Por: Renato Drummond Tapioca Neto
Em 14 de junho de 1789, a vida transcorria de forma normal em Versalhes: todos os nobres que habitavam aquele imenso palácio, sede da monarquia francesa, se entregavam às suas costumeiras atividades, despreocupados como sempre com o que acontecia em Paris ou com os seus habitantes. O dia para os criados, por sua vez, começava às 6 da manhã. Eles deveriam se arrumar e tomar a primeira refeição em pouco espaço de tempo. Depois disso, cada um se encarregava dos seus deveres, da mesma forma que em dias anteriores. O cerimonial tinha que ser mantido! Naquele dia, contudo, Maria Antonieta passou a noite no seu palacete, o Petit Trianon. Caprichosa como sempre, a rainha logo cedo solicitou a presença da sua criada da biblioteca, Sidonie Laborde, para que esta, com sua voz de efeitos calmantes, lhe fizesse a leitura de algum livro. Como Antonieta adorava o teatro, tendo sido a estrela de pequenas peças dramatizadas no palco do Trianon, ordenou à Sidonie que lhe trouxesse Félicie, de Marivaux. Mal sabiam as duas mulheres que aquela seria a última manhã tranquila de suas vidas.

Maria Antonieta (Diane Kruger) e sua “leitora”, Sidonie Laborde (Lea Seydoux).
O enredo pode parecer um pouco clichê, mas é exatamente dessa forma que se inicia o polêmico filme Les adieux a La reine (2012) que é baseado no romance homônimo escrito pela historiadora e autora de muitos livros sobre a Revolução Francesa, Chantal Thomas, além de estrelado por atrizes como Diane Kruger e Lea Seydoux. Sempre quando descubro que determinado filme foi produzido com base em uma obra de ficção, me recuso a assisti-lo até que tenha lido o livro. Com Les adieux não foi diferente! A trama, muito envolvente, é narrada pela “leitora” de Maria Antonieta, Sidonie Laborde, uma personagem concebida pela romancista e que se envolve nos maiores segredos da corte. Muito devotada à soberana, Sidonie a obedece como um soldado ao seu comandante, disposta a tudo, inclusive a deixar Paris no meio da recém-eclodida revolução, para salvar a vida de uma das mulheres mais odiadas do país: Gabrielle de Polignac, a favorita da rainha. Após a leitura, resolvi assistir ao filme que já por dois anos vinha resistindo. É um exercício muito interessante comparar sua imaginação com a adaptação dos cinemas. Nesse caso, o resultado me deixou bastante animado, uma vez que o diretor/roteirista Benoît Jacquot seguiu com bastante precisão aos diálogos contidos no romance.
Algumas cenas, inclusive, foram recriadas com tamanha perfeição que em várias ocasiões me surpreendi com a representação das mesmas. Poucos filmes de época lançados nestes últimos anos se preocuparam em trazer para o telespectador uma produção baseada em fatos históricos. Les adieux a La reine se inclui perfeitamente nesse rol. O clima de tensão que rondava Versalhes às vésperas da tomada da Bastilha é um ótimo exemplo disso, assim como os cenários, figurinos e personagens. O melhor de todos os aspectos, contudo, foi à língua usada na gravação: em vez de assistirmos a atores ingleses, falando em inglês num filme que narra sobre a história da França, temos atores franceses, falando em francês e dando um verdadeiro show de dramatização. Um dos meus grandes desapontamentos na maioria dos filmes sobre a vida de Maria Antonieta é justamente a predominância de caracteres norte-americanos na trama. L’Autrichienne (1990), porém, ultrapassou essa regra, sendo, portanto, uma das obras mais interessantes já feitas nesse sentido.

Sidonie ao lado de sua amiga, Honirine (Julie-Marie Parmentier) espiam a vida da nobreza palaciana.
Les adieux a La reine, por sua vez, conseguiu me reanimar, pois trouxe para o público um filme sobre a história da França feito por franceses. A escolha do elenco principal também não foge à recíproca. Na pele da rainha, temos a bela Diane Kruger, famosa por filmes como Tróia (2004) e A lenda do tesouro perdido (2004). A escolha para o papel foi muito bem feita porque Diane é de origem alemã e passou parte de sua vida em Paris. Sua fala, não obstante, possui um pouco de sotaque alemão do qual Antonieta jamais conseguiu se livrar totalmente. Fisicamente Diane também possui traços muito semelhantes aos da personagem, como a pele leitosa, os olhos azuis, porte esguio e, sem exagero, o mesmo tipo de nariz levemente aquilo que era uma das marcas da soberana. Suas expressões, variando da alegria à tristeza, do humor à apreensão e impaciência correspondem perfeitamente com as atitudes observadas em Maria Antonieta por seus contemporâneos. No quesito atuação, ela só perde para aquela que pode ser considerada a atriz principal do longa-metragem: Lea Seydoux, que ultimamente vem se destacando em outros filmes como Blue is the warmest colour (2014) e Beauty and the Beast (2014).
Nascida em Paris, Lea faz o perfeito papel da criada extremamente devotada à sua rainha austríaca, preferindo ver com indulgência os caprichos dela em vez de reconhecer seus erros. Sidonie, personagem de Seydoux, percorre pelos cantos mais obscuros de Versalhes, desde o alojamento dos criados, percorrendo pelos corredores imundos do palácio, parando em alguns instantes nos apartamentos de nobres como Monsieur e Madame de la Tur do Pin (interpretados por Jacques Boudet e Martine Chevallier, respectivamente) para passar algum tempo com sua amiga Honorine (Julie-Marie Parmentier), até que finalmente chega ao lugar onde mais gostaria de estar, os aposentos de Maria Antonieta. Servir à rainha da França era o tipo de trabalho que Sidonie pediu a Deus; ler para ela, compartilhar de sua vida íntima era para a criada da biblioteca (que via a si mesmo como a leitora oficial de Sua Majestade) um prazer indescritível. Quando estava longe, vinha à solidão, acompanhada da esperança de que o dia seguinte chegasse logo e com ele a tarefa de ler para a sua real senhora. Infortunadamente, a partir da manhã do dia 15 de julho de 1789 Sidonie Laborde nunca mais entreteria a rainha com livros, embora continuasse a partilhar de seus segredos.

Maria Antonieta e sua amiga Gabrielle de Polignac (Virginie Ledoyen).
Acredito que um dos aspectos que mais tenha chocado o público que assistiu Les adieux a La reine foi à revelação que Maria Antonieta faz à sua “leitora” de que se sentia fisicamente atraída por Gabrielle de Polignac, interpretada por Virginie Ledoyen. Confrontados com esse fato, muitos telespectadores podem ter julgado como um exagero cometido pelo diretor para criar polêmica em torno da vida de uma personalidade histórica. Entretanto, Antonia Fraser, autora de uma das biografias mais completas sobre a última rainha da França, afirma que Antonieta de fato amava Gabrielle, não de uma forma sexual, mas emocional. Sua necessidade em estar sempre ao lado da amiga foi usada pelos revolucionários como forte argumento a favor da homossexualidade da soberana. Les adieux, por sua vez, ressalta esse aspecto ao apresentar uma personagem que está envelhecendo e ao mesmo tempo sente a necessidade de estar cercada de jovialidade. Nesse caso, quem melhor do que a vivaz Gabrielle de Polignac para fazer com que Maria Antonieta esquecesse de que já tinha 34 anos e, sendo considerada uma mulher da meia-idade para os padrões do período?
O amor por Gabrielle fez com que Antonieta gastasse quantias enormes para elevar sua família ao mais alto posto na escala social, em detrimento da miséria que acometia aos súditos de Luís XVI. Chantal Thomas soube como ninguém captar esse aspecto e trazê-lo para as páginas de seu romance, mostrando o clã dos Polignac como aproveitadores da boa relação que Gabrielle mantinha com a realeza. Isso também ficou evidente no filme através da fala de personagens como Honorine e do historiógrafo da corte, Nicolas Moreau (vivido por Michel Robin), amigo de Sidonie. Recluído em seu gabinete de trabalho, Nicolas informa à jovem sobre toda a gravidade da situação, despertando-a de seu conto de fadas. Uma vez tendo mergulhado na vida real, Sidonie passou a entender o motivo de tantos cortesãos abandonarem o palácio como verdadeiros ratos que fogem de um navio antes do naufrágio; com tristeza ela constatou que sua rainha não tinha mais ninguém, que estava isolada, batendo em portas fechadas de corredores buscando algum conforto amigo. Até mesmo Gabrielle de Polignac, a “melhor amiga” da soberana, lhe virou as costas quando o perigo se avizinhou.

Da esquerda para a direita: Madame Bertin (Anne Benoît), Sidonie e Madame Campan (Noémie Lvovsky).
Todavia, dificilmente uma pessoa como Maria Antonieta se encontraria sozinha no sentido literal da palavra. Nesse aspecto, me refiro a duas personagens secundárias que deram um sabor a mais ao filme: a primeira dama do quarto de dormir da rainha, Madame Campan (Noémie Lvovsky) e a modista Madame Bertin (Anne Benoît). Sobre esta última, fiquei feliz ao perceber que o diretor Benoît Jacquot deu muito mais destaque a ela do que Chantal Thomas havia feito no seu livro. Rose Bertin teve um papel bastante importante na vida da rainha, compondo com ela o famoso “ministério da moda”, responsável por criar todas aquelas peças de vestuário que se tornaram características da imagem de Maria Antonieta. Quanto à Jeanne-Louise-Henriette Campan, Noémie Lvovsky conseguiu trazer para as telas toda a representação de um mundo em decadência através de sua personagem. As coisas poderiam ir mal, mas Madame Campan estava ali para cumprir o seu dever e garantir que os outros assim o fizessem, chegando a ser quase patética em alguns momentos. Sidonie que o diga!
Com efeito, resta a pergunta: onde entra Luís XVI nessa história? Ao final das contas, o rei, vivido magistralmente por Xavier Beauvois, era a única pessoa que Maria Antonieta tinha emocionalmente ao seu lado. O marido que por tanto tempo ela negligenciou e que agora era seu companheiro no infortúnio. Quantos dissabores os dois ainda partilhariam! Mas para Sidonie Laborde e nós, telespectadores, a trama infelizmente acaba aqui. Para aqueles mais interessados, o romance ainda contém mais algumas passagens sobre a vida da “leitora” da rainha que não caberiam numa resenha como essa. Basta que saibam que, apesar de tudo, a personagem inventada por Chantal Thomas manteve intacto seu amor e fidelidade pela soberana, apesar do destino (e Gabrielle de Polignac) as ter separado. Les adieux a La reine pode ter sido um filme pouco compreendido pelos admiradores dos personagens presentes nessa trama, especialmente por enfatizar um lado da história que é intencionalmente negligenciado por muitos daqueles que insistem em acreditar no mito da “rainha mártir”. Ao dar lugar aos erros de Maria Antonieta, cometidos pela sua condição humana de ser, Les adieux aproxima mais a personagem da vida real, mostrando-a como alguém não tão diferente de muitos de nós.
Confira abaixo o trailer de Les adieux a La reine (2012):
Estarei atento ao livro e ao filme quando chegarem a Portugal.
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O filme é de 2012, João, de modo que já está disponível em vários formatos. A tradução do livro leva o título de “O adeus à rainha”. No Brasil, foi publicado pela editora Girafa 😉
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Tenho esse filme baixado, depois de muitas tentativas. Um belo filme, com excelentes atrizes, muito bom. Agora pretendo comprar o livro. Cesar
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