De mãe para filha: a relação entre Ana Bolena e Elizabeth I, as rainhas que mudaram a história inglesa!

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

Quando a espada do carrasco francês seccionou a cabeça de Ana Bolena na Torre de Londres, na manhã de 19 de maio de 1536, ela deixava aos cuidados das damas da corte uma filha de três anos incompletos. Batizada de Elizabeth, em homenagem tanto à sua avó paterna, a rainha Elizabeth de York, quando à sua avó materna, Lady Elizabeth Howard, a criança havia sido declarada bastarda após a anulação do casamento de seus pais, dois dias antes da decapitação de sua mãe. Mal o corpo de sua segunda esposa esfriava sob o chão da capela de St. Peter Ad Vincula, o rei Henrique VIII se casava pela terceira vez no final daquele mesmo mês. A Inglaterra tinha então uma nova rainha consorte: Lady Jane Seymour de Wolf Hall. No imponente painel dinástico que o monarca comissionou anos mais tarde, podemos vê-lo sentado ao centro, tendo seu filho e herdeiro, Edward, à esquerda, enquanto a rainha Jane (já falecida quando o retrato foi pintado) à direita. As duas filhas mais velhas do rei estão de pé, emoldurando a cena. Lady Elizabeth usa um colar, cujo pingente possivelmente apresenta as iniciais de sua mãe. Alguns historiadores da arte interpretam esse detalhe como uma das formas que a futura soberana da Inglaterra encontraria para homenageá-la.

“A Família do Rei Henrique VIII”. Escola Inglesa, segundo estudo de Hans Holbein, O Jovem. Lady Elizabeth se encontra de pé, à direita, usando um colar com um pingente em forma de “A”. (Coleção do Palácio de Hampton Court).

De fato, Elizabeth teria poucas memórias de Ana Bolena (para não dizer nenhuma). Não apenas por ainda se encontrar na primeira infância quando ela morreu, como também por ter convivido pouco com ela durante sua breve existência em comum. Tudo o que ela sabia a respeito da mãe viera através dos lábios de cortesãos mais velhos, que a conheceram. Nos primeiros anos de vida, os príncipes e princesas da Inglaterra geralmente eram enviados para casas de campo, onde eram assistidos por um séquito de amas e pajens. Apenas em ocasiões pontuais seus pais lhe faziam alguma visita, para acompanhar seu desenvolvimento. Dessa forma, as crianças da realeza permaneciam mais apegadas às suas babás do que a qualquer outro indivíduo. Isso não quer dizer, porém, que as rainhas não se preocupavam com sua prole. Catarina de Aragão é um bom exemplo disso! Ela encomendou ao seu conterrâneo, o humanista Juan Luís Vives, o primeiro tratado sobre educação feminina, destinado a preparar a princesa Mary para seu futuro como possível rainha reinante. Até hoje também se encontram preservadas algumas contas do Erário Real, relativas à compra de tecidos nas cores verde e branco, que Ana Bolena encomendou para a confecção de vestidos para sua filha. A pequena crescia distante, na segurança da mansão campestre de Hatfield House.

Antes de entregar sua vida nas mãos do espadachim francês, Ana Bolena proferiu um breve discurso, em tom moderado, exaltando as virtudes do rei e aceitando o veredito do júri, que a condenou culpada de crimes como traição, adultério e incesto. As palavras, muito bem escolhidas, eram a única forma que a vítima tinha para proteger seus familiares da cólera do soberano. Ao morrer, Ana certamente estava bastante preocupada com o destino de sua filha. Num dos trechos do discurso, ela disse: “se alguma pessoa intervir em minha causa, eu peço a ela que julguem o melhor”. De acordo com Tracy Borman, autora de Anne Boleyn & Elizabeth I (2023), esse apelo se destinava à pequena princesa, para que no futuro ela reabilitasse sua memória. Após sua morte, Ana Bolena se tornou uma espécie de não-ser. A maior parte dos registros que remontavam ao seu período como rainha consorte foram destruídos, tais como brasões entalhados na madeira dos Palácios Reais, monogramas, retratos de Estado e documentos oficiais. Uma geração depois, ela ressurgiu como mãe da monarca reinante. Embora já tenha sido dito que Elizabeth I pouco fez pela causa materna, existem algumas informações no inventário dos seus objetos que ligam diretamente o nome da monarca à sua genitora.

Falcão coroado, esculpido em madeira de carvalho na década de 1536, que possivelmente ornamentava o quarto de Ana Bolena no Palácio de Hampton Court.

Durante seus 44 anos de reinado, a rainha Elizabeth constantemente ressaltou que era filha do rei Henrique VIII, de quem provinha seu direito para governar. Em 1543, o rei havia passado no Parlamento o novo Ato de Sucessão, reconhecendo a paternidade da filha e a colocando novamente como herdeira do trono. De fato, a rainha se esforçou bastante para dar continuidade ao estilo de monarquia que vinha sendo desenvolvida por seu pai. Nas palavras de Giovanni Michiel, embaixador veneziano na Inglaterra durante o reinado de Mary I, Elizabeth “se orgulha de seu pai e se vangloria dele”. Levando em consideração que seu direito à coroa era contestado pela maior parte dos reinos católicos europeus, a estratégia da soberana de enfatizar suas conexões paternas, em detrimento de sua mãe, era uma forma de garantir sua posição. Ao contrário da irmã, Elizabeth preferiu não mexer na questão da anulação do casamento de seus pais e nem mesmo providenciou um sepulcro digno para Ana Bolena. Tampouco cumpriu o último desejo de Mary I: de ser sepultada ao lado de Catarina de Aragão. Elizabeth não julgou uma boa ideia a conjunção das rainhas católicas. No final, foi ela própria quem acabou compartilhando um túmulo imponente com Mary, na Abadia de Westminster.

Caso o pesquisador procure por referências a Ana Bolena durante o reinado de Elizabeth I, certamente ficará frustrado. Dizem que a monarca só falou o nome da mãe publicamente em duas ocasiões distintas. Contudo, existem outras evidências que permitem esmiuçar melhor a relação entre ambas. No dia em que fora coroada, por exemplo, em 15 de janeiro de 1559, havia um painel alegórico durante o trajeto até a Abadia, contendo sua árvore genealógica. Nele, se podia ver uma representação de Ana Bolena. A inclusão da mãe da nova rainha na ocasião foi muito simbólica, uma vez que a cerimônia de coroação é o momento mais importante no reinado de qualquer monarca. Durante esse período, o famoso martirologista John Foxe incluiu o nome da segunda esposa do rei Henrique VIII no seu Livro dos Mártires (1563), não apenas para ressaltar a dedicação de Ana à causa protestante, como também para agradar sua filha. Além disso, na época houve uma enorme demanda por retratos póstumos de Ana Bolena, encomendados por cortesãos como uma demonstração de lealdade para com a soberana reinante. Dessas telas, as mais famosas são as que hoje se encontram em exposição no Castelo de Hever (lar ancestral da família Bolena) e na Galeria Nacional de Retratos, em Londres (NPG).

Retratos de Ana Bolena, produzidos durante o reinado de Elizabeth I. Todas as telas apresentam os mesmos detalhes, variando apenas a técnica da pintura. No período elisabetano, era um sinal de lealdade para com a rainha ter um retrato de sua mãe decorando o corredor de alguma mansão.

Segundo as pesquisas desenvolvidas por Borman para seu livro, que explora justamente as conexões entre mãe e filha, Elizabeth escolheu alguns objetos do espólio do rei Henrique VIII, falecido em 1547, que tinham ligação direta com Ana Bolena. Um bom exemplo, para início de conversa, consiste num conjunto de tapeçarias “entregues a Lady Elizabeth (…) para os móveis de sua casa”. Poucos devem saber, mas as tapeçarias podiam valer muito mais do que quadros pintados, pois sua confecção demandava anos de esforço de vários artesãos. As que Elizabeth herdou retratavam cenas da obra A Cidade das Damas, da notória escritora Christine de Pizan. Ana Bolena, cuja juventude fora passada nas cortes renascentistas de Bruxelas e de Paris (onde as ideias da autora eram amplamente debatidas), provavelmente possuía uma cópia de sua obra (traduzida para o inglês em 1521). As teorias contidas no trabalho de Christine, que versavam sobre o espírito de liderança das mulheres e sobre a necessidade de sua instrução, foram uma constante fonte de inspiração para Elizabeth, assim como haviam sido para sua mãe, durante o tempo em que ela permaneceu no estrangeiro. A princesa herdou do pai as seis grandes tapeçarias, medindo oito por cinco metros cada uma. Penduradas juntas, elas exigiriam um salão com perímetro de aproximadamente cinquenta metros!

Com efeito, um item que merece igual atenção é um valioso anel, outrora propriedade da soberana, hoje em exposição na coleção da Chequers House, residência do Primeiro-Ministro britânico. A joia é confeccionada com aro de madrepérola e pedras preciosas incrustadas numa moldura de ouro. Sobre o topo, é possível ver a letra “E” em diamantes e um pequeno fecho de rubis. Ao abri-lo, o objeto revela dois retratos em alto relevo, cujas faces se encontram: uma da própria rainha e outra de uma mulher usando um capelo no estilo francês (em meia-lua), rosto oval e cabelo dividido ao meio. Suas feições apresentam grande semelhança com os retratos de Ana Bolena, pintados durante o reinado de sua filha. Apesar da soberana ser conhecida pelo seu amor por joias bem elaboradas e bastante extravagantes para o gosto moderno, esse anel relativamente simples permaneceu consigo até o dia de sua morte, em 24 de março de 1603. Para alguns, a peça é um símbolo do quanto a rainha manteve reverência em privado pela memória de sua mãe. Um fato que talvez possa corroborar essa hipótese é a proximidade dela com seus primos, Henry Carey, I Barão Hunsdon, e Catherine Knollys (filhos de sua tia, Maria Bolena). Elizabeth concedeu à sua família materna cargos de confiança na corte, além de títulos e propriedades.

Anel pertencente a Elizabeth I, em cujo fecho se esconde a efígie da rainha e a de sua mãe.

Certamente, a “boa rainha Bess” (como também ficou conhecida) herdou algumas joias de sua mãe, entre elas as pérolas do quase mítico colar com o pingente em forma de “B”, de Bolena. A escritora Alison Weir especula (sem provas) que essas pérolas acabaram parando na Coroa Imperial de Estado dos atuais monarcas do Reino Unido, uma vez que algumas das joias da primeira Elizabeth podem ter sido utilizadas na sua confecção, embora não se possa afirmar com certeza. Sabe-se, por outro lado, que a soberana deu de presente para seu médico pessoal, Richard Master, uma taça que havia pertencido à sua mãe. Trata-se de um belo ornamento, feito com ouro e prata, em cuja tampa se assenta o falcão coroado, um dos símbolos de Ana Bolena, que a própria Elizabeth viria a fazer uso durante o seu reinado. A segunda esposa do rei Henrique VIII a encomendou no ano de 1535 e, após sua morte no ano seguinte, a taça passou para as mãos da pequena princesa Elizabeth, juntamente com outros bens maternos. Mais tarde, Richard Master a doou para a Igreja da Paróquia de São João Batista, em Cirencester, onde ela se encontra em exposição até os dias de hoje.

Outro item valioso que a rainha Elizabeth I herdou de sua mãe foi o magnífico leito com dossel, esculpido em madeira de lei, no qual Ana lhe dera à luz, no dia 7 de setembro de 1533. A cama fora descrita como “uma das mais ricas e triunfantes” jamais vistas. Ela fazia parte do espólio do duque de Alençon, capturado por tropas inglesas em Verneuil, em 1424, durante a chamada “Guerra dos Cem Anos”. Henrique VIII a deu de presente para sua esposa, certamente como um sinal de que a criança que a rainha carregava no ventre havia sido concebida quando os dois se encontravam na cidade portuária de Calais, ou seja, em solo francês. Tempos depois, quando Elizabeth recebia os cortejos do jovem François de Alençon, duque de Anjou, ela brincou com o jovem pretendente de que talvez ele fosse capaz de reconhecer o móvel, ricamente entalhado por artesãos de seu país. O nascimento de Elizabeth foi uma verdadeira frustração para seu pai, que aguardava avidamente por um herdeiro do sexo masculino. A criança, por sua vez, era a imagem viva de Henrique, com seus cabelos ruivos e pele de alabastro. Exceto pelos olhos, negros e lindos (os olhos Bolena), que ela puxara de sua mãe, assim como a cabeça em formato oval e as maçãs do rosto salientes.

Anotação feita por Ana Bolena em um dos seus livros de horas, no qual se lê a inscrição latina: “Le Temps Viedra / Je Anne Boleyn”. Uma esfera armilar foi desenhada pela antiga proprietária.

Elizabeth é frequentemente descrita como herdeira da fé de Ana Bolena. Apesar de essa descrição não ser exatamente correta, ambas concederam patrocínio a escritores protestantes e apreciavam literatura humanista. Prova disso é que a princesa, depois rainha, recebeu uma grande quantidade de livros de horas que haviam pertencido à sua mãe. O mais antigo deles foi feito em meados do século XV e é ricamente pintado com iluminuras representando cenas da vida de Cristo e do Juízo Final. No rodapé de uma das páginas, a antiga proprietária escreveu a frase “Le Temps Viendra / Je Anne Boleyn” (Os Tempos Virão / Eu Ana Bolena). Entre as palavras “Je” e “Anne”, ela fez o desenho de uma esfera armilar, que simboliza conhecimento. O interessante é que tanto Ana quanto sua filha fizeram uso dessa iconografia para construir sua imagem pública. Assim sendo, podemos concluir que muitos são os indícios que ligam Elizabeth à sua mãe, a despeito do que já foi escrito em contrário. A rainha faleceu cercada por seus parentes Bolena e, durante seu cortejo fúnebre, o brasão de armas da segunda esposa do rei Henrique VIII foi orgulhosamente exibido, assim como na sua coroação, ocorrida 44 anos antes. No seu imponente túmulo na Abadia de Westminster, o visitante certamente irá notar a presença do falcão coroado de Ana, entalhado em bronze dourado. No final de sua vida, Elizabeth honrou o pedido da mãe de pleitear por sua causa e, como era de se imaginar, ela “julgou a melhor”.

Referências Bibliográficas:

BORMAN, Tracy. Anne Boleyn & Elizabeth I: the mother and daughter who changed History. London, UK: Hodder & Stoughton, 2023.

GRISTWOOD, Sarah. Game of Queens: the women who made sixteenth-century Europe. Nova York: Basic Books, 2016.

HILTON, Lisa. Elizabeth I: uma biografia. Tradução de Paulo Geiger. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.

IVES, Eric W. The life and death of Anne Boleyn: ‘the most happy’. – United Kingdom: Blackwell Publishing, 2010.

NORTON, Elizabeth. The Anne Boleyn Papers. UK: Amberley, 2013.

WEIR, Alison. The lady in the tower: the fall of Anne Boleyn. – New York: Ballantine Books, 2010.

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