Em busca da face oculta de Maria Madalena – resenha da obra de Michael Haag (2018)

HAAG, Michael. Maria Madalena: da Bíblia ao Código Da Vinci: companheira de Jesus, deusa, prostituta, ícone feminista. Tradução de Marlene Suano. – Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

No ano de 591 d.C. na basílica de São Clemente, em Roma, o papa Gregório I pronunciava sua 33ª homilia, na qual afirmava: “ela, a quem Lucas chama de pecadora, a quem João chama Maria, que acreditamos ser a Maria de quem sete demônios foram expulsos, de acordo com Marcos. E o que estes sete demônios significam, senão todos os vícios?”. Com essas palavras, o sucessor de São Pedro fixava a identidade de uma das mais controversas personagens do Novo Testamento, Maria Madalena. Por mais de 1,4 mil anos, a imagem de Madalena como prostituta e pecadora arrependida se enraizou na cultura cristã ocidental de tal modo que, até hoje, é quase impossível pensa-la de outra forma. Graças à propaganda da literatura e das artes, especialmente após o Renascimento, conseguimos evocar com facilidade seu perfil feminino, contemplando de seu exílio na caverna de Sainte-Baume algo além de nosso alcance e compreensão. A especulação em torno do papel que Maria Madalena desempenhou ao lado de Jesus Cristo já rendeu discussões calorosas entre vários historiadores, teólogos e demais especialistas no estudos dos evangelhos e das sagradas escrituras, entre eles Michael Haag, autor do aclamado The Quest of Mary Magdalene: History and Legend (2017).

Michael Haag

Conhecido por seus trabalhos sobre a antiguidade e o medievo, Michael Haag é historiador e escritor, autor de extensa bibliografia acerca dos mistérios do ocidente. Sua obra mais famosa, The Templars: History and Myth (2008), sobre uma das ordens religiosas mais poderosas da Idade Média, já foi traduzida para diversas línguas, incluindo o português. Sua predileção por enigmas do passado se faz também presente em livros como Inferno: Decode (2013), espécie de leitura complementar para se entender o romance Inferno (2013), de Dan Brown. Ao lançar seu romance de maior alcance, Brown chocou toda a comunidade cristã ao enfatizar uma teoria muito controversa contida em The Holy Grail and The Holy Blood (1982), de que Maria Madalena fora na verdade esposa de Jesus Cristo e que sua descendência gerou a linhagem de reis merovíngios da França. Mas até que ponto podemos confiar na leitura de uma obra de ficção, mesmo que embasada em registros históricos? Os romances do autor do best-seller The Da Vinci Code (2003) costumam ser bastante esmiuçados por Haag nos seus próprios trabalhos, nos quais refuta com fatos e evidências muitas das afirmações do romancista, conforme podemos observar a partir da leitura de The Quest of Mary Magdalene.

Publicado no Brasil em março de 2018 pela editora Zahar, com tradução da professora especialista em história e arqueologia do Mediterrâneo Antigo, Marlene Suano, o livro traz na sua capa o singelo título de Maria Madalena. Ao primeiro contato, parece tratar-se de uma biografia da personagem bíblica. Impressão essa que é desfeita após a leitura dos primeiros capítulos. Michael Haag escreveu o que podemos classificar como um ensaio cultural, contendo uma leitura alternativa dos evangelhos canônicos e de outras fontes, especialmente das passagens que remontam à pregação de Jesus e a participação de Madalena em tais eventos. O que aborrece, entretanto, é a escolha do subtítulo: “da Bíblia ao Código da Vinci; companheira de Jesus, deusa, prostituta, ícone feminista”. O conjunto dessas palavras soa bastante sensacionalista para quem as escuta. Mesmo na edição hardcover em inglês podemos encontrar frases de efeito semelhante. Certamente, um joguete editorial para causar impacto no mercado. Porém, a obra busca descontruir uma série de interpretações equivocadas sobre Maria Madalena, para destaca-la como umas das mais proeminentes pregadoras dos evangelhos e discípulas de Jesus Cristo.

Maria Madalena, atribuída a Leonardo Da Vinci.

Composta de 13 capítulos, distribuídos em mais 330 páginas, Maria Madalena convida o leitor a revisitar seu próprio conhecimento acerca da Bíblia, especialmente da personagem que dá título à obra. É interessante observar como, até os dias de hoje, muitos ainda continuem referindo-se a ela como a prostituta arrependida, mesmo a Igreja Católica tendo reconhecido na década de 1960 que as três mulheres mencionadas em Lucas, João e Marcos se tratem de pessoas distintas. Alguns ainda vão mais longe, ligando-a também à mulher adúltera em Jó 8, 1-11, que estava prestes a ser apedrejada por uma multidão e foi salva por Jesus. “Quem dentre vós não tiver pecado, atire a primeira pedra”, teria dito o assim chamado messias. Erros de interpretação como esse eram muito comuns no cristianismo primitivo e se enraizaram na cultura popular. De proeminente discípula, Maria Madalena passou a ser representada como a mulher pecadora, da qual sete demônios (os sete pecados capitais) foram expulsos. Em oposição à imagem da mulher penitente, a Igreja investiu com força naquele que até hoje se constitui em um dos pilares da fé católica: o culto à virgem Maria. A reverência à grande mãe era algo presente inclusive nas culturas pagãs, conforme podemos observar na adoração a Isis, deusa do panteão egípcio, mas que se universalizou durante o período helênico.

O contraste entre Maria, a mãe, e Madalena, a pecadora, oferece a nota introdutória à obra de Michael Haag. Em seguida, o autor chama atenção para as omissões ao nome de Madalena nos evangelhos canônicos e sua completa ausência nas epístolas de Paulo. Para Haag, essa foi uma notória omissão da importância de Madalena pelos pais fundadores da Igreja. Sua presença basicamente se restringe ao momento da ressureição, quando, no domingo, ela entrou na tumba para ungir o corpo de Jesus e encontrou o local vazio. Para o autor, “ela foi fundamental para a história, embora a verdade da história tenha sido obscurecida ou perdida: a de que Maria Madalena, e apenas Madalena, tivesse uma relação especial com Jesus” (2018, p. 144). Com isso, Haag não quer sugerir que Madalena fosse esposa de Jesus, como gostam de pensar os fãs ardorosos e The Da Vinci Code e os leitores de The Holy Grail and The Holy Blood. Em momento algum do livro o autor afirma que haveria entre os dois uma ligação conjugal. Pelo contrário. Na qualidade de uma mulher de família abastada, Maria Madalena possivelmente foi uma das pessoas que financiaram a campanha de Jesus e estava presente em alguns momentos mais importantes de sua pregação, como na ressureição de Lázaro (possivelmente seu irmão) e na crucificação.

Frontispício da edição brasileira de “The Quest of Mary Magdalene”, publicada pela editora Zahar (2018).

Com efeito, a chave para se entender o papel de Madalena na pregação de Jesus Cristo apareceu com a descoberta dos evangelhos gnósticos de Tomé, Felipe e da própria Madalena. Ali, ela aparece numa cena onde se desentende com Pedro, o primeiro Papa da Igreja, ao que Mateus teria lhe dito: “Pedro, você sempre foi exaltado. Agora vejo você disputando contra uma mulher como com adversários. Mas, se o Salvador a tornou digna, que é você, de fato, para a rejeitar?”. As citações feitas diretamente dos evangelhos gnósticos servem como sustentação para a tese do autor de que Maria Madalena estava em pé de igualdade para com os apóstolos de Cristo, ajudando a espalhar sua palavra após a morte dele. Michael Haag apresenta ao leitor dados científicos, que comprovam a autenticidade dos documentos, tão ou até mais antigos que os próprios evangelhos canônicos. Infelizmente, o evangelho de Madalena poderia ter sido mais explorado pelo autor. Haag lhe dedica apenas algumas páginas, embora reconheça que “nesse único evangelho com o nome de uma mulher, Maria Madalena desempenha papel central” (2018, p. 220). Até mesmo o evangelho de Felipe, o mais famoso por suas tendências pró-união entre Jesus e Madalena, carece de melhor aprofundamento.

Todavia, o ponto alto da obra de Haag talvez esteja concentrado nas suas 50 últimas páginas, onde o autor explora as lendas em torno da figura de Maria Madalena, como a de que ela teria passado três décadas em penitência numa caverna em Sainte-Baume (França), ou sobre a autenticidade dos ossos na basílica de São Maximino. São realmente dela? Não teria sido fora dos costumes da Igreja utilizar falsas relíquias para atrair o maior número possível de fieis. Interessante também é a análise que o autor faz de algumas telas renascentistas, entre elas uma de Leonardo Da Vinci. Nelas, Madalena aparece com uma beleza sensual: seus longos cabelos acobreados lhe cobrindo o corpo desnudo, enquanto sua expressão angélica comtempla o horizonte em busca de respostas. A partir do século XVI, a figura da prostituta arrependida passou a ser utilizada como exemplo para mulheres acusadas de comportamento leviano e subversivo, que deveriam buscar ajuda espiritual na palavra de Deus. Atualmente, Maria Madalena ressurge aos nossos olhos humanizada e próxima do mais singelos dos mortais, transformada em ícone por muitas mulheres que lutam por igualdade de direitos, dentro de uma sociedade que ainda encontra suas raízes misóginas no período onde muitas madalenas tinham sua voz silenciada.

Renato Drummond Tapioca Neto

Graduado em História – UESC

Mestre em Memória: Linguagem e Sociedade – UESB

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