Por: Renato Drummond Tapioca Neto
Em 1870, uma garotinha órfã da Índia, de nome Aine, residente na cidade de Agra (localizada nas antigas Províncias do Noroeste), pegou papel e tinta e resolveu escrever uma carta endereçada ao Palácio de Buckingham, em Londres, na Inglaterra. A missiva era destinada a ninguém menos que a própria rainha Vitória. Não era incomum que a população local enviasse petições e correspondências para o Escritório Britânico na Índia, para serem depois entregues a membros da família real ou a parlamentares. Contudo, a cartinha de Aine, uma estudante da Secundra Female Normal School, causou certo aborrecimento entre os oficiais do Escritório, devido ao fato dos procedimentos protocolares não terem sido observados antes do envio. Mas, o que teria provocado uma reação de indiferença generalizada dentro do departamento? A tradução do documento, por sua vez, revela muito sobre o processo de imperialismo britânico na Índia do ponto de vista de uma aluna de colegial, que terminou seu texto para Vitória com a triste frase: “Esta carta foi escrita pela vossa indigna escrava”!

A rainha Vitória foi reconhecida formalmente como Imperatriz da Índia em 1876.
Com efeito, o texto da carta de Aine nada tinha de ofensivo. Escrito originalmente em hindustani, a missiva, datada de 21 de abril de 1870, foi encaminhada pelo Reverendo Erhardt, Superintendente do Orfanato Secundrah. Juntamente com a cartinha, Aine enviava para a rainha uma amostra de tecido de renda, possivelmente feito por ela, mas que infelizmente não foi conservado no Arquivo da Biblioteca Britânica. Segundo uma tradução fornecida pelo Escritório, a autora começava o texto da seguinte forma:
Que a misericórdia de Jesus Cristo esteja sobre Vossa graciosa Majestade! Saibam por vós que sou uma de vossas súditas e uma pobre menina. Há um orfanato aqui em que todos os meninos e meninas são órfãos. Através da grande misericórdia de Deus, todos nós fomos trazidos para cá e estamos muito felizes…
Na sequência, ela dizia que haviam onze turmas em sua escola, compostas por 220 alunas e 180 alunos. Aine havia aprendido inglês com o Sr. e a Sra. Erhardt, tendo mais duas professoras que lhe ensinaram a ler e a “manter-nos longe dos maus caminhos de todos os tipos”. Em sua escola, ela também teve aulas de Geografia, Religião e Gramática hindu.

Discurso à Rainha Vitória de Aine, aluna da Escola Normal Feminina Secundra em Agra. Crédito: IOR/L/PJ/2/50, Arquivo 7/333
Em sua mensagem para a rainha, Aine se recordava da visita que Bertie, o príncipe de Gales, fizera à sua escola. O herdeiro do trono e futuro rei Edward VII esteve de volta à Índia entre os meses de novembro de 1875 e março de 1876, época em que sua mãe estava prestes a receber o título de Imperatriz daquele país, juntamente com muitos de seus tesouros saqueados de templos sagrados. Outro dos filhos da monarca que também esteve na escola de Aine foi o príncipe Alfred, duque de Saxe-Coburgo-Gota: “Saibam por vocês que o Príncipe Alfred honrou a Escola Secundrah com uma visita, que ele entrou em nosso recinto e depois foi para o dos meninos, e depois para a igreja onde cantamos um hino e o Padre orou por ele. Ele depois foi embora”. Aine terminava sua carta para a rainha da seguinte forma: “Que Deus lhe abençoe, lhe guarde e lhe preserve. Que o favor de nosso Senhor Jesus, a graça de Deus e a ajuda do Espírito Santo estejam para sempre com você e sua família. Todos os órfãos enviam saudações. Esta carta foi escrita pela vossa indigna escrava”. Se por um lado a carta pouco diz sobre a vida da autora, por outro o que ela silencia causa angústia: o que aconteceu aos seus pais e das outras 399 crianças que viviam com ela no orfanato?

Tradução do discurso de Aine para a Rainha Vitória. Crédito: IOR/L/PJ/2/50, Arquivo 7/333.
Levando-se em consideração a história do imperialismo na Ásia e na África, podemos imaginar o mais funesto destino para os pais daquelas crianças. Teriam eles resistido à colonização e perecido. Se assim fosse, seus filhos não deveriam repetir o mesmo comportamento insubmisso. Cabia ao Estado, portanto, transformar os órfãos em indivíduos dóceis e úteis. Numa primeira leitura, o texto da carta de Aine chama atenção pela inocência das palavras. Mas, por outro lado, indica também uma posição de subalternidade com relação aos colonizadores britânicos. Afinal, parte do processo de evangelização das crianças nascidas em países colonizados consistia em fazê-las crer que o poder vinha da metrópole, de Deus e da Coroa. Assim, a geração de Aine foi educada pelos professores para se tornar súditos obedientes da rainha e desapegados das tradições de seus antepassados. Criada em um orfanato, quase nada sabemos acerca de sua vida, exceto pelas poucas linhas que ela escreveu para Vitória, mas que provavelmente nunca foram lidas pelas soberana. Assim que a carta chegou ao Palácio de Buckingham, ela foi devolvida com uma tradução para o Escritório Britânico na Índia, para que o assunto fosse tratado por seu Secretário.

Arquivo do Escritório da Índia no endereço de Aine. Crédito: IOR/L/PJ/2/50, Arquivo 7/333.
Chocou à equipe de Comunicação do Palácio o fato de que a correspondência não seguiu o canal oficial para postagem, uma vez que fora o Reverendo Erhardt quem a enviara. Aparentemente, o Secretário do Escritório na Índia não pareceu impressionado com o documento, apesar da beleza da caligrafia de Aine e da aparente gentileza de suas palavras, que só confirmavam a submissão de uma menina ao Estado. O que o preocupou foi justamente os meios através dos quais a missiva chegou a Londres, sem passar pelos canais oficiais de transporte dos correios. Ele então aconselhou:
Como o presente destinatário não pede nada, mas contém uma oferta, e é apenas complementar, argumenta-se que é melhor não devolvê-lo ao escritor, como é feito periodicamente no caso de petições e afins. A partir da indagação sobre o curso normalmente seguido no Departamento Político, parece ser melhor não tomar conhecimento da comunicação.
Assim, as palavras de Aine permaneceram esquecidas por mais de 150 anos, juntamente com seu nome. Ela nunca soube se a rainha teria lido ou não a sua carta, uma vez que não recebera qualquer resposta, muito menos o documento original. Pouco depois, Vitória foi reconhecida Imperatriz e milhares de monumentos e estátuas da monarca, simbolizando o imperialismo britânico na Índia, foram erguidos em Agra e em várias outras Províncias do país.
Fonte:
Scroll. Why a letter from an orphan to Queen Victoria upset the British India Office. 2023 – Acesso em 14 de março de 2023.