Por: Renato Drummond Tapioca Neto
Parte IV – O Grande dilema do rei.
O ano de 1527 trouxe muitos problemas de consciência para os envolvidos no que ficou conhecido como o grande problema de Henrique VIII. Era ele ou não casado com sua esposa? Teriam sido uma mentira os 18 anos que os dois passaram em união conjugal? Pelo menos o rei estava confiante nesta certeza, mas não a rainha. Quando ele foi expor seus argumentos a ela, esta se negou a acreditar naquelas palavras e logo em seguida caiu em prantos. Naquele ano, Henrique tinha ordenado ao cardeal Wolsey que organizasse um tribunal secreto para avaliar a validade de seu matrimônio, mas três semanas depois não haviam chegado a uma conclusão. Enquanto isso, mademoiselle boullan se negava veemente a tornar-se amante real, o que, por sua vez, só acentuava o interesse do soberano em sua pessoa. Ele tinha que tê-la, a qualquer custo. Contudo, deve-se desfazer o credo de que Henrique só queria desfazer-se da mulher para tomar Ana como sua. Seu desejo maior era obter um herdeiro varão para a coroa, e se não fosse com a amada, deveria ser com outra.
Em 1503 fora expedido uma bula do Papa Júlio II autorizando o casamento entre o rei e a viúva de seu irmão, mas para Henrique o vigário de cristo não tinha poder sobre as leis bíblicas, que condenavam tal união (ver o livro de Levítico, capítulo 20, versículo 21). Porém, na opinião do Cardeal havia ocorrido um erro na época:
“… Se Catarina deixara o leito de Arthur ainda virgem, então ela e Henrique precisavam de uma autorização ‘de honestidade pública’, isto é, para desfazer um casamento publicamente prometido ou contratado, mas nunca consumado. A autorização do Papa fora de ‘afinidade’ – para um relacionamento consumado entre um casal com parentesco demasiadamente próximo” (DWYER, 1988, pag. 45).
Wolsey, que se sabe não era muito favorável aos espanhóis, ansiava por um tratado com a França, estabelecendo assim a paz entre esses dois reinos inimigos. Porém, o que ele não contava era com a astúcia de Catarina de Aragão, que conseguira enviar uma carta secreta ao sobrinho, Imperador Carlos V, pedindo-lhe ajuda. Seria politicamente danosa para a Espanha uma aliança franco-inglesa, e como tal anulação deveria vir do papa, que estava prisioneiro das tropas do Imperador, Carlos resolveu então agir em favor da tia.
O povo de Inglaterra amava sua soberana católica, enquanto detestava o chanceler Cardeal Wolsey, que gozava a muito tempo do favor real. Muitos nobres, como os duques de Norfolk e Suffolk também o odiavam, devido a sua baixa extração, e viram em Ana Bolena uma oportunidade para destruí-lo. O atual chefe da igreja, para Clemente VII, estava perdido no meio dos interesses estatais: de um lado o imperador o pressionava a não anular o casamento, mas se não o fizesse poderia perder a fidelidade da Inglaterra, quando muitos outros países europeus já haviam aderido ao protestantismo. Sua alternativa foi, então, adiar o máximo que pode (em dezembro de 1527 havia conseguido fugir de seu cativeiro, mas ainda não estava livre para tomar quaisquer medidas). No ano de 1528, o rei ordenou que a rainha deixasse seus aposentos no palácio de Greenwich, adjacentes aos seus, para serem ocupados por Ana, que estava sempre ao seu lado em audiências e constantemente dava conselhos ao soberano de como deveria agir. Naquele instante, o cardeal percebeu que aquela dama, longe de ser alguém insignificante, representava uma ameaça.
Desconfiando do malogrado Wolsey, Henrique decidira levar dois emissários ao papa para interceder a seu favor, mas também não lograra êxito. Tampouco Clemente queria permitir que o núncio inglês tomasse as decisões por ele, algo que também foi desencorajado pelos cardeais franceses. O único jeito era, por ora, autorizar que uma comissão avaliasse essa situação em Inglaterra. Para julgar o caso ao lado de Wolsey, o Papa enviou o Cardeal Campeggio como legado, com a ordem secreta de não estabelecer conclusão ao inquérito. Naquele tempo tudo podia acontecer, como, por exemplo, a rainha ou o rei poderiam morrer, ou este se desinteressar por Ana Bolena. Mas não foi isso que aconteceu. Catarina também não aceitou a proposta de Campeggio de ir para um convento, deixando o esposo livre, pois não tinha “vocação para a vida sacerdotal”. Após esta declaração ao núncio italiano, o fez ouvir em confissão que nunca tinha dormido com seu primeiro marido e que era virgem quando se entregou a Henrique. Para manter as aparências, o rei voltou a partilhar do leito de sua esposa, mas nada mais poderia acontecer entre um homem de 38 anos e uma mulher de 44.
A corte legatícia se reunira em Blackfriars Hall, a 31 de maio de 1529, para julgar o casamento entre Henrique VIII e a infanta de Castela e Aragão. Nem o rei ou a rainha estavam presentes na ocasião, se encontrando no tribunal apenas três dias depois. Em uma cena imortalizada por Shakespeare, Catarina levantou-se de seus aposentos e se dirigiu ao marido, ajoelhando-se diante dele e proferindo um apaixonante discurso:
“Senhor, eu imploro por todo amor que houve entre nós, permita que me seja feita justiça e que se cumpra o direito. Tenha por mim um pouco de piedade e compaixão, pois sou uma pobre mulher e uma estrangeira, nascida fora de vossos domínios. Não tenho aqui amigos e muito menos conselho imparcial, por isso peço-vos como representante da justiça em vosso reino… Tomo a Deus e a todo o mundo por testemunho de que fui vossa fiel, humilde e obediente esposa, sempre dócil a vosso gosto e vontade…, estando sempre disposta e contente com todas as coisas que lhe causavam diversão ou prazer, pouco ou muito… Presei a todos por que presaste, só por vós, com vontade ou sem ela, fossem eles meus amigos ou inimigos. Em vinte anos ou mais fui vossa fiel esposa, e por mim teria tido diversos filhos, embora tenha sido a vontade de Deus leva-los. E quando me tivestes pela primeira vez, tomo a Ele como juiz de minhas palavras, eu era virgem e nenhum homem tinha me tocado. E se isso é verdade ou não, eu deixo ao encargo de vossa consciência” (CATARINA DE ARAGÃO, 1529, apud MANTTINGLY, 1942, pág. 343).¹
Depois de tão devotadas palavras, a plateia do tribunal fora a júbilo. Catarina recebera uma calorosa acolhida da multidão do lado de fora. Havia triunfado sobre seus inimigos, pelo menos dessa vez, enquanto sua rival estava cada vez mais desesperada e impaciente. O rei precisava descontar sua frustração em alguém e o alvo já tinha sido escolhido: o Cardeal Wolsey.
Notas:
¹ Traduzido da edição da obra em espanhol pelo administrador.