Por: Renato Drummond Tapioca Neto
O lugar das mulheres no espaço público é um assunto bastante polêmico, principalmente no mundo ocidental. Contudo, a recente pesquisa feminista contribuiu muito para uma reavaliação do poder feminino através dos anos. Vistas durante muito tempo como o “outro” na história, mulheres que pretendiam manter uma vida pública eram, na maioria das vezes, alvo de vergonha para a sociedade. Na Grécia antiga, o próprio Pitágoras dizia que “uma mulher em público está sempre deslocada” (apud PERROT, 1998, p. 8). Essa visão fora legitimada ao longo dos séculos, tendo como base a própria história de personalidades femininas que se intrometeram em assuntos que, a priori, não lhes dizia respeito, como na política. Nesse caso, o discurso misógino buscou no passado personagens consideradas como péssimas governantes, tais como Catarina de Médici, Maria I da Inglaterra, Maria Antonieta, entre outras, no intuito de embasar a crença de que esfera pública e sexo feminino eram dois domínios que não combinavam. Para Michelle Perrot, “essas representações, esses medos atravessaram a espessura do tempo e se enraizaram num pensamento simbólico da diferença entre os sexos” (1998, p. 9).
Com efeito, podemos identificar uma mudança nesse quadro de submissão e vilipendiação da figura feminina na esfera pública já no contexto da Revolução Francesa, durante as últimas décadas do século XVIII. Porém, Maria Zina Gonçalves de Abreu, em sua tese de doutorado sobre a atuação feminina na revolução inglesa dos séculos XVI e XVII, data um maior envolvimento da mulher na esfera pública em pelo menos mais de 100 anos antes da Revolução Francesa, ressaltando que foi na fase do radicalismo seiscentista em Inglaterra que elas tiveram “maiores oportunidades de participação, que lhes permitiu uma experiência de maior ativismo político sem precedentes, cujas repercussões foram muito além do que alguma vez essas mulheres poderiam imaginar” (ABREU, 2003 p. 743). Diz esta autora, inclusive, que os entraves políticos e religiosos ocorridos naquele país durante as décadas de 1640 e 1650 possibilitaram maior desempenho de indivíduos de ambos os sexos, mesmo entre os membros das classes baixas da sociedade, em papéis mais ativos naquele contexto de transformações.
Sendo assim, o palco para as mudanças sociais desencadeadas pela Revolução Francesa já estava armado, tendo como base (ao menos em parte), o pensamento liberal inglês. O ressurgimento do ativismo político feminino foi expressado pela militância das chamadas tricoteuses, que além de apresentarem petições ao governo, participaram ativamente no processo de tomada da Bastilha, em 14 de Julho de 1789, e marcharam até o Palácio de Versalhes, em 5 de outubro daquele mesmo ano, para trazer a família real de volta à Paris. Foi a partir da Revolução Francesa que a atuação feminina adquiriu “uma prática de ação política organizada”. Ao reivindicar seus direitos de cidadania frente aos obstáculos que a sociedade impunha, “o movimento feminista, na França, assumiu um discurso próprio, que afirmava a especificidade da luta da mulher” (ALVES; PITANGUY, 1991, p. 32).
Incomodada com o fato de a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) não abordar em seu texto as prerrogativas da mulher, a dramaturga e revolucionária Olympe de Gouges (1748-1793) escreveu sua Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, onde professava a equidade legal e política entre os sexos. Apesar do seu exemplo de coragem, a atitude de Olympe foi mal vista pelos líderes da revolução e ela acabou sendo condenada à morte pela guilhotina. Mas sua militância não foi esquecida e meio século depois, em Março de 1848, um grupo de mulheres parisienses, composto na maioria por trabalhadoras, professoras, escritoras e atrizes, exigiu o direito feminino ao sufrágio. A partir daí, a história teve cada vez mais exemplos da participação das mulheres na vida pública, especialmente durante as revoluções pró-republicanas de 1848, com a fundação de associações políticas e trabalhistas onde elas reivindicavam seus próprios direitos.

Olympe De Gouges, autora da “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadão” (por: Alexandre Kucharski).
Com efeito, o século XIX também intensificou as diferença entre os sexos, especialmente no âmbito da família (nuclear) burguesa: “um sólido ambiente familiar, o lar acolhedor, filhos educados e esposa dedicada ao marido, às crianças e desobrigada de qualquer trabalho produtivo representavam o ideal de retidão e probidade, um tesouro social imprescindível” (D’INCAO, 2001, p. 223). Nessa esfera, o papel das mulheres dentro do seio familiar seria o de uma educadora, mãe atenciosa e dedicada. Além disso, elas também assumiam uma importante função para o bom desempenho da família, visto que seus maridos dependiam da imagem que as esposa traduziam para o restante da sociedade. Manter uma vida de boas aparências era fundamental para que a classe burguesa obtivesse prestígio e respeito perante os demais. Nesse caso, qualquer mácula ou escândalo poderia prejudicar as ambições da família e, portanto, uma conduta irrepreensível (especialmente por parte das mulheres) se fazia indispensável.
De acordo com Norma Telles, para tornar-se, portanto, criadora e não criatura, a mulher teria então que matar o anjo do lar para “enfrentar a sombra, o outro lado do anjo, o monstro da rebeldia e da desobediência”. Nas palavras de Michelle Perrot:
O século XIX acentua a racionalidade harmoniosa dessa divisão sexual. Cada sexo tem sua função, seus papéis, suas tarefas, seus espaços, seu lugar quase predeterminados, até em seus detalhes. Paralelamente, existe um discurso dos ofícios que faz a linguagem do trabalho uma das mais sexuadas possíveis. ‘Ao homem, a madeira e os metais. À mulher, a família e os tecidos’, declara um delegado operários da exposição mundial de 1867 (PERROT, 1992, p. 178).
A própria economia política havia acentuado essa interpretação dos papéis masculinos e femininos, ao distinguir as categorias: produção, reprodução e consumo. Nesse caso, caberia ao homem assumir a primeira, enquanto a mulher ficara com a terceira. A segunda (a da reprodução), contudo, seria tarefa de ambos.
Enquanto que o campo de atuação dos homens se concentrava na esfera pública, para as mulheres restava o domínio do privado e da casa, uma vez que “o homem público, sujeito eminente da cidade, deve[ria] encarnar a honra e a virtude”. Já a mulher pública, esta constituía “a vergonha, a parte escondida, dissimulada, noturna, um vil objeto, território de passagem, apropriado, sem individualidade própria” (PERROT, 1998, p. 7). Isso não impediu, porém, que muitas mulheres abandonassem suas funções domésticas para aderir à militância feminina em prol da tão almejada igualdade de direitos. Um exemplo disso foi a luta das trabalhadoras de fábricas nos Estados Unidos: a data de 8 de março de 1857 é lembrada como o dia em que as operárias da indústria têxtil de Nova Iorque se mobilizaram contra os baixos salários e requisitaram a redução da jornada de trabalho para 12 horas diárias. Tendo sido reprimidas pela polícia, as reivindicações destas operárias reapareceram no cenário nova-iorquino de 1908 (também em um dia de 8 de março), quando outra geração de trabalhadoras de fábrica lutou contra a exploração que lhes era imposta.
Não obstante, um grande marco na luta das mulheres por direitos igualitários foi a conquista do sufrágio feminino. Para TABOAS,
A luta pelo sufrágio feminino foi o modo encontrado para reunir mulheres com opiniões políticas muito distintas, de classes sociais diferentes, em torno de um objetivo comum: o voto. Porém, de forma alguma essa era a única reivindicação feminina; elas lutavam por igualdade em todos os terrenos; optaram pela estratégia de usar o voto para unificar o movimento das mulheres e para terem acesso ao parlamento e, assim, transformar as leis discriminatórias e as instituições (TABOAS, 2011, p. 270).

Harriet Taylor Mill, por artista desconhecido (c. 1853).
Entre os países que mais se destacaram por um sufragismo feminino radical, podemos identificar a Inglaterra e os Estados Unidos. Neste último, a luta pelo direito ao voto das mulheres se mesclou com o próprio movimento abolicionista. “As mulheres puderam observar as semelhanças da situação feminina com a de escravos, o que lhes trouxe uma medida de sua própria sujeição” (TABOAS, 2011, p. 270).
Na Inglaterra, por sua vez, o liberalismo político se constituiu num fator relevante para a militância em prol dos direitos das mulheres. Em seu ensaio On the Subjection of Women, John Stuart Mill afirmava que a subordinação social feminina era uma discrepância dentro de uma nação que se pretendia liberal. Desse ponto em diante, o movimento pelo sufrágio feminino ganhou adeptos de várias partes do mundo. Contudo, é possível dizer que o pensamento de Mill foi, em grande parte, incentivado pelo de sua mulher, Harriet, que defendeu em seu ensaio, Enfranchisement of Women (1851), o direito de voto das mulheres e serviu de influência para o movimento sufragista feminino dos Estados Unidos. Segundo ABREU, “na articulação de seus argumentos em defesa dos direitos das mulheres, Harriet Taylor Mill invocou, ainda, os ideais de liberdade e igualdade expressos na Declaração de Independência da América como direitos inalienáveis do indivíduo” (2003, p. 751). Desse modo, a participação de Harriet Mill na campanha pelo sufrágio feminino em Inglaterra foi bastante significante para que uma década depois seu marido, John Stuart Mill, subisse à Câmara dos Comuns para promover esta causa.
O século XX, entretanto, foi marcado por alterações significativas no lugar ocupado pelas mulheres na sociedade ocidental. “As décadas de 1930 e 1940 foram marcadas pelo refluxo da organização feminista, pois o movimento havia conquistado o direito ao voto e algumas reformas constitucionais que as reconheciam, formalmente, como cidadãs, o que provocou a sensação de que suas demandas haviam sido satisfeitas” (TABOAS, 2001, p. 272). No ano de 1949, a escritora Simone de Beauvoir laçou o seu polêmico livro intitulado O Segundo Sexo, que discutia as desigualdades sexuais sob uma perspectiva voltada para o existencialismo e materialismo-histórico. Foi nessa obra em que a referida autora lançou as primeiras bases para a posterior definição do conceito de “gênero”, ao escrever que “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”.

Panfleto de Campanha pelo sufrágio feminino em Nova Iorque.
Com o advento das Guerras Mundiais, muitos homens tiveram que se ocupar com deveres militares, deixando, portanto, espaço para que as mulheres desempenhassem tarefas até então concebidas como masculinas. Com o fim do período de guerras, e o consequente retorno dos homens às suas casas, se criou uma preocupação sobre o que fazer com aquelas mulheres que estavam ocupando cargos que antes eram destinados aos seus maridos. As empresas de publicidade, então, começaram a desenvolver propagandas que reforçavam o papel feminino de mãe e anjo do lar. Mas as coisas não saíram conforme o planejado. Segundo Eric Hobsbawm:
A entrada em massa de mulheres casadas – ou seja, em grande parte mães – no mercado de trabalho e a sensacional expansão da educação superior formaram um pano de fundo, pelo menos em países ocidentais típicos, para o impressionante reflorescimento dos movimentos feministas a partir da década de 1960 (HOBSBAWM, 2012, p. 305).
Todavia, é possível dizer que a ideologia feminista, durante as primeiras décadas do século XX, ficou restrita mais aos países ditos “desenvolvidos”. Foi a partir da década de 1960, e, sobretudo nas décadas de 1970 e 1980, que o pensamento político feminino começou a ter grande aderência entre as massas populares de outros países. “Na verdade, as mulheres como um grupo tornavam-se agora uma força política importante, como não eram antes” (HOBSBAWM, 2012, p. 305). Nesse contexto, a própria unidade da família, que no século XIX era concebida entre a classe burguesa como uma ordem nuclear (onde cada membro representava seu respectivo papel), sofreu uma profunda alteração. As mulheres, ao entrarem no mercado de trabalho, passaram a assumir funções masculinas dentro do ambiente doméstico. Com efeito, a mulher casada, que antes era concebida como uma espécie de apêndice do marido, começou a desejar maior liberdade e autonomia em suas decisões. Desse modo, surgiu na sociedade ocidental um novo tipo de família, na qual elas desempenhavam o papel de chefe da casa. Em outros casos, a presença masculina era deixada de lado, e a mulher passou a assumir tanto as funções de pai, quanto a de mãe.

Grupo de militantes norte-americanas em movimento pelo voto feminino no ano de 1913.
Com o tempo, a atuação da mulher no espaço público passou a ser uma coisa mais aceita na parte ocidental do mundo, com algumas delas chegando a ocupar altos cargos políticos, tais como o de prefeita, vereadora, presidente ou primeira-ministra. Porém, na maioria das vezes que uma mulher sobe ao palanque para discursar, ela vai acompanhada dos olhares de uma população que se pretende moderna, mas que no fundo ainda é apegada a valores tradicionalistas. Inclusive dentro do mercado de trabalho é um fato que muitas mulheres ganham menos que os homens, fazendo o mesmo serviço que eles. Nesse sentido, a revolução sexual iniciada por elas há mais de um século tem muito ainda que conquistar. Como disse a historiadora Michelle Perrot, ela é interminável. “Nesse ponto, como em todos os outros, não existe ‘fim da história’. É impossível, então, concluir o relato. Pode-se dizer ‘era uma vez’. Invocar começos obscuros. Dizer o princípio. Mas não o ‘fim” (2013, p. 169).
Referências Bibliográficas:
ABREU, Maria Zina Gonçalves de. A reforma da Igreja em Inglaterra: acção feminina, protestantismo e democratização política e dos sexos. – Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003.
ALVES, Branca Moreira; PITANGUY, Jacqueline. O que é feminismo. – 8ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1991.
D’INCAO, Maria Ângela. Mulher e família burguesa. In: DEL PRIORE, Mary (org.). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2001.
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos. Tradução de Marcos Santarrita. 2ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 304-313.
PERROT, Michelle. PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres. Tradução de Angela M. S. Corrêa. 2ª edição. São Paulo: Contexto 2013.
_. Os excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. Tradução de Denise Bottmann. – 2ª edição – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
_. Mulheres públicas. Tradução de Roberto Leal Ferreira. – São Paulo: UNESP, 1998.
TABOAS, Ísis Dantas Menezes Zarnoff. “Diga-me, quem te deu o direito soberano de oprimir meu sexo?”: a afirmação histórica dos direitos das mulheres. O Direito Alternativo, v. 1, n. 1, p. 258-280, agosto 2011.
Parabéns pelo artigo! É um pouco triste que muitas mulheres ainda hoje desconheçam e até mesmo sejam indiferentes à sua história de lutas na sociedade.
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Muito obrigado, Lilian.
Realmente! Falta à grande parte da sociedade brasileira e especialmente ao público feminino se conscientizar do histórico de lutas das mulheres pela igualdade de diretos, e superar esse machismo que ainda está impregnado na mente de algumas pessoas!
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