A austríaca – o processo de Maria Antonieta (1990)

Dirigido por Pierre Granier-Deferre, L’Autrichienne (no Brasil: A austríaca), é um filme rodado em França no ano de 1990, que reconta de maneira ímpar os autos do julgamento de Maria Antonieta e sua condenação à morte. Extremamente pautado em pesquisa documental, o longa-metragem de 98 minutos de duração fora escrito pelos historiadores franceses André Castelot (autor da biografia Maria Antonietta – La vera storia di una regina incompresa) e Alain Decaux (membro da Académie française), que, por sua vez, utilizaram-se de várias falas e registros condizentes ao processo da esposa de Luís XVI para criar um dos roteiros mais fieis aos registos históricos.  Além disso, encabeçando o elenco principal temos a atriz e cantora alemã Ute Lemper, fisicamente bastante parecida com a última rainha da França, não obstante sua atuação magnífica e repleta de emoção. Por outro lado, a reconstrução impecável dos cenários e do figurino acrescenta ainda mais brilho à produção, fazendo dela uma das melhores do gênero, até então.

Pôster do filme L'Autrichienne (1990).

Pôster do filme L’Autrichienne (1990).

O filme se inicia com o interrogatório “secreto”, ocorrido na noite de sábado, dia 12 de outubro de 1793. Nessa fase preliminar, as cenas são marcadas pela escuridão da Grande Câmara, onde o presidente Herman (interpretado por Patrick Chesnais) faz saber à viúva Capeto de que ela será julgada na próxima segunda, dia 14.  Contudo, outro personagem estava presente durante aquela sessão, o acusador público Fouquier-Tinville, que escutava com atenção as respostas da ré para formular o auto de acusação. Por trás da pele daquele ferrenho revolucionário, temos Daniel Mesguich, olhando quase o tempo todo para Maria Antonieta (Lemper) como um caçador à presa: muito frio e calculista, esperando o momento certo para apanhá-la. É ele quem empresta ao cenário seu tom sombrio e maquiavélico, enquanto Herman e o escrivão apenas demonstravam impaciência. Com efeito, eles já sabiam qual era o resultado daquele processo, exceto a vítima do mesmo.

Ao retornar para sua cela, a ré entra em contato com o advogado que designaram para defendê-la: Chauveau-Lagarde, vivido por Frédéric van den Driessche. A atuação deste último, ao lado de Ute Lemper, é bastante interessante, principalmente pelo tom de cumplicidade entre os dois. Ela confia no defensor, apesar de não o conhecer, enquanto ele se apieda da condição física da acusada, depois de ver o vestido branco dela manchado de sangue nas bordas. A inclusão desse detalhe no enredo do filme passa para o espectador uma noção de como a saúde de Maria Antonieta estava deteriorada devido às péssimas condições a que fora submetida. Esse fato se torna ainda mais simbólico quando analisamos o quarto no qual a ex-rainha estava confinada, um lugar insalubre e infestado de ratos, que oferecia pouquíssimas condições de moradia a alguém. Destarte, quase todas as cenas rodadas no interior da Conciergerie retratam com precisão as péssimas acomodações da prisão, conhecida por seus contemporâneos como antecâmara da morte.

Ute Lemper como Maria Antonieta.

Ute Lemper como Maria Antonieta.

Entretanto, há mais uma personagem que marca as cenas na cela com Maria Antonieta: a criada Rosalie (interpretada por Géraldine Danon). Durante quase todo o tempo ela surge para perguntar à cativa se esta precisa de alguma coisa. A ex-rainha, por sua vez, mostra-se gentil com ela em todas as ocasiões, em detrimento dos guardas que a vigiam. A figura de Rosalie é muito importante naquele espaço, pois a maioria dos relatos sobre os últimos momentos de Antonieta deve-se ao testemunho dela. Igualmente elementar é o personagem Hébert (vivido por Pierre Clémenti), que transpareceu para as telas a crueldade revolucionária, ao oferecer para o tribunal a acusação de que a ré cometera incesto com seu filho. Nesse momento, tal como na história original, Antonieta se levanta e apela a todas as mães presentes na sessão sobre o tom absurdo da declaração da testemunha. Esse é um dos momentos mais simbólicos de L’Autrichienne, e exemplifica de maneira única os tipos de crimes que estavam sendo imputados à acusada .

As cenas do Julgamento, contudo, são marcadas pelos flashbacks de Maria Antonieta. A cada novo depoimento, ela revivia lembranças de sua vida em Versalhes, no Petit Trianon, com seus filhos e amigos. Tais passagens serviram para ilustrar como os anos da revolução prejudicaram a ex-rainha: ali está uma mulher envelhecida precocemente que recorda seus tempos áureos, quando era conhecida como a Deusa da Graça, em detrimento da pessoa ressentida e amargurada que se tornara. Durante todo o processo, Ute Lemper mantem a mesma postura com a qual Antonieta enfrentara seus algozes, desinteressada de tudo aquilo e com respostas curtas. Esse comportamento enfureceu bastante o personagem Herman, que em mais de uma ocasião gritou com a ré, por não conseguir dela nenhuma declaração que indicasse sua culpabilidade.

Em cena: Maria Antonieta (Ute Lemper) conversa com seu advogado, Chauveau-Lagarde (Frédéric van den Driessche).

Em cena: Maria Antonieta (Ute Lemper) conversa com seu advogado, Chauveau-Lagarde (Frédéric van den Driessche).

Quanto a Fouquier-Tinville, este permanecia o tempo todo com seu olhar calculista, como se com isso pudesse amedrontar a acusada.  Nesse sentido, é possível dizer que a atuação de Daniel Mesguich fora uma das mais significativas, uma vez que ele soube personificar a malícia daquele Tribunal, formado apenas para justificar o veredito de morte da acusada.  Em vários momentos, Lemper demonstra a tristeza de seu personagem, como quando o presidente Herman lhe mostra um pacote contendo cachos dos cabelos dos filhos e retratos das amigas da ex-rainha. O tom comovente desta cena só é quebrado (mais uma vez) por Tinville, que chama a atenção dos jurados para o fato de que o lenço da acusada, onde estava bordado um coração em chamas traspassado por uma flecha, era um sinal contra revolucionário. Entretanto, Maria Antonieta (Lemper) sustenta até o fim a expressão impassível diante da vilania usada pelo acusador público em suas falas. Em nenhum momento ela irá fraquejar diante do Tribunal, nem mesmo leem a declaração de que fora condenada culpada por todos os crimes. É apenas ao sair da Grande Câmara, e no caminho de volta à sua cela, que a fraqueza física lhe toma, e então ela pede ajuda de um dos guardas para mantê-la erguida.

Até esse ponto, o roteiro do filme seguiu com precisão a história factual, mas alguns detalhes nos momentos finais da trama foram incluídos para acentuar ainda mais o caráter dramático das tomadas: entre eles, o mais triste consiste na cena em que a condenada, já de volta em seu quarto, começa a chorar por nunca mais tornar a ver sua família, e então recolhe um pequeno retrato do filho que escondera dos oficiais da Conciergerie. Em seguida, ela pega um pequeno embrulho de suas vestes, contendo uma mecha de cabelo do Delfin e beija aquele artefato como se estivesse a acariciar o próprio Luís Carlos. Sem dúvida esse é um dos momentos mais comoventes do longa-metragem. Nem mesmo a parte em que ela solicita papel tinta ao guarda para escrever uma carta de despedida à cunhada consegue ser tão melancólico quanto à cena anterior.

Maria Antonieta (Ute Lemper) perante o Tribunal Revolucionário.

Maria Antonieta (Ute Lemper) perante o Tribunal Revolucionário.

Nesse caso, devo tirar mais uma vez meu chapéu para Ute Lemper, pois a forma como ela passa ao espectador o sofrimento de Maria Antonieta torna as filmagens de L’Autrichienne repletas daquele clima de despedida que certamente o indivíduo imagina ao ler sobre os últimos instantes da vida da última rainha da França. Foi deitada na cama, olhando para a janela, que a criada Rosalie (Géraldine Danon), encontrou a acusada. Principiara, então, por ajudar Antonieta a se vestir para a Guilhotina, sob a vistoria inconveniente de um dos gendarmes. Do mesmo modo como na história original, a personagem implorara ao homem, em nome da decência, que permitisse que ela se trocasse sem testemunhas, ao que ele não consentiu. Uma vez arrumada, ele pegou no espelho e concluiu que seu reflexo não era mais o mesmo de antes: estava marcada pela tristeza.

Depois disso, foi à vez do Abade Girard (interpretado por Rufus) entrar na cela, para oferecer um conforto espiritual à mesma. Católica convicta, Maria Antonieta se recusa a escutar as palavras do homem, por ele ser um padre juramentado. Mas a humilhação ainda estava por vir: entra em cena o presidente Herman, acompanhado do carrasco Sanson, para cortar os cabelos da vítima. Indignada pelo tratamento, a ex-rainha reclama com os oficiais que não fizeram isso com Luís XVI, mas nenhum deles lhe dá ouvidos, então ela permanece imóvel, apenas com uma expressão de desprezo no rosto. Enquanto isso, a carroça que esperava a condenada estava estacionada na porta da prisão.

Cena final de L'Autrichienne: Maria Antonieta é levada para a  guilhotina.

Cena final de L’Autrichienne: Maria Antonieta é levada para a guilhotina.

Sobre esse aspecto, a narrativa de L’Autrichienne seguiu até os menores detalhes históricos, como, por exemplo, a reação de Maria Antonieta ao ver o transporte que a levaria para a Place de La Concorde: o susto que tivera fora tão grande que, de repente, sentira a necessidade de se recolher a um canto para se aliviar. Há até um caráter cômico nessa cena, especialmente marcado pela expressão de Ute Lemper, mas essa passagem passa quase despercebida diante do horror e frustração a que o personagem seria submetido, pois não lhe permitiram se sentar no fundo da carroça, sendo rudemente corrigida pelo carrasco, que a posicionou de costas para os cavalos. Por fim, ela se acomoda e permanece fria como uma estátua, com o lábio franzido pela indiferença. É assim que termina uma das produções mais fiéis à história da última rainha da França, com um elenco bem preparado, figurino e cenários impecáveis, além de um roteiro completamente emocionante. Um verdadeiro lembrete da injustiça que se cometeu contra um dos personagens mais icônicos da história universal.

 Renato Drummond Tapioca Neto

Graduando em História – UESC

Confira abaixo o clipe da música “Dancing” da cantora Elisa, composto de cenas do filme L’Autrichienne (1990):

9 comentários sobre “A austríaca – o processo de Maria Antonieta (1990)

  1. Amo o seu site! Sou apaixonada por história!
    Queria muito ver esse filme e o da Joana a Louca também (esse eu assisti na escola há mais de 10 anos e queria rever). Entretato sempre encontro dificuldade para achar para baixar e ver online, mesmo em sites americanos =/. Achei esse filme no youtube, mas o audio é totalmente em francês sem legenda (se ao menos tivesse legenda em inglês).
    Você conhece sites bons para encontrar filmes e documentários históricos menos conhecidos?

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  2. A FRANÇA nunca mais foi a mesma interessante notar que todo pais que depos o seu rei nunca mais foi o mesmo mudando sempre pra pior. (Russia Alemanha China França Portugal Espanha……Grecia….)

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  3. E o BRASIL
    Quem sabe se não tivesse deposto os ORLEANS e BRAGANÇA estaria bem melhor hoje. Ja que os republicanos nos transformaram numa típica REPUBLIQUETA sul americana.

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  4. Renato, a um tempinho, enviei uma solicitação, para que me fornecesse uma pesquisa mais detalhada sobre a Rainha Cristina da Suécia. Pelo pouco que sei, é uma das três mulheres enterradas no Vaticano. Abdicou de seu reinado, para tornar-se uma católica…você já tem algo a respeito?

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