Há quem diga que Maria Antonieta é a rainha cuja vida e escândalos ganharam as telas do cinema mais qualquer outra que se compare a ela em realeza; outros, que não passa de uma personalidade secundária nos turbulentos anos da Revolução Francesa. Críticas e elogios á parte, o fato é que foram poucas as produções midiáticas que conseguiram captar a beleza e a doçura de seu ser, principalmente por não possuírem uma atriz á altura de Norma Shearer para dar vida a esse ícone do imaginário popular. Com base nessa premissa, eis que o premiado diretor W. S. Van Dyke, resolvera se lançar de cabeça no universo desta incrível mulher, legando á posteridade um dos mais notórios clássicos cinematográficos sobre a vida da última da rainha da França. Baseado em partes do Best Seeler de Stefan Zweig, “Maria Antonieta” (lançado no mesmo ano que a obra em questão – 1938), possui uma fotografia esplêndida, aliado de um elenco perfeitamente adequado aos personagens da trama, além de se destacar pela beleza de suas cenas e pela forma com que introduz o telespectador descontraidamente nos acontecimentos que ali estão sendo revividos.

Robert Morley como Luís Augusto e Norma Shearer como Maria Antonieta na cena do casamento.
Por se tratar de um filme feito a mais de sete décadas, seria um erro gravíssimo compará-lo com produções mais modernas, com seus altos recursos de tecnologia visual. Em vez disso, o que vemos é um longa-metragem com cenas em preto e branco e longos espaços de intervalo, mas que ainda consegue irradiar glamour aos olhos de quem o confere. No centro de tudo isso está Norma Shearer, que com perfeita sintonia conseguiu transparecer para as telas os múltiplos estados de espírito da personagem à qual dá impulso. Logo de início, vemo-na envolta de uma áurea angelical própria de uma criança, feliz por saber dos lábios da mãe que seria rainha da França. A pequena “Tony” (apelido empregado à filha pela imponente imperatriz viúva, Maria Tereza), entretanto, fazia uma idéia muito equivocada de sua futura corte e de seu noivo. Robert Morley, que interpreta o desajeitado Luís Augusto, conseguiu captar muito bem a essência do tímido delfim e futuro rei, especialmente durante os primeiros anos de casamento com a esposa austríaca.

Joseph Schilkraut como o duque d’Orléans e Gladys George como Madame Du Barry.
Todavia, a cena em que os noivos se conhecem não confere com os registros históricos, já que os verdadeiros Luís XVI e Maria Antonieta se viram pela primeira vez nas proximidades de Compiègne, enquanto a Delfina fazia sua viagem oficial para o país em que reinaria. Em vez disso, o filme da ênfase a uma arquiduquesa desapontada perante a corte de Versalhes ao ver o quão desagradável eram os modos de seu consorte. Porém, estava decidida a agradar a todo custo, não fossem os modos grosseiros do Delfim. Logo após a cerimônia de casamento, que parece saltar aos olhos do telespectador como um quadro vivo de tanto decoro e requinte, observamos dois adolescentes inexperientes, até então estranhos um ao outro, tentando romper as barreiras que os separam ideologicamente. Faz-nos, pois, pensar como os verdadeiros agentes dessa presente estória agiram perante um círculo de nobres prontos a apontar os erros do casal. Entre eles, a sórdida amante de Luís XV (John Barrymore), Madame Du Barry.
Du Barry sempre foi uma figura singular nos primeiros anos de Maria Antonieta na França, haja vista o ciúme e inveja que sentia por esta. Sem dúvida, não foi problema para Gladys George viver a impetuosidade dessa mulher, que, por sua vez, possuía inimigos poderosos como o duque d’Orléans. Foi Jeseph Schildkraut o responsável por representar a antipatia do nobre e suas artimanhas para usar a Delfina da França contra a amante do rei, de quem não gostava. Antonieta, que já havia completado dois anos de matrimônio não consumado, decide revolucionar sua vida no palácio e passa a freqüentar festas e demais eventos, luxuosamente vestida. Quem sente falta de um filme que prime pela técnica e o labor do estilo Rococó, com certeza vai adorar essa produção de 1938. A equipe de figurino não deixou passar qualquer detalhe das roupas dos personagens, desde os poufs da Delfina, até os vestidos repletos de jóias de Du Barry. Entretanto, observamos neste longa-metragem uma futura rainha da França completamente dada à futilidade e jogos amorosos com outros homens, quando a verdadeira Maria Antonieta jamais admitiu que nenhum fidalgo se aproximasse dela com intenções devassas.

O belíssimo figurino de “Maria Antonieta” de 1938.
As cenas do baile de máscaras, ou de brincadeiras nos jardins de Versalhes são perfeitamente coerentes com os divertimentos da arquiduquesa, exceto o fato de ela permitir ser beijada por cavalheiros como d’Artois (irmão de seu marido), ou o próprio Orléans. Foi em meio à jogatina que ela conheceu um jovem e garboso sueco, por quem mais tarde se apaixonaria. O sedutor conde Axel Fersen é interpretado por Tyrone Power, que ao lado de Norma Shearer, é a outra grande estrela do filme. As cenas em que aparecem juntos são dotadas de forme romantismo e uma leve pitada de sexualidade. Mas, por ora, Maria Antonieta estava decidida a humilhar sua grande rival na corte e não mediu palavras ao exaltar a baixa extração social da qual provinha Du Barry. Em fato, nunca houve um atrito aberto entre as duas, nem tampouco a provável extração da Delfina para a Áustria devido ao seu comportamento leviano. Nesse momento, o filme trás uma série de erros históricos dos quais o mais grave foi à agressão verbal e física que Luís Augusto comete perante seu avô por não querer que a esposa fosse embora. A pessoa de um rei era sagrada e atacá-la do jeito que Luís fez no filme poderia acarretar sérias consequências para ele.

Tyrone Power como Conde Fersen, e Norma Shearer como Maria Antonieta.
Diante do seu terrível insucesso, no qual descobriu que estava sendo traída pelo duque d’Orléans, Antonieta decide fugir com o amor de sua vida, dando-lhe como garantia de seu afeto um anel com uma inscrição em que se lia “todos os caminhos me levam a você”. No entanto, um acontecimento inesperado muda todos os planos do casal: a morte do rei. Agora Maria seria definitivamente rainha, e nenhuma opção restaria mais para seu amado além de ir para a América, lutar na guerra de independência. Os anos então se passam, e a fútil menina dá lugar a uma mulher madura e adorável mãe para seus filhos. É especialmente interessante notar como Norma Shearer conseguiu fazer de forma magnífica a transição das fases da soberana: de menina inocente, passando por uma jovem frívola e egoísta, até a seriedade de uma rainha cansada da jogatina e gastos excessivos. É nessa fase que a trama dá lugar ao famoso episódio que ficou conhecido como “o caso do colar de diamantes”, tão prejudicial para a imagem da monarquia. Em poucos minutos, o roteiro consegue dar contas dos eventos principais deste ocorrido, com as tramóias da condessa de La Motte, que adquiriu um colar valiosíssimo no nome da rainha e para isso manipulou o cardeal de Rohan, que mais tarde seria inocentado do crime, para desgosto de Maria Antonieta.
Enquanto isso, a população parisiense se insuflava contra seus soberanos. Luís, que em seu despreparo só recebe o escárnio da própria guarda real, não consegue conter a invasão da multidão furiosa ao palácio. Porém, diferentemente do que o filme mostra o povo não encontrou os reis, que na verdade haviam passado por uma porta secreta e se escondido do ódio e violência que tomavam conta de Versalhes. A partir daqui, a narração dos acontecimentos sequentes segue estritamente de acordo com os registros históricos de que dispomos como no capítulo da “fuga das tulheiras”, quando a família real se disfarçou com a criadagem para escapar dos evolucionários. Para tanto, contaram com a ajuda do conde Fersen, que havia retornado da América pronto para ajudar sua amada (aqui o roteiro ressalta que Luís sempre sabia do romance de sua esposa, mas não há evidências concretas de que estivesse ciente do amante da rainha). Entretanto, uma virada nos planos acabou com a sorte deles, fazendo com que fossem capturados. A trama avança, e os prisioneiros são levados para a “torre”, onde ficariam encarcerados. Nesse ínterim, nos despedimos do gracioso personagem da princesa de Lamballe (Anita Louis, que curiosamente também já interpretou Maria Antonieta no filme “Madame Du Barry” – 1934), cruelmente assassinada pelos revoltosos.

Cena com Maria Antonieta e seus filhos na Torre do Templo após a execução de Luís XVI.
As cenas que se passam dentro da torre são as mais comoventes do filme. É onde vemos o rei, a rainha e seus filhos desfrutando da união e carinho mútuos que nunca tiveram em outros tempos. O episódio da última ceia, por exemplo, (logo após a sentença de morte de Luís XVI ter sido declarada, com o apoio do próprio duque d’Orléans), é por si só capaz de fazer derramar lágrimas ao se imaginar que aquela seria a última vez em que aquela família estaria unida. Após a execução do rei, observamos uma feroz Maria Antonieta proteger com unhas e dentes o seu pequenino filho, de quem queriam lhe tirar a guarda justamente no dia em que a morte levara o próprio pai. Acredito que esta seja a cena mais forte de todo filme. Ali vemos uma mãe abatida e cansada pela situação em que se encontrava recobrar forças para defender o fruto de seu ventre. Mas, infelizmente, seus protestos de nada adiantaram e o pequeno Luís Carlos lhe fora tirado. Mais uma vez é preciso aqui tirar o chapéu para Norma Shearer: sua atuação é tão convincente que faz-nos reavivar todo o infortúnio sofrido pela ci-devant rainha, em seus últimos meses de vida.

“Este é o papel que define Norma Shearer, é uma de suas mais poderosas atuações” (palavras de Brent Cullum).
Indicado a quatro Oscars, incluindo o de melhor atriz, “Maria Antonieta” é considerada o maior papel de Shearer, que na época das gravações contava 37 anos (a mesma idade com que a rainha morreu). Sua teatralidade comoveu pessoas ao longo das décadas, entre elas a ilustríssima Eva Perón, que era uma grande admiradora da atriz e deste filme particularmente. O maior pecado da produção, penso, foi não ter evidenciado o fim do duque d’Orléans, fazendo dessa forma com que o telespectador acredite que ele se saiu vitorioso em suas maquinações (Felipe morrera decapitado no mesmo ano que Luís XVI e Antonieta – 1793). Próximo ao fim, a rainha em nada lembrava a magnífica mulher que um dia fora. Aguardando a lâmina da guilhotina na prisão, ela recebe a ilustre e última visita de sua paixão, o conde Fersen (embora tal acontecimento não tenha se sucedido). A junção dos amantes durante os momentos finais da trama acrescentou mais um tom de romantismo ao longa-metragem, com ambas as partes lamentando o seu destino: a rainha sendo conduzida à sua execução, recordando-se de quando era uma jovem arquiduquesa cheia de sonhos para com a França, e Fersen mirando o anel que recebera da amada e esperando o dia em que encontraria o caminho da eternidade ao lado de seu verdadeiro amor.
Renato Drummond Tapioca Neto
Graduando em História – UESC
Confira o Trailer de “Maria Antonieta” (1938):