Por: Renato Drummond Tapioca Neto
Ficção e História são dois domínios que tanto se aproximam, quanto se afastam. Sempre há ficção na história, assim como há história na ficção. Enquanto o discurso histórico procura se ater à veracidade do relato, o discurso ficcional percorre os caminhos da verossimilhança. Essas duas formas narrativas se aproximam justamente pela representação da realidade contida em ambas. Não é pelo fato de um romance abordar em suas páginas uma trama inventada que ele deixa de comtemplar assuntos verídicos. Em contrapartida, um historiador, apesar de trabalhar em cima de fontes (sejam elas textuais ou de qualquer outra natureza), procura preencher as lacunas históricas no seu trabalho com um pouco de sua própria imaginação especulativa. Em outras palavras, se o escritor de ficção usa de recursos historiográficos para compor suas obras, e o historiador se vale de estratégias ficcionais para uma finalidade semelhante, então não seria equivocado afirmar que essas duas áreas do conhecimento então mais próximas do que muitos supõem. Nesse sentido, qual leitor de “As Crônicas de Gelo e Fogo”, por exemplo, já chegou à conclusão de que o autor, George R. R. Martin, adaptou muitos eventos reais para o universo de fantasia contido na sua obra? Ou que muitas das suas personagens possuem uma ou várias correspondentes na nossa História? É sobre esse assunto que o seguinte texto se propõe a discutir brevemente.

George R. R. Martin, autor de “As crônicas de Gelo e Fogo”.
Publicado em 1996, o primeiro livro da série de “As Crônicas”, intitulado “A Guerra dos Tronos”, foi responsável pelo retorno triunfal de Martin no mundo da ficção. Inicialmente concebida como uma trilogia, o autor acabou ultrapassando a sua ideia original e já publicou 5 livros, sendo que o sexto, ao que tudo indica, já está a caminho. No universo criado pelo autor, o cenário “é o grande continente de Westeros, um mundo ao mesmo tempo parecido e diferente do nosso, no qual as estações duram anos e, algumas vezes, décadas” (MARTIN, 2014, p. 7). Antes dividido em sete reinos distintos, Westeros foi unificado por uma única casa, os Targaryen, oriundos da Antiga Valíria. Durante aproximadamente 300 anos, os reis Targaryen governaram, até que seu último soberano, Aerys II, foi deposto por Robert Baratheon, que, por sua vez, deu início a uma nova dinastia. Assim, chegamos aos eventos atuais do primeiro livro.
A trama vai se desenvolvendo de forma bastante inteligente e quase irresistível. O sucesso foi tamanho que, em 2011, a HBO adaptou seu enredo numa famosa série de televisão que carrega o título do primeiro volume da saga, “Game of Thrones”, a caminho de sua 6ª temporada. Algumas das personagens desse universo conquistaram o carinho (ou o ódio) do público e a quantidade de referências feitas aos mesmos já ultrapassa as páginas dos livros ou as telas de TV, especialmente os caracteres femininos. As mulheres na obra de George R. R. Martin possuem, em sua maioria, um caráter forte e insubmisso, cujo respaldo podemos identificar em várias mulheres da modernidade. Desde o final da Segundo Grande Guerra (1945), personagens femininas dóceis e frágeis deixaram de despertar o interesse do grande público. Com a luta das mulheres pela igualdade de direitos cada vez mais intensa, a literatura produzida na segunda metade do século XX (direta ou indiretamente) carregou muito de sua ideologia, ao compor heroínas imperfeitas em busca de sua independência. Inclusive, muitas personalidades do passado foram abraçadas por essa causa, a exemplo de Ana Bolena (morta em 1536), antes vista como uma meretriz e agora como uma das grandes rainhas da Inglaterra.

Margaery Tyrell, a rainha consorte, por Elia Fernández.
As vidas de pessoas como Ana Bolena, Catarina de Médici, ou Elizabeth I, serviram de influência para muitos escritores ao longo desses anos, não só historiadores, que procuravam reparar os erros de seus antecessores na abordagem dessas personalidades, como também romancistas. Nesse último grupo, podemos incluir sem sombra de dúvidas George R. R. Martin. Ao se ler os cinco livros publicados de sua saga, torna-se notável as similaridades entre as soberanas contidas no enredo de sua obra e as que citamos neste parágrafo, especialmente em três casos específicos que abordarei com bastante atenção nos posts seguintes dessa análise: o das personagens Margaery Tyrell, Cersei Lannister e Daenerys Targaryen. Com efeito, essas três rainhas representam três tipos específicos de soberana: Margaery Tyrell, a rainha consorte, cuja tarefa primordial é prover o trono de herdeiros masculinos e ser um exemplo feminino para as outras mulheres do reino; Cersei Lannister, a rainha regente, responsável por governar durante a menoridade do rei; e Daenerys Targaryen, a rainha reinante, que possui direito inalienável à coroa e governa com poderes absolutos.
A história, por sua vez, está repleta de exemplos como esses e é provável que o autor tenha se baseado nos mesmos para compor suas personagens. Todavia, como George R. R. Martin não afirmou que esta ou aquela soberana lhe serviu de inspiração para a construção de suas próprias monarcas, devemos ter cuidado com tais afirmações. Nesse caso, infelizmente estaremos limitados pelo perigoso campo das especulações. Por isso, não pretendemos impor aqui uma comparação definitiva e sim abrir mais espaço para uma discussão sobre as rainhas na obra do autor e seus similares na história. Acredito que essa seja uma forma de melhor exemplificar como as personalidades de mulheres do passado ainda continuam vivas através da literatura atual. Afinal, a força que elas demonstraram dentro de uma sociedade (que ainda é) misógina só denota o profundo apelo contemporâneo que elas carregam consigo. Um exemplo clássico do que acaba de ser mencionado consiste na caracterização da personagem Brienne de Tarth. Quem, ao se deparar com a figura dessa donzela vestida em armadura e espada na mão, automaticamente não traçaria um paralelo entre ela e Joana D’Arc?

Cersei Lannister, a rainha regente, por Elia Fernández.
Da mesma forma, quem deixaria de pensar na Guerra das Duas Rosas quando lemos sobre a disputa entre os Lannister (Lancaster) e os Stark (York) pelo trono? Mesmo o processo de constituição e conquista dos sete reinos de Westeros lembra em muitos sentidos a formação das monarquias nacionais europeias. As referências estão claras. Basta um pouco de imaginação para poder evoca-las diante dos próprios olhos. Dessa forma, o Norte facilmente se torna a Grã-Bretanha medieval; o requinte e a opulência de Jardim de Cima e seu respaldo na luxuosa corte francesa; o vale de Arryn e seus alpes e montanhas nevadas como na Suíça; ou a ensolarada e exótica Dorne e seus elementos da cultura turca e espanhola. Sendo assim, George R. R. Martin conseguiu transpor para o seu universo de ficção aquele mundo que conhecemos através dos livros de geografia e história, incluindo seus personagens e outras criaturas fantasiosas, a exemplo dos dragões, gigantes, entre outros. Nesse sentido, não é difícil enxergar a nossa própria realidade dentro das páginas de “As Crônicas de Gelo e Fogo”, o que só faz aumentar o fascínio e o sucesso cada vez maior que cerca a série de livros e sua versão para a televisão.
Todavia, sei que muitos leitores detestam os chamados “spoilers”. Por isso, desde já advirto que para uma análise bem elaborada, torna-se indispensável revelar as ações das personagens para melhor estabelecer um quadro comparativo entre elas e outras personalidades históricas. Para tanto, utilizaremos não só os cinco livros da saga, como também os contos que o autor publicou e que abordam o universo da obra, notadamente “A Princesa e a Rainha”, “O Príncipe de Westeros”, “O Cavaleiro dos Sete Reinos” e, o mais recente, “O Mundo de Gelo e Fogo”, espécie de enciclopédia que conta toda a história do universo das “Crônicas”, desde antes da conquista de Aegon I Targaryen, até a queda de sua dinastia, incluindo o passado das outras cidades, localizadas no continente vizinho a Westeros, Essos. A complexidade por trás da composição do enredo é tamanha, que nem mesmo os cinco livros da série foram capazes de dar conta de todos os detalhes. Sendo assim, o aviso já está dado. Caso você ainda não tenha terminado de ler os volumes publicados da obra o autor e não queira receber “spoilers”, então fique longe dos posts dessa análise, pois não terei quaisquer restrições em lançar mão desse recurso.

Daenerys Targaryen, a rainha reinante, por Elia Fernández.
A presente série de posts é constituída de três partes mais a conclusão. Na primeira, analisaremos o perfil de Margaery Tyrell e seus deveres de rainha consorte, buscando como exemplos personalidades do passado que possuem semelhanças com ela. Na segunda parte, trataremos do perfil de Cersei Lannister e as funções e limites de uma rainha regente, tendo como referência, principalmente, a soberanas francesas do final do século XVI e início do XVII, como Catarina de Médici. No terceiro momento, abarcaremos a figura de Daenerys Targaryen e a luta de uma mulher para recuperar o trono de sua família, ao mesmo tempo em que procuramos compreender a extensão dos poderes de uma rainha reinante, tendo como base as vidas de outras soberanas da história, como Cleópatra. Já na conclusão, daremos espaço para as outras mulheres na obra do autor, destacando a sua força e o apelo contemporâneo que elas carregam. Como já dito anteriormente, não pretendo impor uma ideia fixa ou afirmar que determinada personalidade serviu de base para criação das personagens na obra de George R. R. Martin. Antes disso, busco evidenciar que, em vez de separadas, história e ficção são duas partes de um mesmo domínio que chamamos de realidade.
Referências Bibliográficas:
CANDIDO, Antonio; et.al. A personagem de ficção. – 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2011.
MARTIN, George R. R.; DOZOIS, Gardner (orgs.). O príncipe de Westeros e outras histórias. – Rio de Janeiro: Saída de Emergência, 2015.
MARTIN, George R. R.; GARCÍA JR., Elio M.; ANTONSSON, Linda. O mundo de gelo de fogo: história não contada de Westeros e de as crônicas de gelo e fogo. – São Paulo: Leya, 2014.
MARTIN, George. R. R. As crônicas de Gelo e fogo. – São Paulo: Leya, 2012. 5 vols.
_. O cavaleiro dos sete reinos. – São Paulo, Leya, 2014.
Ansiosa para os próximos posts, sobre as relações aprofundadas das personagens 🙂
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