“Não posso mais me divertir na cama?”: sexo e sexualidade nos diários pessoais da rainha Vitória!

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

Numa tarde de 1943, quando as bombas da Segunda Guerra faziam a Europa tremer ao som de seu estrondo, a princesa Beatrice do Reino Unido, de 86 anos, praticava um crime de censura histórica: a filha mais jovem da rainha Vitória e do príncipe Albert jogava os diários originais que sua mãe mantivera desde 1832, um a um, no fogo da lareira. Nas últimas décadas, a princesa se dedicara a uma árdua tarefa, que consistia em editar os mais de 141 volumes que a soberana manteve até sua morte, em 1901. Qualquer passagem que a princesa considerasse comprometedora para a imagem da rainha, era omitida durante o processo de transcrição dos documentos. Já outros trechos, especialmente aqueles que diziam respeito a figuras conhecidas do século XIX, foram suavizados para disfarçar a opinião ácida da autora. Beatrice passou todo o conteúdo que ela julgou pertinente para cadernos de capa azul, incluindo alguns esboços feitos por Vitória, enquanto os originais eram destruídos. O rei George V e a rainha Mary de Teck, por sua vez, ficaram estarrecidos com o que a tia estava praticando em sua casa, em Sussex. Assim, episódios relativos à natureza do relacionamento da rainha Vitória com homens como o escocês John Brown e o indiano Abdul Karim foram completamente suprimidos. Felizmente, algumas pistas deixadas em arquivos nos ajudam a recompor este painel!

A princesa Beatrice do Reino Unido passou as últimas décadas de sua vida editando os diários de sua mãe. Tela de Arthur Stockdale Cope (Carisbrooke Castle Museum).

O século XIX, também conhecido como Era Vitoriana, em decorrência da relevância de uma das personalidades mais expressivas de seu tempo, tinha um enorme fascínio por sexualidade. Nunca se falara tanto sobre sexo, ao mesmo tempo em que se tentava camuflar o interesse sobre o assunto. A ciência médica sobre o corpo da mulher se aprofundava cada vez mais, no intuito de patologizar o comportamento de esposas, mães e prostitutas, ajudando assim a deliminar os papeis femininos e masculinos na sociedade. Não obstante, a Era Vitoriana também foi um período de grande avanço científico e tecnológico, com a Segunda Revolução Industrial, de ascensão da classe burguesa e formação dos novos impérios coloniais na África e na Ásia. Na frente dessa grande embarcação chamada pelos antigos romanos de britannia, estava a rainha Vitória como figura de proa. Sendo assim, não seria interessante para os herdeiros da monarca que fosse uma mulher interessada em sexo e prazer e que tivesse mantido ligações íntimas com outros homens além de seu marido. Nada disso colaborava para edificar a imagem de Victoria Regina, a grande soberana de seu tempo. Dessa forma, a Coroa soterrou o ser humano numa série de mitos, criados por bajuladores, monarquistas e pela própria rainha.

Não apenas os diários da rainha Vitória foram editados, eliminando quaisquer referências ao interesse da monarca por sexo, como também sua correspondência pessoal com o marido. Prova disso é um bilhete que a princesa Beatrice escreveu em 10 de maio de 1943 para seu sobrinho-neto, o rei George VI (pai de Elizabeth II), estarrecida com uma remessa de documentos dos Arquivos Reais do castelo de Windsor, dando conta dos desentendimentos dos primeiros anos do casamento de Vitória e Albert. Chamando o rei de “Bertie”, a princesa dizia:

Acabei de receber do bibliotecário um livro com breves cartas de meu pai para minha mãe, em inglês e alemão, mas de natureza tão íntima, tratando de briguinhas pessoais passageiras, que não consegui lidar com elas. Havia também anotações sobre os vários resguardos da minha mãe. Esses papeis não têm absolutamente nenhum valor histórico ou biográfico e, se fossem vistos, só poderiam ser mal interpretados em prejuízo da memória dela. Talvez você não saiba que fiquei como executora da biblioteca de minha mãe. Como tal, sinto que devo recorrer [a você] para me autorizar a destruir qualquer carta penosa. Sou sua única filha viva e sinto que tenho o dever sagrado de proteger sua memória. Como essas cartas chegaram a ser… mantidas nos arquivos, não consigo entender (apud BAIRD, 2018, p. 36).

Uma das cartas a que a princesa Beatrice se referia fora escrita por seu pai ao barão de Stockmar no final de 1841, dando conta de uma briga entre o casal. Na missiva, Albert dizia: “Vitória é precipitada demais para que eu consiga falar sobre minhas dificuldades. Ela não me ouve, mas fica furiosa e me cobre de críticas, acusando-me de suspeitas, falta de confiança, ambição, inveja etc. etc.” (apud BAIRD, 2018, p. 185). Essa passagem, por sua vez, ajuda a desconstruir a imagem de um casal completamente apaixonado, vivendo em perfeita harmonia conjugal. Algo que a própria Vitória ajudou a fundamentar, após a morte de seu marido, vinte anos depois. Assim, a figura da esposa cedeu lugar à de uma viúva eternamente de luto.

Com a autorização do rei, a princesa Beatrice queimou o volume contendo a carta original citada no parágrafo anterior, entre tantas outras. O bibliotecário do castelo de Windsor, Owen Morshead, havia se desculpado com o guardião dos Arquivos Reais, Sir Allan Lascelles, pelo ocorrido. Segundo seu depoimento, ele não sabia que a pasta de documentos entregue à princesa continha “material perigoso”: “sei que o príncipe e a rainha nem sempre concordavam durante os primeiros anos do casamento”, dizia. “Mas não suspeitei de qualquer revelação nesse volume específico” (apud BAIRD, 2018, p. 36). Porém, antes que Beatrice destruísse o conjunto de cartas, elas foram fotografadas e guardadas dentro de uma caixa branca nos Arquivos. Graças a essas imagens, hoje se sabe um pouco mais sobre os instintos sexuais da soberana durante seus anos iniciais de casada. Por meio dessa correspondência, nota-se como o príncipe consorte ditava o comportamento da esposa, a quem ele chamava repreensivamente de “menina”. Os documentos revelam cenas explosivas entre o casal, como a que Albert descreve num bilhete para a esposa: “Você perdeu novamente seu autocontrole desnecessariamente. Eu não disse uma palavra que pudesse lhe ferir e não iniciei a conversa, mas você me seguiu e continuou de sala em sala”. O príncipe Albert dizia aguentar as variações de comportamento da esposa com “paciência”, apesar de ter sido ferido por ela.

Um dos volumes do diário da ranha Vitória, editado e transcrito por sua filha, a princesa Beatrice. Acervo da Royal Collection Trust.

Conforme Arthur Benson e Lord Esher, editores da correspondência pessoal da rainha Vitória, a soberana podia ser “excessivamente categórica, pouco feminina ou ofensiva”. Todos os termos que os editores consideraram vulgares foram eliminados da obra final em quatro volumes, como as críticas dela aos franceses ou ao comportamento de algum dos filhos. Um exemplo do que acaba de ser dito é a descrição que a monarca faz de sua noite de núpcias, após o casamento celebrado em 10 de fevereiro de 1840:

NUNCA, NUNCA passei uma noite assim! MEU QUERIDO, QUERIDÍSSIMO Albert se sentou num tamborete a meu lado, e seu extremo amor e afeto me proporcionaram sentimentos de amor e felicidade celestial que antes eu jamais esperava sentir. Tomou-me em seus braços e nos beijamos vezes e mais vezes! Sua beleza, doçura e delicadeza – de fato, como poderei algum dia agradecer o suficiente por ter tal marido! Ah! Esse foi o dia mais feliz da minha vida! (apud BAIRD, 2018, p. 153).

A rainha estava em estado de êxtase. Descrevia a perda de sua virgindade com o marido em termos apaixonados, oferecendo pormenores do pós-sexo: “Nós dois fomos para a cama; deitar-se ao seu lado e em seus braços, e em seu querido peito, e ser chamada por nomes de ternura, que eu nunca ouvira falar sobre mim antes – era uma felicidade inacreditável! Ah!”. Logo, a soberana adotou uma postura mais provocante, incitando desejo no jovem marido, conforme ele próprio disse ao seu irmão, Ernest, duque de Saxe-Coburgo-Gota: “Vitória mudou muito e para melhor. […] Estava com uma roupa muito decotada, com um buquê de rosas entre os seios, que saltavam do vestido” (apud BAIRD, 2018, p. 155).

A rainha Vitória e o príncipe Albert tiveram uma vida sexual intensa. Tanto, que ela gerou dois filhos com apenas 21 meses de casamento. Outros sete se seguiram, até que a monarca desenvolvesse uma série de problemas em decorrência do parto da última das crianças, a princesa Beatrice, nascida em 17 de abril de 1857, quando sua mãe tinha quase 38 anos. Vitória detestava o período de gestação e o considerava uma verdadeira provação. Embora ela não desejasse ser mãe de muitos filhos, a vontade da esposa nunca era levada em consideração nesse quesito. Albert sempre demonstrou o desejo de ser pai de uma prole numerosa e, em 17 anos de casamento, engravidou sua esposa nove vezes. Depois do parto de Beatrice, o Médico Real alertou a soberana para a possibilidade de que uma próxima gestação poderia ser fatal, devido à sua delicada compleição física. “O quê? Não posso mais me divertir na cama?”, fora a indagação da monarca após o aviso. Nos anos seguintes, ela desenvolveu um prolapso uterino, que contribuiu para sua morte, aos 81 anos. Sempre que a rainha quisesse, ela poderia acionar um botão em seu quarto no Palácio de Buckingham, para impedir que qualquer criado entrasse no local durante seus momentos de diversão na cama com o marido!

A jovem rainha Vitória, por Franz Xaver Winterhalter.

Vitória descrevia Albert como “lindo e angelical”, enaltecendo seu porte físico, como a cintura delgada, os ombros largos, os olhos de um azul profundo, um nariz perfeito e os lábios finos, emoldurados por bigodes leves. As imagens do desejo se faziam presentes em cada uma das linhas dos diários da soberana, que escaparam ao crivo dos censores.  Numa passagem, ela descreve a seguinte cena: “Meu querido Albert veio hoje da chuva; ele parecia tão bonito em suas calças de caxemira branca, sem nada por baixo”. A soberana fazia alusão aos órgãos genitais do marido, semitransparentes por baixo da calça branca molhada. O príncipe, de seu lado, estimulava esses desejos sexuais da esposa, por meio da troca de presentes picantes, como uma tela encomendada pela ranha ao pintor Franz Xaver Winterhalter, que apresenta um grupo de mulheres com seios nus, se preparando para tomar banho. Albert retribuiu esse presente com uma estátua de mármore, representando a si como um guerreiro da antiguidade, com seus membros desnudos, cobertos apenas por um tecido diáfano. Vitória teria julgado o resultado da escultura tão sensual, que mandara trocá-la para um ambiente mais reservado. Após a morte do príncipe consorte, a soberana manteve os mantos negros de viúva pelo resto da vida.

Com efeito, esse é um dos elementos do fascínio que a soberana exerce no imaginário coletivo: de noiva imaculada, passando por esposa devotada até a construção do estereótipo da “viúva de Windsor”, como ela ficou conhecida nos últimos 40 anos de sua vida. Embora fizesse questão de adorar publicamente a imagem do marido morto em todos os lugares, ordenando a edificação de monumentos e a publicação de uma volumosa biografia em sua memória (escrita por Theodore Martin, que teve acesso aos diários originais da monarca), isso não quer dizer que a rainha Vitória se privou das companhias masculinas. Pelo contrário! Um exemplo disso é o relacionamento dela com John Brown, o cavalariço escocês do príncipe consorte, que acabou entrando para a equipe da viúva. A soberana o tinha em alta estima. Tanto, que a relação entre ambos passou a intrigar os membros da corte, que apelidaram Brown maliciosamente de “o garanhão da rainha”. Certa vez, o médico Sir James Reid notou uma cena muito curiosa entre os dois: num dia em 1883, ele abriu a porta dos aposentos da monarca no castelo de Windsor e se deparou com ela “andando um pouco” e flertando com seu criado escocês. Num dado momento, Brown ergueu seu kilt e disse: “Ah, achei que estava aqui”, ao que a soberana repetiu o gesto e, levantando as saias, disse: “Não, está aqui”.

A nota do Dr. Reid, entretanto, não oferece mais detalhes sobre o teor da brincadeira que ele presenciou. Sabe-se, porém, que ele era um homem muito íntegro, mantendo um diário bastante organizado e foi o executor das últimas vontades de Vitória. Entre elas, a soberana queria ser sepultada com a aliança de casamento da mãe de John Brown. Esse fato corroborou a hipótese, levantada por alguns, de que a monarca e o cavalariço teriam se casado secretamente. Se isso é verdade ou não, dificilmente saberemos. O relacionamento íntimo entre a rainha Vitória e John Brown foi comentado por Lord Derby em seu diário nos seguintes termos:

Longos passeios solitários a cavalo, em partes isoladas do parque; presença constante no quarto dela; mensagens privadas enviadas por ele a pessoas de nível; escape à observação enquanto ele conduz o cavalo dela ou guia seu pequeno coche; tudo mostra que ela escolheu esse homem para um tipo de amizade que é absurdo e impróprio à sua posição. As princesas – talvez irrefletidamente – brincam com o assunto e falam dele como “amante da rainha” (apud BAIRD, 2018, p. 313).

Vitória havia dado acesso íntimo a John Brown, causando discórdia entre a nobreza e a realeza. Com o passar dos anos, os príncipes viram com cada vez mais desprezo a figura do cavalariço, erguido de suas origens modestas ao posto de favorito real. Brown tinha liberdade até para prender um alfinete no xale da soberana e ralhar com ela publicamente. Depois da morte de Vitória, a princesa Beatrice fez questão de apagar quase completamente qualquer referência ao escocês nos diários da mãe. Sabemos das intimidades trocadas entre os dois apenas por meio dos relatos de terceiros, como o Dr. Reid e Lord Derby.

Vitória e seu cavalariço escocês, John Brown, o “garanhão da rainha”. Tela de Charles Burton.

Não obstante, o mesmo tipo de censura sofreu Abdul Karim, o indiano trazido de Agra para servir a rainha durante as comemorações do seu Jubileu de Ouro, em 1887. Na ocasião, Brown havia morrido há cinco anos e a posição de favorito havia ficado vacante desde então. Vitória logo se interessou pela figura do indiano alto, que estava presente no banquete oferecido no castelo de Windsor. Assim que descobriu que ele havia sido escriturário, ela o elevou à posição de professor particular de hindustani, ou munshi. Toda a família de Abdul havia sido presenteada com novos bens e propriedades na Inglaterra e na Índia. A corte, porém, não viu com bons olhos a ascensão dele, movida por seus preconceitos raciais. Conforme ressalta a escritora Carolly Erickson: “para um indiano de pele escura ser colocado quase no mesmo nível dos servos brancos da rainha era quase intolerável, para ele comer na mesma mesa com eles, para compartilhar em suas vidas diárias era visto como um ultraje” (apud BROWN, 2024). Fritz Ponsonby, secretário particular da soberana, descreveu uma cena na qual a soberana teve um ataque de cólera na presença de suas damas, acusando-as de ciúme do “pobre munshi”. Em contrapartida, a rainha tratou de cobrir seu professor com mais condecorações e medalhas, estendendo sua boa vontade à toda família dele.

Embora Abdul tenha certamente se aproveitado de sua relação próxima da rainha para reafirmar sua posição junto aos jornais da época, o fato é que o envolvimento dele com Vitória ressalta um lado pouco conhecido da monarca: mesmo sendo imperatriz de um vasto império colonial, ela não diminuía os sujeitos com base em sua cor e classe, ao contrário de seus filhos. Após a morte da soberana, em 22 de janeiro de 1901, toda a correspondência entre a monarca e o munshi fora destruída por ordem do rei Edward VII. Abdul e sua família foram banidos de volta para a Índia e suas propriedades na Inglaterra, confiscadas. A princesa Beatrice, durante o processo de edição das memórias de sua mãe, omitiu qualquer referência a Karim, ou sobre as lições de hindustani que Vitória recebia dele. Ao longo de seu reinado, a soberana escreveu aproximadamente 2500 palavras por dia, totalizando cerca de 60 milhões. Na opinião de Giles St. Aubyn: “tivesse sido ela uma romancista, suas obras completas ocupariam setecentos volumes, publicados ao ritmo de um por mês” (1992, p. 340). Mais de cem anos depois, a trineta da rainha, Elizabeth II, disponibilizou digitalmente os diários editados de sua antepassada, como testemunho maquiado da realidade que ela teria experimentado.

Referências Bibliográficas:

ALEXANDRE, Philippe; DE L’AULNOIT, Béatriz. Victoria: a última rainha (1819 – 1901). Tradução de Fátima Gaspar e Carlos Gaspar. 2ª ed. Lisboa, Portugal: Bertrand, 2002.

AUBYN, Giles St. Queen Victoria: a portrait. Great Britain: Sceptre, 1992.

BAIRD, Julia. Vitória, a rainha: a biografia íntima da mulher que comandou um império. Tradução de Denise Bottman. Rio de Janeiro: Objetiva, 2018.

BROWN, Kate Victoria. The Secret Life of Queen Victoria You Didn’t Know. 2024 – Acesso em 27 de Agosto de 2024.

GILL, Gillian. We two: Victoria and Albert: rulers, partners, rivals. New York: Ballantine Books, 2009.

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