocidental concebia a mulher pública como uma abominação da suposta lei natural, que distinguia papeis para cada um dos gêneros. Muitas pessoas simplesmente aceitavam essa condição sem reclamar. A personagem Maud Watts, por exemplo, era uma delas. Casada e mãe de um garoto, ela só queria cumprir sua jornada na lavanderia e depois voltar para o aconchego do marido e do filho. Sua vida aparentemente ordinária só mudaria quando, sem querer, ela se viu no meio de um motim organizado por um grupo de sufragistas, que quebravam as vitrines das lojas de roupas e acessórios. Entre aquelas mulheres, estava Violet Miller, que exerceria grande influência sobre Maud, convencendo-a a conhecer o movimento e a se juntar à causa.
A protagonista do filme é a atriz Carey Mulligan, bastante conhecida pelo seu papel de Daisy Buchanan em The Great Gatsby (2013). Na pele de Maud, Carey deu voz ao drama de uma mulher que não deseja para uma futura filha a mesma vida que a sua. A personagem está ali para representar a exploração do trabalho feminino na Inglaterra do início do século passado. Em meio a tanques, caldeiras e ferros de passar, as mulheres trabalhavam sem qualquer garantia de segurança contra eventuais desastres e ganhando uma remuneração miserável por semana. A própria Maud havia perdido sua mãe aos 4 anos de idade devido a um acidente na lavanderia e três anos depois começou a trabalhar para o próprio sustento. Não teve, portanto, uma infância. Era um produto daquele espaço de exploração e abuso. Tendo sido criada para nada contestar e aceitar tudo com passividade, ela jamais havia pensado numa forma de mudar sua existência até conhecer Violet, personagem interpretada por Anne-Marie Duff. Ao contrário de Maud, Violet era engajada na luta pela igualdade de direitos. Mãe de três crianças e casada com um alcóolatra, era difícil para ela ver sua filha Maggie de 12 anos já trabalhando na lavanderia para ajudar no sustento de casa.

Da esquerda para a direita: Violet Miller (Anne-Marie Duff), Maud Watts (Carey Mulligan) e Edith Ellyn (Helena Bonhan Carter).
Uma das críticas secundárias abordadas por Suffragette é o estupro da mulher. Reduzidas a uma condição de quase escravidão, as trabalhadoras da lavanderia ainda tinham que lidar com um patrão que dispunha de seus corpos como bem entendesse. Me pergunto quantas mulheres ainda não passam por essa situação atualmente e não prestam queixa, pois temem a vingança que se seguirá após a delação. A própria protagonista do filme tinha passado por isso quando mais nova e agora a filha de Violet Miller estava na mesma situação. Diante disso, Maud percebeu que as coisas não poderiam mais continuar do jeito que estavam. Após ter prestado seu depoimento no parlamento no lugar de Violet, que foi espancada pelo marido, a personagem constatou que havia outra forma de viver a vida: através do exercício da cidadania. Aos poucos, aquelas sufragistas arruaceiras foram ganhando sua atenção, especialmente a figura de Edith Ellyn, farmacêutica que queria ser médica. Vivida por Helena Bonham Carter, Edith se via mais como uma espécie de soldado, recrutando outras mulheres para a causa. Como muitas na época, ela lutava para que o público feminino pudesse ocupar os mesmos cargos no mercado de trabalho que os homens e com igual remuneração.
Curiosamente, a personagem Edith Ellyn foi baseada em Edith Garrud, sufragista nascida em 1872 que treinava suas colegas a como se defender marcialmente dos policias. Em entrevista dada à revista Interview, Helena revelou que partiu dela a ideia de sua personagem se chamar Edith, em homenagem a Garrud. Porém, este não foi o único papel inspirado em personalidades reais. A principal delas foi Emmeline Pankhurst, líder do movimento sufragista e símbolo de inspiração para muitas mulheres. Nos seus discursos públicos ela encorajava a militância feminina com o slogan: “ações, não palavras”. No filme, ela é interpretada por Meryl Streep, atriz que por si só já dispensa comentários. Embora tenha aparecido por apenas alguns segundos, a participação de Streep foi um dos pontos mais altos da produção. Diante de uma grande multidão de ouvintes, ela disse uma das frases mais impactantes da trama: “nós não queremos ser infratoras da lei, mas construtoras dela”. A vontade de que a mulher pudesse participar das decisões políticas fazia com que Emmeline convocasse todas as britânicas à rebelião, pois “prefiro ser uma rebelde do que uma escrava”. À protagonista do filme, por sua vez, ela dirigiu palavras encorajadoras: “nunca se renda. Nunca desista da luta”.

Meryl Streep como Emmeline Pankhurst, líder do movimento sufragista na Inglaterra.
Com efeito, se Maud tinha alguma dúvida quanto à sua aderência ao movimento, esta foi rapidamente dissipada pelo seu breve encontro com Emmeline Pankhurst. Por outro lado, ela foi forçada a enfrentar o preconceito da sociedade, inclusive do seu marido Sonny Watts (Bem Whishaw). A partir do momento em que a esposa começou a se envolver com as sufragistas, Sonny sentiu que sua autoridade como homem da casa estava sendo questionada. Uma vez que Maud passou a se enxergar como algo mais além do que uma mera esposa, ela foi expulsa de casa e impedida de ver o seu filho, o pequeno George. Diferentemente dos dias de hoje, a lei inglesa dava a guarda das crianças do casal ao pai e Sonny usou desse privilégio para castigar a esposa pela conduta dela. As cenas protagonizadas por mãe e filho são bastante tocantes, desde os felizes encontros clandestinos, quando Maud esperava qualquer oportunidade para “raptar” George por breves instantes, até o momento da despedida. Por não ter condições de criar o pequeno sozinho, seu pai o deu para adoção, causando dor e desespero em Maud. Já que lei dizia que ela não poderia ter a guarda do filho, então ela iria se empenhar para mudar tal realidade, sem se importar com os riscos que pudesse correr.
A luta feminina pelo direito ao voto na Inglaterra foi uma das mais violentas, se comparada com outras partes do mundo. Muitas mulheres foram reprimidas pelo governo e agredidas fisicamente por policiais, conforme o filme retrata em algumas cenas. Uma vez na prisão, faziam greve de fome em sinal de protesto. À medida que os dias passavam e elas nem sequer tocavam na comida, eram então forçadas a ingerir o alimento através de uma sonda nasogástrica. O tratamento concedido a algumas sufragistas dentro do presídio beirava a barbaridade. Sendo assim, a medalha oferecida pelo movimento a cada uma delas pelo seu primeiro encarceramento representava um símbolo de reconhecimento pela sua resistência. Enquanto elas não conseguissem o direito ao voto, continuariam enfrentando as autoridades do governo, conforme enfatizou Maud ao policial Steed (Brendan Gleeson):
Maud: “Quebramos janelas, queimamos coisas, porque a guerra é a única língua que o homem entende. Vocês nos batem e nos traem e não nos resta mais nada”.
Steed: “Só nos resta impedi-las”.
Maud: “O que você vai fazer? Prender todas nós? Estamos em todas as casas, somos metade da raça humana, não pode nos impedir” (1h:16min).
Entretanto, é importante ressaltar que muitos homens também eram engajados na causa das sufragistas, a exemplo da personagem Hugh Ellyn (Finbar Lynch), marido de Edith. Alguns deles eram políticos importantes e lutaram pela igualdade de direitos, tanto dentro quanto fora do parlamento.

“Suffragette” deixa ao público uma ótima lição de labor e coragem: “nunca se renda. Nunca desista da luta”.
No processo de militância das mulheres inglesas pelo voto, estima-se que mais de mil tenham sido presas. Algumas mais de uma vez, como a própria Emmeline Pankhurst e Emily Davison, personalidade da vida real que também foi inclusa na obra. Assim como Pankhurst, as ações de Davison tinham grande impacto no movimento sufragista. É possível que ela estivesse envolvida no bombardeio à casa do primeiro-ministro Lloyd George, em 1913, embora a polícia não a tivesse interrogado como suspeita. Emily é interpretada no filme pela atriz Natalie Press, que passa quase despercebida ao longo da trama, exceto pelo último ato de protesto de sua personagem, quando ela se colocou na frente do cavalo do rei numa corrida em Epsom Derby, sendo subsequentemente arrastada pelo animal. Até hoje permanece objeto de conjectura se a intenção de Davison era se sacrificar ou apenas agitar a bandeira do movimento diante das câmeras. O fato de estar em posse de passagens de trem para o seu retorno naquele mesmo dia e de planejar tirar férias na França pode ser um indicativo de que ela não esperava aquele fim. Infelizmente, ela não resistiu aos ferimentos e faleceu poucos dias depois. Alguns antagonistas aproveitaram esse ocorrido para reafirmar o suposto desequilíbrio mental feminino.
Em todo caso, a morte de Emily Davison chamou a atenção do mundo para o movimento sufragista e mais de 6.000 pessoas compareceram ao seu funeral, em 15 de junho de 1913. As gravações desse evento foram incluídas no final de Suffragette, prestando assim uma bela homenagem àquela mulher que deu sua vida pela causa. A maioria das críticas feitas ao filme foram favoráveis, apesar da trama não abordar a questão racial, o que foi uma falha, pois muitas mulheres negras também foram ativistas no movimento. O filme também acabou focando mais nas ações de um pequeno grupo, em detrimento de personalidades mais importantes, como Emmeline Pankhurst, que só aparece por alguns segundos. Apesar disso, acredito que a obra passou ao público uma bela mensagem, objetivando reconciliar a mulher moderna com suas avós do início do século passado. Hoje o feminismo vem sofrendo diversos ataques vindos de pessoas que, na minha opinião, ignoram a importância desse movimento dentro de uma sociedade com profundas marcas do patriarcalismo. Daí a relevância de produções que abordem as raízes do feminismo e suas conquistas para as mulheres. Nesse sentido, Suffragette conseguiu dar conta do recado, deixando ao público uma ótima lição de labor e coragem: “nunca se renda. Nunca desista da luta”.
Renato Drummond Tapioca Neto
Graduado em História – UESC
Mestrando em Memória: Linguagem e Sociedade – UESB
Confira abaixo o trailer de Suffragette (2015):
Excelente resenha. Grata. P.S.: Por admiração a essa e a outra Maud é que meus avós resolveram batizar por esse nome àquela conhecida (também) como mamãe. (*.~) Nac
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