Por: Renato Drummond Tapioca Neto
Ao pensarmos na monarquia inglesa do século XVI, sem dúvida os nomes que mais virão à mente serão os de Henrique VIII e Elizabeth I, os dois grandes soberanos que definiram as bases da política e do pensamento nórdico europeu para além de suas vidas. Entretanto, por meios de estereótipos pré-concebidos ao longo dos séculos, a historiografia romântica acabou eclipsando outras tantas figuras bastante interessantes dessa fase gloriosa, tais como o de Maria I, desmerecidamente rotulada com o título de “A Sanguinária”, e Lady Jane Grey, conhecida por muitos como a rainha dos nove dias. Tais nomenclaturas, por sua vez, se tornaram tão enraizadas na cultura popular, que até hoje é bastante difícil desvencilhar-se delas. Com efeito, alguns outros personagens ganham ainda menos interesse por parte dos pesquisadores, a exemplo do próprio Eduardo VI, coroado ainda quando tinha 9 anos, e de sua avó, Isabel de York, a única mulher na história daquela ilha a ser filha, sobrinha, irmã, esposa, mãe e avó de reis. Tirando esse último aspecto, que se lido em algum livro ganha apenas a conotação de uma mera curiosidade, muito pouco ainda se foi explorado na vida dessa mulher, que viveu em um período de guerras e teve um papel fundamental no destino político do reino da Inglaterra. Destarte, o presente texto (dividido em duas partes mais conclusão), objetiva retraçar de forma singela os passos desta calada princesa/rainha, cujo próprio silêncio responde a mais perguntas do que as suas poucas palavras.
Parte I – Uma juventude entre guerras.

Quadro de Isabel de York, exposto na Galeria Nacional de Retratos de Londres (artista desconhecido).
Quando se olha o retrato mais famoso de Isabel de York (exposto na galeria nacional de retratos de Londres), observamos uma mulher de pele pálida como o mármore, de feições simpáticas, mas cuja beleza fica encoberta pelos seus trajes majestáticos. Vemo-la, porém não a sentimos. Parece que o tempo todo ela está distraída, fitando algo distante, desinteressada para o que quer que seja. Nas mãos, uma rosa branca, o símbolo da casa de seus pais, tios, e irmãos. Dessa mesma pintura (originalmente pensada para figurar em cartas de baralho), de autor desconhecido, muitas outras foram feitas, todas elas, porém, captando a mesma expressão de imparcialidade e desinteresse inerentes àquela dama que marcou presença no palco das lutas pelo domínio da coroa, e cujo destino estava intrinsecamente ligado ao de tantas outras mulheres bem nascidas: casar e, através de seus filhos, perpetuar a dinastia de seu cônjuge. Sem dúvida, aos olhos do pai e da família, a função de Isabel era apenas a de procria e se rebaixar ao domínio dos homens.
Fora, não obstante, criada para isso, e assim a sua imagética sobreviveu às várias eras que a sucederam. Mas seria correto reduzi-la ao papel de mera reprodutora? É claro que não! Nascida em 11 de Fevereiro de 1466, Isabel de York fora a primeira filha da união entre o rei Eduardo IV, com a outrora plebeia Elizabeth Woodville[i]. Como na Inglaterra não havia uma lei sálica (que impedia a ascensão de mulheres ao trono), a exemplo da França, seria então a herdeira de seu pai, enquanto não viessem os filhos homens. Contudo, era claro que desde o berço estava fadada ao mesmo destino de outras princesas, ou seja, reforçar o poder da coroa pelo casamento com algum nobre de alta posição, ou inclusive um príncipe estrangeiro. E assim, ainda em tenra idade, aquele bebê foi colocado no mercado nupcial, tendo sida prometida três anos após seu nascimento a Jorge, o filho de John Neville, Marquês de Montague. A intenção de Eduardo ao casar sua filha com o herdeiro do rival era estabelecer um trégua entre as duas famílias. Entretanto, o consórcio não ira muito adiante, pois um ano depois o Marquês se levantara contra a autoridade do rei, sendo derrotado por este em Barnet, no ano de 1471.

Rei Eduardo IV, pai de Isabel de York (artista desconhecido).
Todavia, o fato era que muitos contestavam a pretensão do soberano ao trono, de modo que constantemente a rainha e seus filhos se viam obrigados a refugiar-se na Torre ou em Westminster Hall, ora por algum levante popular liderado por um nobre, ora quando o rei travava uma campanha militar na França, deixando a família sozinha na Inglaterra à mercê dos inimigos. Foi o que aconteceu, por exemplo, em 1475, quando Eduardo IV embarcou para o continente, deixando em testamento Elizabeth Woodville governadora do reino e uma pensão de 10.000 coroas para o casamento da jovem Isabel. De acordo com David Loades, “não parece ter havido nenhum noivo em potencial nessa altura, pelo que ela era ainda um trunfo que podia ser usado diplomaticamente, e foi isso que Eduardo fez exatamente em Pecquingy alguns meses depois” (LOADES, 2010, pag. 84). Ao retornar da França, o rei da Inglaterra havia entrado em acordo com o soberano rival, no qual sua filha mais velha se casaria com o Delfin e herdeiro da coroa. A partir de então, Isabel de York passaria a ser conhecida por todos como Madame La Dauphine.
Sendo assim, a princesa passara por um rígido processo de preparação para o seu glorioso futuro: ensinaram-na a falar o francês e o espanhol, e consta que era uma criança extremamente inteligente e precoce, aprendendo a ler e a escrever em francês ainda em tenra idade. Entretanto, assim como tantas coisas na vida de Isabel de York, não dispomos de registros de quem tenham sido seus instrutores. Essa lacuna, até hoje não preenchida pela historiografia, a seu modo, impede que conheçamos um pouco mais da presença da matriarca da Dinastia Tudor nos autos dos acontecimentos que estavam a sacudir a Inglaterra naqueles anos. Por exemplo: não sabemos qual foi a sua reação ao saber que o rei da França havia rompido com o acordo de Pecquingy, depois de entrar em negociações com Maximiliano, marido de Maria de Borgonha, em Arras, privando assim a jovem princesa de seu esperado título. Certamente deverá ter sido uma grande decepção para ela, assim como o foi para seu pai.

Elizabeth Woodville, mãe de Isabel de York (artista desconhecido).
A morte inesperada de Eduardo IV, por sua vez, também deve ter sido outro golpe na vida de Isabel, que na época (1483) contava já 17 anos de idade. De acordo com os laudos médicos da época, o rei veio a óbito aos 42 anos devido à sua vida desregrada, regada a muita bebedeira e sexo. Na ocasião, usaram como argumento da quebra do tratado de Pecquingy, o que nos parece pouco provável, dado ao caráter e comportamento sádico do referido monarca. Tudo então estava certo para a coroação do príncipe Edward[ii], até que o inesperado acontece: Ricardo, irmão mais novo do finado rei, tomara a custódia de seu sobrinho, para desespero e pânico da família real (que se refugiara com a rainha mãe em Westminster), e nos próprios adeptos do partido de York. “De início este pânico deve ter parecido bastante desnecessário, pois os preparativos para a coroação continuaram como se nada tivesse acontecido. Talvez atraída por um sentimento de falsa segurança, ou talvez não tendo a força de vontade suficiente para resistir, a rainha viúva foi convencida a deixar o filho mais novo juntar-se ao irmão” (LOADES, 2010, pag. 85). A partir desse ponto é que começa um dos grandes mistérios da História Inglesa: o desaparecimento (ou assassinato?) dos príncipes na Torre de Londres. Com efeito, o maior beneficiado com tal caso era sem dúvida o próprio Ricardo, que a 6 de Julho daquele ano fora coroado Ricardo III, enquanto apresentava provas de que o casamento de seu irmão Eduardo com Elizabeth era inválido.

Os Príncipes na Torre (1878), por John Everett Millais.
Dessa forma, se a antiga união entre o casal nunca foi efetivada aos olhos de Deus, significava dizer que a outrora Madame La Dauphine nunca fora uma princesa, mas sim uma bastarda. Só se pode imaginar a aflição das princesas e de sua mãe em Westminster, afastadas de tudo o que lhes era mais caro, e temendo pela própria sobrevivência. Logo se diria a respeito de Isabel que “o amor que tinha pelos irmãos e irmãs era algo inaudito e quase inacreditável”. De acordo com o que sabemos de testemunhos posteriores, ela deveria ter sido uma mulher muita carinhosa e amável (características que, na opinião de Loades, não a qualificavam para governar, mas a tornavam num expoente perfeito para uma consorte real). Entretanto, Ricardo III não tinha intensão de fazer mal à sua cunhada e sobrinhas, pelo que se limitou apenas a cercar o refúgio das mesmas, por durante um período de nove meses, até que finalmente Elizabeth Woodville se rendeu. Mal sabendo o novo soberano, entretanto, que a rainha viúva, ainda sob cativeiro, já confabulava acerca do destino político de sua filha e da própria Inglaterra!
legal
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