A última carta de Ana Bolena: nova pesquisa sugere que o documento pode ter sido falsificado!

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

Em 2 de maio de 1536, Ana Bolena era levada para a Torre de Londres, onde aguardaria por julgamento. A rainha tomou a barcaça e navegou pelo Rio Tâmisa, após ser informada por um grupo de representantes do rei Henrique VIII de que estava sendo acusada de traição e adultério! Ao passar pelo portão dos traidores, a prisioneira foi conduzida até os aposentos que ela havia ocupado cerca de três anos antes, por ocasião da sua cerimônia de coroação como rainha consorte. Fortaleza medieval, a Torre servia tanto como residência real, quanto como lar do Tesouro da Coroa. Mas, também era onde indivíduos acusados por alta traição eram mantidos, aguardando por julgamento. Ana Bolena era vigiada constantemente por senhoras, que reportavam tudo acerca de seu comportamento errático para o guardião do prédio, Sir William Kingston. Seu humor variava rapidamente entre o pranto, o desespero e, em seguida, uma explosiva crise de risos. Teria sido em meio a esse turbilhão de emoções que a prisioneira supostamente escreveu uma carta ao monarca, implorando por misericórdia para si e para os outros homens que haviam sido presos juntamente com ela. Agora, uma pesquisadora acredita ter encontrado a pista necessária para desmistificar mais esse ponto mal costurado na história de Ana Bolena.

Endereçada “Para o rei, da dama na Torre”, a suposta carta escrita ou ditada pela segunda esposa do rei Henrique VIII fora encontrada algum tempo depois de sua morte, entre os documentos do secretário do soberano Thomas Cromwell. Também executado por alta traição, em 1540, Cromwell teria sido um dos artífices da queda de Ana Bolena, fornecendo indícios de que a rainha teria cometido adultério com cinco homens, incluindo locais e datas. A maioria dos historiadores, porém, já derrubou a maior parte dessas acusações, com base em evidências modernas. Eric Ives, por exemplo, ressaltou que Ana Bolena estava em outros locais e acompanhada de outras pessoas, nos dias e momentos em que ela supostamente estaria traindo seu marido, de acordo com as acusações do secretário do rei. Recentemente, foi apontado que Thomas Cromwell teria razões para se livrar de Ana, uma vez que ele a responsabilizava pela ruína de seu antigo empregador, o chanceler cardeal Wolsey. Não obstante, a soberana e o secretário entraram em desacordo quanto ao uso do dinheiro obtido com a dissolução dos monastérios católicos na Inglaterra. Enquanto a rainha queria que a verba fosse canalizada para as Universidades, Cromwell planejava gastar os recursos com os projetos expansionistas de Henrique. A partir de então, uma guerra de facções se instalou na corte, com consequências fatais para quem a perdesse.

Primeira página da carta de Ana Bolena, preservada nos arquivos da Cotton Library, no Museu Britânico.

Como Ana Bolena não conseguiu gerar um sucessor do sexo masculino para a Coroa, sua posição como rainha consorte estava vulnerável, oferecendo assim o momento perfeito para que Thomas Cromwell se livrasse dela. Aparentemente, Henrique VIII não ponderou a respeito de todas aquelas acusações fornecidas contra sua esposa pelo tocador de alaúde dela, Mark Smeaton, e assumiu o documento apresentado por seu secretário como verdade. Até hoje, não se sabe em quais circunstâncias Cromwell teria conseguido extrair aquelas alegações de Mark, se por meio de tortura ou através de outra forma de coerção. O fato é que todos os outros homens acusados de cometer adultério com a rainha, inclusive seu irmão, George Bolena, negaram veementemente aquelas afirmações. Enquanto eles aguardavam por julgamento na Torre de Londres, Ana teria preferido agir e então endereçou uma súplica ao monarca, no dia 6 de maio. Por séculos, o conteúdo da carta foi tomado como uma espécie de testemunho do estado de espírito da prisioneira, nos dias que antecederam sua execução. Desde então, tal documento teve um impacto muito grande na historiografia britânica. Em 1824, o historiador e autor inglês Henry Ellis, por sua vez, descreveu a carta como “uma das melhores composições da língua inglesa”.

Contudo, a pesquisadora Amanda Glover, trabalhando diretamente com o documento arquivado hoje entre os manuscritos da Cotton Library, no Museu Britânico, descobriu que seu papel só foi fabricado cerca de setenta anos após a execução de Ana, ou seja, no início do século XVII. Ela chegou a essa conclusão através de uma análise da imagem de marca d´’agua no papel. Naquele período, o papel era fabricado usando moldes, que deixavam uma marca d’água exclusiva no design do produto. Porém, as formas se desgastavam com um ou dois anos de uso, precisando assim ser substituídas. Esse detalhe fornece uma pista bastante precisa acerca do intervalo nas datas em que determinado papel foi usado. A última carta de Ana Bolena apresenta uma marca d’água contendo a imagem de um pote de duas alças, cheio de uvas. Ao fazer uma pesquisa no banco de dados do Memory of Paper, que contém centenas de milhares de marcas d´água registradas, Amanda Glover descobriu que a imagem que consta no documento analisado por ela só foi produzida a partir de 1606 ou 1609, ou seja, muito depois de Ana ter sido executada. Nesse caso, a fonte não passou no teste da análise primária, que consiste no estudo do material utilizado. Ainda assim, a carta poderia se tratar de uma cópia posterior, feita para preservar seu conteúdo.

Verso da carta de Ana Bolena. O documento foi atingido por um incêndio nos arquivos do Museu, em 1731. Felizmente, seu conteúdo tinha sido transcrito anteriormente.

“Quando descobri pela primeira vez que este pedaço de papel não existia até pelo menos 1600, meus primeiros pensamentos foram: é uma falsificação, como acho que a maioria das pessoas pensaria”, diz Glover sobre sua descoberta impressionante. “Mas eu não estabeleci isso como uma falsificação. Acabei de concluir que certamente não é o que Ana ditou”. Por outro lado, a análise secundária do documento, que consiste no estudo do estilo e da linguagem, feita a partir da comparação com outras cartas escritas pela missivista, aponta para uma possível falsificação. Alguns biógrafos, entre eles Alison Weir, autora de The Lady in the Tower (2009), não consideram quem o texto combine com o tom das palavras manuscritas de Ana Bolena. Embora o papel esteja muito danificado, é possível ler a autora lamentando por sua “triste prisão na Torre” e se declarando firmemente inocente de todas as acusações levantadas contra ela. Glover diz que não consegue imaginar Ana Bolena humildemente “implorando por sua vida”. Nas palavras da pesquisadora, que divulgou o resultado dos seus estudos na revista Tudor Society: “Eu posso vê-la escrevendo uma carta dessas. Ela era mal-humorada. Isso é o que Henry gostava nela”, diz Glover. “Ela era opinativa. Ela responderia. Ela iria debater”.

Em sua suposta súplica, Ana Bolena pedia ao rei um julgamento justo, feito por uma corte imparcial e não composta por seus inimigos, pois temia o veredito. Num tom bastante poderoso, a autora diz que se era desejo do monarca vê-la caluniada e morta, que Deus então o perdoasse por seu “grande pecado” e pelo “uso cruel e não principesco” que fez de uma mulher. O conteúdo do documento diz o seguinte:

Senhor, o desagrado de Sua Graça e minha prisão são coisas tão estranhas para mim, como a razão de escrever ou pelo quê desculpar, sou totalmente ignorante. Considerando que você me envia (desejando que eu confesse uma verdade e assim obtenha seu favor), por tal pessoa, que você sabe ser meu antigo inimigo professo; Assim que recebi esta mensagem dele, entendi corretamente o que você queria dizer; e se, como você diz, confessar uma verdade de fato possa obter minha segurança, devo, com toda a boa vontade e dever, cumprir seu desejo. Mas que Sua Graça nunca imagine que sua pobre esposa será levada a reconhecer uma falha, onde nem mesmo um pensamento disso jamais procedeu. E para falar a verdade, nunca um príncipe teve uma esposa mais leal em todos os deveres e em toda a verdadeira afeição do que você já encontrou em Ana Bolena, com cujo nome e lugar eu poderia de bom grado ter me contentado, se Deus e o prazer de Sua Graça tivessem sido tão satisfeitos. Sequer em nenhum momento, até agora, me esqueci de mim mesma na minha exaltação, ou recebi a realeza, mas sempre procurei por uma alteração como agora encontro; pois o fundamento de minha preferência não está em nenhum fundamento mais seguro do que o desejo de Vossa Graça, a menor mudança foi adequada e suficiente (eu sei) para atrair essa fantasia para algum outro assunto. […] Você me escolheu de uma posição baixa para ser sua rainha e companheira, muito além do meu deserto ou desejo; Se então você me achou digna de tal honra, Sua Graça bondosa, não deixe que nenhuma fantasia leve ou mau conselho de meus inimigos retire seu favor principesco de mim, nem deixe que essa mancha – aquela mancha indigna de coração desleal para com sua boa graça, jamais lance uma mancha tão suja em sua esposa mais obediente e na princesa bebê, sua filha. […] Prova-me, bom rei, mas que eu tenha um julgamento legal, e não deixe meus inimigos jurados sentarem-se como meus acusadores e como meus juízes: sim, deixe-me receber um julgamento aberto, pois minha verdade não temerá vergonhas abertas; então você verá minha inocência esclarecida, suas suspeitas e consciência satisfeitas, e a ignomínia e a calúnia do mundo cessadas, ou minha culpa declarada abertamente. Para que tudo o que Deus ou você possa determinar de mim, Sua Graça possa ser libertada de uma censura aberta e minha ofensa sendo tão legalmente provada, sua graça está livre, tanto diante de Deus quanto do homem, não apenas para executar punição digna sobre mim, como uma esposa infiel, mas para seguir sua afeição já estabelecida naquela parte, por causa de quem sou agora como sou; cujo nome eu poderia ter apontado por um bom tempo desde então; – sua graça não ignora minha suspeita nele. […] Mas se você já determinou de mim, e que não apenas minha morte, mas uma calúnia infame, deve lhe trazer a alegria de sua felicidade desejada, então desejo de Deus que ele perdoe seu grande pecado aqui, e, da mesma forma, meus inimigos, os instrumentos disso, e que Ele não o chame a prestar contas diretamente por seu uso não principesco e cruel de mim em seu tribunal geral, onde você e eu devemos aparecer em breve; e em cujo justo julgamento, não duvido (o que quer que o mundo pense de mim) minha inocência seja abertamente conhecida e suficientemente esclarecida. […] Meu último e único pedido será que eu mesma possa suportar apenas o fardo do desagrado de Sua Graça, e que não toque as almas inocentes daqueles pobres cavalheiros, que (pelo que entendi) também estão em prisão por minha causa. […] Se alguma vez eu encontrei favor aos seus olhos – se alguma vez o nome de Ana Bolena foi agradável aos seus ouvidos – então deixe-me obter este pedido; e assim deixarei perturbar ainda mais sua graça: com minha sincera oração à Trindade para ter Sua Graça em sua boa guarda, e para dirigi-lo em todas as suas ações. […] Da minha triste prisão na Torre, no dia 6 de maio. Sua esposa mais leal e sempre fiel. ANN BOLEYN.

De acordo com que se pode entender a partir da leitura do documento, Thomas Cromwell, o “inimigo professo” de Ana Bolena, teria sido instruído pelo rei a conseguir uma confissão da rainha, com garantias de “segurança”. Sabendo que não encontraria parcialidade entre os artífices de sua queda, Ana pede por um julgamento público, no qual ela possa defender sua causa, e que a corte decidisse então se havia verdade em suas palavras. Caso ela fosse considerada culpada, ela então se entregava à justiça do rei, mas pedia por misericórdia para os homens que foram presos por causa dela.

A marca d’água no papel, representando um balde com duas alças e uvas, só foi usada no início do século XVII.

Existem muitas dúvidas acerca da autenticidade deste documento. Primeiro, se não foi Ana Bolena quem o redigiu, então quem o fez? Segundo, por qual razão ele foi mantido secretamente na Biblioteca de Thomas Cromwell e depois reaparecido entre os manuscritos da Cotton Library? Se considerarmos que a carta se trata da cópia, o que teria então acontecido com a original? No caso de ser uma falsificação, com que finalidade ela foi forjada? O que se sabe até agora é que o manuscrito, mantido no Museu Britânico, não remonta à época da morte de Ana Bolena. Uma explicação plausível é que um comerciante de manuscritos teria vendido a carta para a família Cotton no século XVII como sendo uma cópia feita a partir da original. Os compradores, por sua vez, teriam aceitado a veracidade da declaração do vendedor, sem questionar exatamente os meios através dos quais ele conseguiu a transcrição. Segundo Amanda Glover: “Existem centenas de milhares de documentos em arquivos oficiais e arquivos não oficiais. Pode até haver uma carta original em algum lugar”, diz ela. “Mas é como procurar uma agulha no palheiro.” Enquanto isso, ela e outros pesquisadores continuam juntando evidências para desmontar esse quebra-cabeças de quase 500 anos!

Referências Bibliográficas:

CAREY, Lily. Anne Boleyn’s Letter May Have Been Written 70 Years After Her Death – Acesso em 18 de Agosto de 2024.

IVES, Eric W. The life and death of Anne Boleyn: ‘the most happy’. – United Kingdom: Blackwell Publishing, 2010.

NORTON, Elizabeth. The Anne Boleyn Papers. UK: Amberley, 2013.

TUDOR SOCIETY. Anne Boleyn’s Letter from the Tower: A Different Approach Leads to New and Conclusive Findings. 2024 – Acesso em 18 de Agosto de 2024.

WEIR, Alison. The lady in the tower: the fall of Anne Boleyn. – New York: Ballantine Books, 2010.

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