O “Sanguinário” reinado de Mary I da Inglaterra – Parte I

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

Primeira Chefa de Governo da Inglaterra a ser coroada, Maria I (1553-1558) – única filha sobrevivente à união entre o rei Henrique VIII com sua primeira esposa – ainda é vista nos dias atuais sob um espectro de fanatismo e perseguição religiosa, suficiente para que a posteridade lhe atribuísse o codinome de “A Sanguinária”. Suas ações políticas deixaram profundas máculas quanto ao determinismo de sua presença: ora interpretada com favor pelas facções que se beneficiaram com o retorno da antiga religião católica no país, ora odiada pelos grupos protestantes, desejosos de escapar dos implacáveis autos-de-fé.

Entretanto, faz-se necessária uma nova reflexão acerca dos motivos que levaram essa predestinada soberana a tomar medidas consideradas cruéis para os padrões de seu tempo, no intuito de enxergar um pouco da mulher que há por trás do estereótipo.De princesa de Gales a bastarda; de rainha a tirana, Maria Tudor passou pelas mais diversas e desastrosas experiências, que muito além de prepará-la para o grande papel que um dia desempenharia, acabaram por transtornar sua consciência, fazendo-a um alvo fácil nas mãos inescrupulosas de homens ambiciosos. Sendo assim, o presente estudo almeja por muito evidenciar, através da história de tão malfada senhora, como amor e poder quase sempre se afiguram como uma combinação perigosa e letal.

Parte I – A conturbada vida de uma herdeira

Catarina de Aragão (c. de 1530)

A trajetória enfadonha desse ícone do imaginário europeu tem seu início a 18 de fevereiro de 1516, quando finalmente a rainha Catarina de Aragão, depois de muitas tentativas fracassadas, dera à luz uma criança robusta como o pai, o rei da Inglaterra. Entretanto, naquela ocasião não seria com o tão esperado herdeiro varão que Henrique VIII seria congratulado, mas com uma menina. Tão logo chegara ao mundo, aquela linda garotinha de cabelos ruivos fora batizada de Mary, do mesmo modo que a tia, e se tornara na tenra idade o depositório das esperanças dinásticas do pai. Para o “Grande Harry” convinha muito mais casar sua filha com um ilustre príncipe estrangeiro, e ver assim o seu neto comandado um grande império, do que torná-la uma rainha absoluta em uma época à qual o governo feminino não era analisado com boas perspectivas.

Visto que na década de 1520 ficara evidente que a poderosa filha de Isabel e Fernando de Espanha (os reis católicos) não mais conceberia, coube-lhe então a tarefa de zelar pela educação de sua prole, já que provavelmente era a mulher mais erudita entre todas as outras de seu reino. Catarina dotou a filha de uma forte convicção católica, buscando tutores apropriados para tanto e versados nas leis canônicas. Todavia, não se pode afirmar que a criação de Mary Tudor fora de toda convencional, uma vez que a rainha também contemporizava com certos ideais de pensadores humanistas, entre eles seu compatriota Juan Luis Vives, ao qual pedira para que escrevesse um tratado acerca da educação das mulheres (intitulado De Institutione Feminae Christianae, afirmava a importância do estudo das moças, em sala de aula com outros jovens, ao mesmo tempo em reconhecia a inferioridade do feminino em detrimento do masculino)

Henrique VIII, segundo obra de Hans Holbein, o jovem.

Seu status como princesa de sangue real seria posto em dúvida quando, em princípios de 1527, Henrique VIII começara-se a questionar sobre a validade de seu matrimônio com a muito amada mãe de sua única filha legítima, com base no fato que ela já havia sido casada com o irmão do rei, Arthur, que morreu seis meses após a união (tempo suficiente para que o matrimônio fosse consumado, tornando assim incestuoso o laço com o segundo marido). Catarina de Aragão jamais concordou em aceitar a anulação de seu casamento e como punição, cinco anos depois, fora separada da jovem Mary para nunca mais tornar a vê-la. Além de ter sido despojada de todo status e opulência condizentes ao seu berço, em fins de 1533 a ex-princesa tivera de ser subordinada a figurar entre a criadagem de sua meio-irmã Elizabeth, então única herdeira do trono e filha da mulher que considerava responsável pelo seu infortúnio e o de sua mãe: Ana Bolena.

Em sete de janeiro de 1536, falecia uma rainha venerada pelo povo Inglês, que sofrera todas as dores por ver o homem que amava nos braços de outra e rogando ao mesmo que fosse “um bom pai para sua filha”. Catarina deixava na terra uma Mary vulnerável, para quem não restara outra opção se não reconhecer que o casamento de seus pais era ilegal, sendo ela própria uma bastarda, e que seu pai era o chefe supremo da igreja da Inglaterra, do contrário arriscaria sua própria existência presa na torre. Em uma carta a Henrique VIII, dizia:

“Mais humilde, obediente e de bom grado deito-me aos pés de sua excelentíssima majestade, meu caríssimo bom pai e soberano senhor, [que] eu tenho hoje percebido sua graciosa clemência e misericordiosa piedade por ter superado os meus processos desagradáveis e pouco naturais por você e suas leis justas e virtuosas…”

Carta de Submissão de Mary ao rei, seu pai.

Pode-se perceber que esta foi a primeira grande provação enfrentada pela futura Mary I, que à época tinha 20 anos, ao negar suas convicções em um estado de completa humilhação infligida pelo homem que mais amara: o rei.

Durante toda a carreira marital de Henrique, a estrela de Mary ascendia e declinava conforme os interesses afetivos de suas madrastas, na medida em que ela se via envolta do jogo de submissão para não incorrer na fúria do pai. Em 1547, seu meio-irmão de nove anos subia ao trono como Edward VI, enquanto Elizabeth, a princesa protestante, era mais bem quista pelo jovem rei do que a católica e devotada irmã mais velha. Os longos anos de espera pareciam chegar ao fim quando, em meados de 1553, Edward convalescia em seu leito, mas ciente o bastante para que ele e seus lordes desferissem um golpe sobre a desafortunada Mary. Pelo testamento de Henrique VIII era ela a próxima na linha sucessória. Porém, não era do interesse do conselho real, mais precisamente do lorde protetor, Jonh Dudley, duque de Northumberland, que uma católica convicta assumisse o trono, fazendo ruir os pilares do protestantismo inglês.

Entretanto, Mary estava disposta a lutar pela herança que sua mãe lhe defendera até fim, encontrando apoio em todos aqueles que outrora foram partidários da primeira esposa. Duas semanas depois da morte de seu irmão (seis de julho), ela, salvaguardada por um exército de adeptos, marchou sobre Londres e destituiu sua prima Jane Grey, uma protestante tão fervorosa assim como Mary era no catolicismo, do trono de Inglaterra. Esta, ao lado de seu marido e do pai do mesmo, o duque de Northumberland, fora aprisionada na torre (um mês depois Jonh Dudley seria decapitado por alta traição). Dessa forma, nota-se como o caráter de submissão de Mary, em certos casos, assumia a forma de um véu que escondia a mulher de excepcional fibra e coragem que era, pois no mínimo precisaria de determinação para correr e persistir em seu direito.

Mary, em 1544, por Mestre John.

Mas o que faz então um líder popular decair como uma estrela sem brilho? A resposta está na própria volubilidade daqueles que o segue, especialmente os do país em questão. Uma das primeiras medidas de Mary como rainha fora reatar laços fraternos com o papado em Roma, pelo qual o casamento de seus progenitores fora julgado bom e válido. Dessa forma, não só satisfazia a vontade de boa parte da população ao tornar o catolicismo novamente religião oficial, como também reafirmava sua legitimidade. Porém, a notícia que realmente chocara os ingleses fora dada no mês da coroação da nova soberana (outubro de 1553): ela planejava unir-se em matrimônio com o filho do Imperador Carlos V, o futuro Felipe II da Espanha. A partir daí, a imagem de passividade e recado da infância e juventude daria lugar à da opulenta monarca plena de poderes.

Artigo editado a partir de: “Mary, sanguinária ou Filha das Circunstâncias?”.

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