No início de 2018, recebi com certo receio a notícia de que a Focus Features estava para iniciar a produção de um novo filme sobre a vida de Mary Stuart, trazendo no elenco grandes estrelas de cinema e diretores comerciais. Indagando-me sobre o que um longa-metragem como esse poderia acrescentar de inovador na história da personagem, imediatamente me lembrei da franquia “Elizabeth”, de Shekhar Kapur, com sua fotografia belíssima, figurinos arrebatadores, ótimas atuações, porém, com um enredo bastante sensacionalista. Ou mesmo a série da CW, “Reign”, que mais parecia uma remake de “Barrados no Baile”, em versão do século XVI. É difícil ficarmos plenamente satisfeitos com dramas “históricos”, especialmente por conta das distorções factuais que os diretores fazem em nome da indústria, visando um alcance maior de público. Assim sendo, Ana Bolena pode muito bem ser representada como uma destruidora de lares, Maria Antonieta como adúltera e Catarina de Médici como assassina. Por outro lado, quando a chamada licença poética respeita os limites daquilo que é conhecido, sem estereotipar personagens e caminhando lado a lado com o verossímil, então sim, podemos ter uma narrativa de boa qualidade. Pelo menos foi essa a impressão que tive ao reassistir “Mary Queen of Scots” (no Brasil, “Duas Rainhas”), pela quarta ou quinta vez consecutiva.
Produções sobre a família real inglesa geram anualmente milhões de dólares para a indústria do entretenimento e arrebatam inúmeros prêmios. É interessante observar o fascínio que esse universo habitado por reis e rainhas de outrora, nobres e cavaleiros, exerce sobre o imaginário popular. Podemos parar para ler e ouvir suas histórias inúmeras vezes, contadas de diferentes formas, que ainda assim não nos cansamos. Talvez Mary Stuart, rainha da Escócia, seja campeã em adaptações para o cinema. Desde as ótimas produções estreladas por atrizes premiadas, como Katherine Hepburn e Vanessa Redgrave, que o público vem demonstrando interesse pelo drama de sua vida, algo que aumentou ainda mais depois de “Reign”. Seguindo tal precedente, a diretora Josie Rourke escalou duas das atrizes de maior evidência na atualidade para o elenco: as indicadas ao Oscar, Saoirse Ronan e Margot Robbie, que interpretam Mary e Elizabeth, respectivamente. Esse tipo de escolha geralmente me deixa apreensivo, justamente pelos motivos expostos no parágrafo anterior. Mas, conforme as imagens das gravações iam sendo divulgadas, minha expectativa só fazia aumentar, principalmente por causa do belíssimo figurino assinado por Alexandra Byrne. Além disso, o aspecto geral das personagens, cabelo e maquiagem, me agradou bastante, com especial destaque para as marcas de varíola no rosto da rainha da Inglaterra.

O filme se baseia na obra do historiador John Guy, “Queen of Scots: The True Life of Mary Stuart” (2004). Em cena: Saoirse Ronan como Mary Stuart.
Esteticamente falando, a escolha de Saoirse Ronan para o papel principal foi muito bem feita, exceto pelo inglês carregado de sotaque escocês. Apesar disso, ela reúne algumas das mesmas características faciais de Mary Stuart, tais como a testa inteligente e as maçãs do rosto altas. Os cabelos acobreados, por sua vez, quebraram com aquela ideia que muitos tem de uma rainha morena e sensual, como em Adelaide Kane. A Mary de Saoirse é corajosa, impulsiva e com uma profunda noção do lugar que ocupa na sociedade. Ao mesmo tempo, é graciosa e se porta com dignidade mesmo nas situações mais adversas. Seja em suas vestes deslumbrantes, ou descabela e coberta de sangue, ela se mantem firme e confiante no seu posto, diferentemente de sua prima Elizabeth, cuja insegurança a faz temer a rainha da Escócia como uma ameaça e não como uma aliada em potencial. A troca de cartas entre as duas soberanas dá o tom que delimita seu relacionamento e define os contornos do roteiro. No filme, essa questão foi muito bem abordada, assim como as contínuas exigências de Mary Stuart para que sua prima a reconheça como herdeira do trono inglês, uma questão tão delicada que está no cerne da animosidade que se instalou entre as duas rainhas, bem como a fonte de quase todos os problemas subsequentes que Mary veio a enfrentar no seu governo.

Margot Robbie como Elizabeth I
Quanto a Elizabeth, sua atitude majestosa ao caminhar pelos corredores ou presidir as sessões do conselho de ministros é apenas uma casca que esconde a pessoa insegura que ela é. Em muitos sentidos, a atuação de Margot Robbie me lembrou a de Cate Blanchett em “The Golden Age” (2007). Até mesmo o figurino desenhando para a personagem alude às peças usadas por Cate nos filmes de Shekhar Kapur. Não que isso seja algum demérito, mas esta produção acrescentou praticamente nada de novo na composição da personagem. Observamos Elizabeth atormentada pelos problemas de sempre, principalmente com a questão do casamento. Mas, diferentemente das outras adaptações, em “Mary Queen of Scots” é levantada com maior ênfase o que era para uma mulher no século XVI ocupar uma função essencialmente masculina, qual seja, a de um rei. Historicamente, a figura do monarca é, em sua essência, masculina. Inclusive, em alguns países, como na França, a sucessão feminina era proibida por lei. Quando uma princesa ascendia ao trono, carregava consigo as apreensões de todo o reino e seus erros eram maximizados para justificar a opinião tacanha de que não eram aptas para o exercício do poder. No filme, Elizabeth afirma a Cecil (Guy Pearce) que “Deus havia criado a mulher para ser esposa e mãe” e que, por isso, ela havia escolhido se tornar um homem.
Ao escolher “ser um homem”, a rainha da Inglaterra criava para si um escudo contra as supostas fraquezas do seu sexo e se livrava do perigoso problema do casamento. Uma questão tão delicada e que foi imprudentemente decidida por Mary. Sua união com Henry, lorde Darnley (Jack Lowden), se mostrou um fiasco do início ao fim e granjeou-lhe a antipatia dos súditos, inflamadas pelas pregações do líder da Igreja da Escócia, John Knox (David Tennant). Josie Rourke resolveu obedecer a teoria do biógrafo John Guy, autor de “Queen of Scots: The True Life of Mary Stuart” (2004), de que havia uma espécie de sociedade entre Knox e o meio-irmão bastardo da rainha, James, conde de Moray (James McArdle), visando a destruição da imagem de Mary por meio de um ataque ao que ela tinha de mais humano, sua feminilidade. A atuação de Tennant como o fanático religioso que arrastava multidões com seu discurso virulento é digna de admiração. Ele consegue fazer com que o telespectador sinta raiva de sua personagem e condescendência para com a rainha da Escócia. Ao contrário de Elizabeth, que contava com a lealdade de seus ministros, Mary Stuart estava cercada de pessoas que o tempo inteiro conspiravam para derruba-la do trono, sendo o conde de Moray o principal arquiteto das intrigadas que abalaram a estabilidade do seu reinado, conforme o filme demonstra.

“Mary Queen of Scots” prima pela fotografia dos cenários, que variam entre o castelo de Holyrood e os prados da Escócia, às brumas inglesas e Hardwick Hall.
Enquanto a rainha da Inglaterra preferia viver uma paixão platônica por Robert Dudley (Joe Alwyn), Mary sucumbiu aos encantos de seu primo doidivanas, que só lhe trouxe aborrecimentos. Um fato interessante nesse tipo de produção é a representação de Lorde Darnley como sodomita. Desde a versão de 1971 de “Mary Queen of Scots” que a indústria explora um possível envolvimento sexual entre o segundo marido da rainha e seu secretário italiano, David Rizzio (Ismael Cruz Córdova). Contudo, o mais intrigante nessa situação é a completa indiferença de Mary. Que uma soberana católica se sentisse perfeitamente à vontade com um secretário homossexual me parece algo bastante difícil de engolir. Mas, em nome da arte, vamos acrescentar aos muitos charmes de Mary sua tolerância para com as minorias. Afinal, faz ela parecer mais humana e, portanto, próxima do nós, meros mortais. Acredito que um dos momentos mais chocantes do filme seja o assassinato de Rizzio na presença da monarca, principalmente por se tratar de um evento tão violento quanto real. Não há deturpação de fatos aqui. David foi apunhalado inúmeras vezes pelos nobres escoceses, tendo a rainha e suas damas de companhia como testemunhas forçadas dessa situação. Mary, que estava grávida quando isso aconteceu, teve um punhal apontado para seu ventre inchado.
Outra cena impactante é o assassinato do próprio Darnley. Tendo conseguido se livrar do cárcere imposto pelos seus inimigos depois de manipular o marido fraco, Mary enviou o rei para outra residência, onde passaria a viver afastado da esposa e do filho recém-nascido. Evidências recentes sugerem que a rainha não teve participação no atentado de Kirk O’Field e que Darnley teria sido vítima de um complô arquitetado pelos lordes escoceses. A diretora Josie Rourke apostou no novo e acertou em cheio. A meu ver, esse foi um dos aspectos mais positivos da trama, pois evidencia a atualidade da pesquisa feita para o roteiro. Mary se recusa a anular o casamento, ao passo em que demonstra completa ignorância sobre qualquer atendado contra a vida do real consorte. “Não serei conhecida como a Senhora Henrique VIII, dispensando maridos assim como ele fez com as esposas” – vociferou a personagem diante do conselho dos ministros, provocando sua total indignação e também (por que não?) o meu riso. Infelizmente, o filme caminhou para um desfecho demasiado abrupto. Depois da a morte do rei, Mary Stuart é apartada do príncipe herdeiro e segue viagem rumo ao castelo do conde de Bothwell (Martin Compson), protagonizando o que na minha opinião foi um dos momentos mais tristes da narrativa. Apesar do caráter apelativo da cena, ver o bebê James chorando e gritando “mamãe” enquanto ela segue na direção oposta foi de cortar o coração.

Os figurinos desenvolvidos por Alexandra Byrne baseiam-se em retratos das soberanas, conforme podemos observar nesta reprodução fiel usada por Margot Robbie. rainha da Inglaterra constrói sua imagem de poder na mesma proporção em que perde suas características mais humanas e se torna uma caricatura de si mesma.
Com efeito, há muitas coisas ainda que eu gostaria de comentar sobre este novo remake de “Mary Queen of Scots”, tais como a beleza dos cenários, que variam entre o castelo de Holyrood e os prados da Escócia, às brumas inglesas e Hardwick Hall; a fotografia esplêndida; ou a multiplicidade étnica na composição do elenco. Mas, por medo de me delongar demais numa resenha que se pretende curta (ao menos essa era minha intenção), gostaria de finalizar minha análise focando em dois aspectos que me deixaram bastante inquieto. O primeiro deles é o estupro de Mary Stuart por Bothwell, seguido pelo terceiro casamento forçado, algo que não encontra correspondente nos registros históricos. Nesse caso, você poderia me dizer: “é um filme e temos que entender que se trata de uma ficção”. Mas é justamente por isso que se torna mais revoltante. No período em que nós vivemos, o estupro é algo hediondo e uma das formas mais graves de violência contra a mulher. Imediatamente, pensei nas muitas mulheres que passaram por essa experiência terrível e que assistiram à essa cena. Construir Mary como uma personagem empoderada para em seguida apresenta-la como vítima da brutalidade sexual dos homens foi uma das maiores incoerências do roteiro. Infelizmente, a trama, que tinha tudo para ser sublime, incorreu nos mesmos erros sensacionalistas de produções anteriores.
O segundo ponto que não poderia deixar de argumentar, deixei-o justamente para o parágrafo final: o épico encontro das duas monarcas. Um dos fatos mais curiosos na dinâmica do relacionamento entre Mary e Elizabeth é que, apesar de habitarem na mesma ilha, nunca se viram pessoalmente. Desde quando o alemão Friederich Schiller incluiu essa passagem na sua peça de 1800, “Maria Stuart”, que se tornou irresistível para nós imaginar como seria a rainha da Escócia diante da rainha da Inglaterra, desconstruindo falsas imagens criadas por retratos de qualidade duvidosa e cartas que revelavam mais pelo silêncio do que por palavras escritas sob a pena da polidez. Mary, a mulher que Elizabeth gostaria de ter sido. Elizabeth, a soberana que Mary não conseguiu ser. A rainha da Inglaterra constrói sua imagem de poder na mesma proporção em que perde suas características mais humanas e se torna uma caricatura de si mesma. No momento em que escrevo essas linhas, as palavras finais da personagem no seu encontro com a prima não saem da minha cabeça: “Se você me matar, lembre-se que estará assassinado sua irmã, assim como a sua rainha”. A morte representa para ela seu último triunfo sob Elizabeth, pois sabe que de seu corpo nasceu a próxima linhagem de reis da Inglaterra. A despeito do momento patético em que ela faz uma oração ao filho James, a personagem se curva ao machado do carrasco como se tivesse esperando pela coroa que, em vida, nunca pousou na sua cabeça. Essa, porém, só a posteridade pôde lhe oferecer.
Confira abaixo o trailer de “Mary Queen of Scots” (2018):
Renato Drummond Tapioca Neto
Graduado em História – UESC
Mestre me Memória: Linguagem e Sociedade – UESB
Assisti o filme ontem e em seguida li sua resenha. Gostei muito mas discordo quando vc diz que a cena do estupro era desnecessária. Isso era muito comum na época e, apesar de se tratar de uma rainha poderosa, ela era uma mulher e mulheres, em geral, eram frequentemente desrespeitadas. Outra coisa, o estupro é um assunto que.precisa ser denunciado e enfrentado constantemente. Tapar o sol com uma peneira não vai fazer com que resolvamos um crime que acontece com enorme frequência mesmo no momento atual. Um abraço.
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Concordo, por mais doloroso que seja, é um assunto que não se deve esconder e nem ignorar.
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