Na cama com a rainha Vitória: olhando através do buraco da fechadura da alcova real!

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

Às 6 da manhã do dia 20 de junho de 1817, Alexandrina Vitória de Kent foi despertada por sua mãe, a duquesa-viúva Victoire de Saxe-Coburgo, no quarto que ambas ocupavam no Palácio de Kensington. O arcebispo de Cantebury e o Lorde Conyngham lhe aguardavam no andar térreo. De mãos dadas com a duquesa, ela desceu as escadas em direção aos visitantes, que chegaram em hora tão inapropriada. Afinal, a jovem ainda estava envolta nos seus robes de dormir! Porém, eles traziam consigo péssimas e boas notícias: o rei Wiliam IV, tio de Vitória, dera seu último suspiro às 01h48 daquela madrugada. Isso fazia da jovem soberana reinante! Dormira princesa no dia 19 e acordara rainha na manhã seguinte. Num gesto de independência recém-adquirida com a elevação de status, a nova monarca pediu à baronesa Lehzen, sua governanta, para que sua cama fosse retirada dos aposentos da mãe e levada para outra ala do Palácio, que ela pretendia ocupar sozinha. A partir de então, Vitória, que pouca ou nenhuma privacidade tivera na infância, exigia ter uma espaço só para si. Mas, principalmente, uma cama em que ela pudesse dormir e acordar sozinha, até o dia em que se casaria!

Cama de viagens da princesa Alexandrina Vitória de Kent, em exposição no Castelo de Windsor (Fotografia de Sue Hillman).

A cama, de design simples, possui duas gavetas laterais, onde era possível guardar colchões dobráveis e mantas (Fotografia de Henry Aldridge and Son).

Nas antigas monarquias europeias, os quartos reais eram locais públicos. Suas câmaras e antecâmaras eram visitadas pela nobreza, que considerava um privilégio assistir ao monarca acordar, fazer seu asseio matinal e se vestir. Também estavam presentes quando o rei e a rainha iam se deitar para dormir. Após a Revolução Francesa, com a ascensão dos valores burgueses, uma noção de privacidade foi estabelecida no protocolo real. Vistos agora como intrusos, os cortesãos e funcionários do Palácio deveriam olhar pelo buraco da fechadura, para conseguir ter um vislumbre da vida íntima dos soberanos. É o que nos propomos a fazer nessa matéria, ao convidar o leitor e a leitora, como verdadeiros voyeurs, a observar a intimidade da rainha Vitória através de uma história contada nos quartos e nas camas que lhe pertenceram, dentro das diferentes residências que a rainha ocupou ao longo de sua vida. Seja o leito em que despertou como rainha no dia 20 de junho; ou na sua cama de casada, onde teve seus filhos com o príncipe Albert; ou até mesmo na belíssima estrutura com dossel onde seu corpo foi colocado para repousar após sua morte, os quartos ocupados pela rainha Vitória tiveram grande importância na sua vida.

Anos mais tarde, Vitória descreveria os aposentos que ocupava com sua mãe em Kensington como “horrivelmente escuros e sinistros”, infestados por insetos e roedores. Ela e sua mãe dormiam em camas separadas no antigo “quarto do rei”. A jovem princesa dormia em uma bela cama decorada de acordo com estilo parisiense. Ela havia sido um presente de seu tio, o rei William IV, envido diretamente do castelo de Windsor. Infelizmente, a localização do móvel se perdeu no acervo da coleção real. Mas foi nele que Vitória foi despertada na manhã do dia 20, quando soube que era rainha. Segue a descrição do momento, extraída do próprio diário da monarca:

Às seis horas fui acordada por mamãe, que me disse que o arcebispo de Canterbury e o Lorde Conyngham estavam lá e queriam me ver. Saí da cama e fui à minha sala de estar contígua (vestida de camisola) – sozinha – e os encontrei. Lorde Conyngham, então, colocou-me a par de que meu pobre tio, o rei, não estava mais entre nós, tendo expirado aos 12 minutos para as 2 horas daquela madrugada e que, consequentemente, eu era rainha (apud SHEARMAN, 1987, p. 21).

Depois desse dia, poucos seriam aqueles que teriam autorização para ver a rainha “vestida de camisola”: suas criadas do quarto de dormir, sua camareira-mor e, notavelmente, seu marido, o príncipe Albert, durante os quase 22 anos em que permaneceram casados, até a morte dele, em 1861.

Leito nupcial da rainha Vitória, em exposição no Palácio de Kensington. Um busto do príncipe Albert aparece ao lado da cabeceira. (Acervo: Palácios Históricos Reais).

A cama de casal, luxuosamente decorada, havia sido originalmente encomendada pelo rei George IV para seus hóspedes. Hoje, ela se encontra do mesmo quarto onde a rainha Vitória nasceu, em 1819 (Acervo: Palácios Históricos Reais).

Embora esse leito aparentemente tenha desaparecido, outro que remonta à mesma época foi adquirido num leilão pelos Palácios Históricos Reais. Trata-se da “cama de viagens” da princesa Vitória, utilizada por ela quando viajava pelo reino com sua mãe. Disposta a fazer com que sua filha fosse vista e reconhecida como herdeira do trono, a duquesa de Kent submetia Vitória a um extenso itinerário, durante o qual a jovem era exibida diante dos olhos públicos. Se por um lado a mãe submetia a filha a um programa educacional bastante espartano, conhecido como “sistema Kensington”, por outro ela queria que Vitória fosse assimilada pelos ingleses como sua conterrânea, a despeito da forte ascendência alemã. Durante esse programa de viagens, a jovem levava consigo uma casa desmontável, que dificilmente seria associada a uma futura rainha, não fosse pela menção que sua antiga proprietária faz nos seus diários da infância¹. A armação de madeira com tábuas possui duas gavetas nas laterais, onde colchões dobráveis e mantas poderiam ser transportadas. O objeto ficou por um tempo exposto na residência em Broadstairs (Kent), onde a princesa Vitória passava suas férias de verão, entre 1826 e 1836.

Só podemos imaginar o alívio da jovem rainha, no dia 20 de junho de 1837, ao ter seu próprio quarto. De Kensington, Vitória se mudou para o Palácio de Buckingham, tendo sido a primeira monarca a fazer de lá a sua residência oficial. Na nova morada, a soberana passou a dormir numa cama de casal luxuosamente decorada, que o rei George IV havia mandado fazer para seus hóspedes. Trata-se de seu leito nupcial, usado por ela e pelo príncipe Albert após sua lua-de-mel no Castelo de Windsor, seguida do seu casamento em 10 de fevereiro de 1840. Foi nele em que os 9 filhos da rainha com o príncipe foram concebidos e aonde ela deu à luz a quase todos. Embaixo do móvel, existe uma pequena placa de latão, identificando-o como propriedade da monarca durante muitos anos. Tamanho era o carinho de Vitória pela peça de mobília, que ela mantinha uma fotografia da cama em um pacote de lembranças pessoais. Quando foi desaconselhada por seu médico pessoal a não mais engravidar depois do parto da princesa Beatrice, em 1857, a soberana então reagiu: “quer dizer que não posso mais me divertir na cama”?”. Durante seus anos como viúva, o leito foi mantido sempre arrumado, como se o casal ainda o compartilhasse.

Aquarela de 1868, da autoria de William Corden, o Jovem, retratando a Sala Azul do Castelo de Windsor, onde o príncipe Albert faleceu em 14 de dezembro de 1861 (Acervo do Palácio de Kensington).

Fotografia do ambiente, feita no século XIX. pouco depois da morte do príncipe consorte.

O príncipe Albert, por sua vez, faleceu numa cama na Sala Azul, no Castelo de Windsor, em 14 de dezembro de 1861. Em deferência ao marido, a rainha manteria seu quarto intacto, exatamente conforme ele o havia deixado antes de sua morte. Uma aquarela, de autoria de William Corden (o Jovem), reproduz exatamente o ambiente conforme podia ser visto no século XIX, com suas tapeçarias vermelhas e móveis com estafado e cortinas nas cores azul real. Todos os dias, Vitória ordenava que uma muda de roupas do príncipe fosse estirada sobre sua cama e que uma bacia de água quente fosse colocada sobre o aparador, como se esperasse por ele para se barbear e depois se vestir. Esse costume perduraria pelos próximos quarenta nos da vida da monarca, que mantinha durante todo esse tempo retratos e objetos pessoais do marido, como um molde de sua mão, ao seu lado na cama. Quanto ao seu leito nupcial, ele acabou sendo usado por algumas de suas netas e filhas, quando também entravam em trabalho de parto. Hoje, o leito nupcial da rainha Vitória foi levado para o mesmo quarto em que ela nasceu, no Palácio de Kensington, em 1819.

A última das camas da rainha Vitória em que vamos nos debruçar é aquela em que seu corpo de 82 anos foi colocado para descansar, após sua morte em 22 de janeiro de 1901. Até hoje, o móvel permanece no seu quarto em Osborne House, na Ilha de Wight. A propriedade fora construída pelo príncipe Albert e pela soberana como uma espécie de retiro de férias para a família real. Em 20 de janeiro de 1901, o Dr. Reid, médico pessoal da monarca, instalou uma maca no quarto, para poder tratar melhor da paciente. Vitória foi diagnosticada com uma “febre cerebral”, já tendo desenvolvido com o passar dos anos osteoporose, prolapso uterino, obesidade mórbida, além de uma agravante miopia. Depois do óbito, o Dr. Reid e suas enfermeiras arrumaram o corpo da rainha em sua cama, com um retrato post mortem do príncipe Albert, que pode ser visto na cabeceira até hoje. Folhas de palmeira imperial enfeitavam o leito da soberana do Reino Unido e Imperatriz da Índia, coberta pelos seus brancos véus de noiva. Atualmente, Osborne House funciona como um museu, decorado conforme a época em que a rainha Vitória morava lá, com sua coleção de arte e mobiliário original, incluindo a rica cama com dossel, sobre a qual fora adicionada uma placa póstuma, alertando que ali seu corpo moribundo repousara pela última vez.

Cama com dossel, onde o corpo da rainha Vitória foi colocado para repousar, em Osborne House, na Ilha de Wight.

Fotografia do corpo da monarca, arrumada sobre a cama, em 22 de janeiro de 1901. Acima, uma litogravura de seus familiares, presentes no momento de sua morte.

Notas:

¹ Em seu diário de 1832, Vitória menciona “minha própria caminha que sempre viaja comigo”.

Referências Bibliográficas:

ALEXANDRE, Philippe; DE L’AULNOIT, Béatriz. Victoria: a última rainha (1819 – 1901). Tradução de Fátima Gaspar e Carlos Gaspar. 2ª ed. Lisboa, Portugal: Bertrand, 2002.

AUBYN, Giles St. Queen Victoria: a portrait. Great Britain: Sceptre, 1992.

BAIRD, Julia. Vitória, a rainha: a biografia íntima da mulher que comandou um império. Tradução de Denise Bottman. Rio de Janeiro: Objetiva, 2018.

BROWN, Kate Victoria. The Secret Life of Queen Victoria You Didn’t Know. 2024 – Acesso em 27 de Agosto de 2024.

GILL, Gillian. We two: Victoria and Albert: rulers, partners, rivals. New York: Ballantine Books, 2009.

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