O fastígio da duquesa: Marie Caroline de Berry e a queda da monarquia Bourbon na França!

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

Em 1825, o famoso retratista da família real britânica, Sir Thomas Lawrence, pintou uma tela representando a mãe do futuro rei da França: Marie Caroline de Bourbon-Duas Sicílias. A retratada mantém na tela uma postura contida, com os braços cruzados sobre o colo. O busto de pele de alabastro – em evidência pelo decote generoso do vestido de seda marfim, decorado com um pingente de pérola em formato de gota e uma rosa – sustenta um pescoço longo e fino. A cabeça da duquesa aparece coroada por um toucado vermelho listrado com plumas brancas, enquanto seus cachos de cabelo loiro caem volumosamente sobre o rosto. Seu olhar, porém, é atrevido, e o sorriso contém uma ironia maldisfarçada. Todo o conjunto da obra revela uma mulher orgulhosa, consciente do poder que sua posição poderia lhe trazer no futuro. A tela de Lawrence nos serve como fio condutor para continuar tecendo o bordado da vida desta altiva princesa italiana, que desempenhou papel conspiratório nos eventos que ocasionaram a derrocada da monarquia Bourbon, em 1830. Sua história, longe de terminar com o reinado do velho rei Carlos X, segue por uma teia intricada de trapaças e esquemas, que no século XIX fascinaram o intelecto de escritores da verve de Chateaubriand, Alexandre Dumas e Victor Hugo.

Marie Caroline, duquesa de Berry, por Sir Thomas Lawrence, 1825.

Na madrugada de 29 de setembro de 1820, a duquesa de Berry deu à luz com sucesso um herdeiro para o trono da França, Henri, batizado em homenagem ao rei Henrique IV, conhecido como “O Bom”. Uma multidão de parisienses se avolumou nas portas do Palácio das Tulherias, entoando vivas para o rei Luís XVIII e para o pequeno duque de Bordeaux. O núncio papal, Monseigneur de Macchi, declarou o príncipe como a “Criança da Europa”. Toda a família real francesa, enlutada desde o assassinato do duque de Berry no início daquele ano, ficou em júbilo com o acontecimento. Marie Caroline recebeu diversos presentes por parte do monarca e sua vontade se tornou praticamente uma ordem. Uma das primeiras coisas que ela solicitou a Luís foi para que a antiga equipe de servos do seu finado marido, Carlos Ferdinando, continuasse a serviço do duque de Bordeaux, algo com que o rei concordou. O soberano também permitiu, a pedido da duquesa, que uma delegação de quinhentos soldados batesse continência para Henri. Seis semanas depois, o poeta Lamartine ofereceu uma “Ode ao Nascimento do duque de Bordeaux”: “Ele nasceu, filho de um milagre/ Aquele que herdou o sangue de um mártir/ Ele nasceu de um oráculo atrasado/ Ele nasceu de um suspiro terminado” (apud NAGEL, 2008, p. 291).

Cumprindo a promessa feita a seu marido, Marie Caroline se responsabilizou pelo cuidado de todos os filhos bastardos dele, especialmente das filhas de Amy Brown, a amante inglesa do finado duque de Berry. Para a mãe, eram pagos mensalmente pelo conde d’Artois 5000 francos, enquanto as garotas receberam o montante de 250.000 francos. Tamanha generosidade não se deu apenas em função dos instintos filantrópicos da duquesa e sim devido ao rumores de que Ferdinando havia se casado secretamente com Amy. Caso isso fosse verdade, ele seria um bígamo e sua união com Caroline certamente anulada. Para garantir o futuro da dinastia, então o mais sensato seria comprar com ouro o silêncio de qualquer um que pudesse colocar os Bourbon em perigo de extinção. Henri ainda não tinha completado um ano quando foi presenteado pelo Comitê Nacional com o belíssimo prédio renascentista, o Château de Chambord. No futuro, ele passaria a ser mais conhecido como duque de Chambord, em vez de Bordeaux. A criança foi batizada em maio de 1821, na Catedral de Notre-Dame. Logo após, a duquesa de Berry, recuperada de sua melancolia, partiu em peregrinação até o santuário de Nossa Senhora de Liesse, na Picardie, para agradecer a Deus e à virgem Maria pelo nascimento de Henri.

Quando Marie Caroline retornou a Paris, no final do verão, ela reassumiu sua vida social. Seus cabelos loiros, outrora tosquiados após a morte do marido, estavam novamente volumosos. Seu temperamento estava melhor e a vivacidade retornou para suas feições. A duquesa atendeu a uma recepção para mais de mil convidados na sua primeira aparição oficial, desde a morte de Ferdinando. Seu calendário de eventos sociais incluía bailes, jantares e apresentações teatrais. Tal como sua tia-avó, Maria Antonieta, ela esteve na vanguarda da moda e começou a ditar tendências na década de 1820, a exemplo dos xales de caxemira, dos vestidos com saia mais curta (5 cm acima do chão), que deixavam à mostra seus lindos pesinhos, e dos chapéus decorados com penas de avestruz ou de marabu, que disfarçavam sua pouca estatura. Da mesma forma que a rainha decapitada, Caroline redecorou seus aposentos nas Tulherias e gastou somas exorbitantes nas reformas de suas propriedades. Passava longas estadias no seu castelo em Rosny, recém-mobilhado com objetos novos e obras de arte. Também mandou construir uma enorme biblioteca, que incluía títulos de autores contemporâneos como o poeta Lamartine, Victor Hugo, Musset e Sir Walter Scott.

Como sua tia-avó, Maria Antonieta, a duquesa de Berry esteve na vanguarda da moda na década de 1820. Tela de Alexandre-Jean Dubois-Drahonet.

O amor de Marie Caroline pela leitura, desenvolvido com sua maturidade, revela uma imagem bastante diversa daquela relatada pelo embaixador francês em 1817, de uma princesa ignorante. Para choque dos conservadores, ela andava a cavalo usando calças masculinas. Seus gosto pela equitação havia sido adquirido a partir das aulas com uma de suas amigas, Vendée Félicie de La Rochejaquelein. Adepta da jardinagem, mandou construir um parque na propriedade de Rosny em estilo inglês e o povoou com animais de diversas espécies, tais como ovelhas, veados e até cangurus! Assim sendo, as coisas pareciam progredir maravilhosamente bem para a família real, especialmente depois da morte de Napoleão Bonaparte na Ilha de Santa Helena, em 1821. Porém, em agosto de 1824, Caroline foi informada de que a saúde do velho rei Luís XVIII declinava. Cada vez mais debilitado por sua obesidade (que gerou uma série de problemas, como gota, gangrena e dificuldade para respirar) o monarca estava morrendo. Imediatamente, a duquesa partiu para Paris, para estar ao lado do soberano quando ele desse seu último suspiro. A amante do rei, Madame du Cayla, teve que ser mandada embora, para que Luís pudesse fazer sua última confissão e receber a extrema unção. “Adeus, meus filhos, eu os abençoo. Que Deus esteja com vocês”, disse o monarca para seus sobrinhos, Luís Antônio e Maria Teresa, o duque e a duquesa de Angoulême.

No dia 13 de setembro, os filhos de Marie Caroline, o duque de Bordeux (agora com 4 anos) e a princesa Louise, foram levados ao leito do moribundo, que não mais conseguia enxergá-los, mas ainda tinha forças suficientes para abençoá-los e se despedir com um aceno de mão. Três dias depois, a febre tomou conta do corpo do rei. Para se certificar da morte, o cirurgião Alibert colocou a chama de uma vela entre os lábios do defunto. Como nenhum sopro saiu para fazer com que o fogo tremulasse, concluiu-se que ele já havia falecido. “O rei está morto!”, disse o médico. Virando-se para o herdeiro de Luís XVIII, seu irmão, o conde d’Artois, Alibert pronunciou: “Vida longa ao rei!”. O corpo do monarca foi sepultado na Basílica de Saint-Denis, no dia 24 de setembro, na cripta que ele havia mandado construir para abrigar os remanescentes de Luís XVI e Maria Antonieta. O novo soberano, Carlos X, fez sua entrada oficial em Paris no dia 27 daqueles mês, juntamente com os novos delfim e delfina, Luís Antônio e Maria Teresa Carlota. A ascensão do sogro significava também que Marie Caroline e seus filhos deveriam novamente residir nas Tulherias. Para a jovem duquesa, a formalidade do Palácio era maçante. Ela detestava todo o cerimonial da corte e dava preferência aos bailes e festas dos quais tanto gostava de presidir.

A nova delfina, que tinha memórias horríveis do lugar, quando lá viveu com seus pais entre os anos de 1789 e 1792, escreveu para a cunhada: “Quem poderia ter sofrido mais do que eu quando me encontrei novamente nesses lugares em que estive com meus pais e os vi tão infelizes? Ainda assim, meu dever é estar ali e meu coração me chama para lá porque é onde eu encontrei minha família” (apud NAGEL, 2008, p. 300-1). Carlos X, por sua vez, endossou as palavras de Maria Teresa e disse para a nora que ela deveria não só residir nas Tulherias, como também oferecer festas para seus filhos no Palácio, não devendo se esquecer de convidar as crianças da família do duque de Orleães. Contudo, o novo rei carecia do apoio popular que seu predecessor tinha. Carlos X queria governar de forma despótica e demonstrou isso na sua coroação em Reims, no dia 29 de maio de 1825. Todo o cerimonial da coroação de seu irmão, Luís XVI, em 1774, fora copiado. Carlos acreditava fortemente na teoria do direito divino, que reafirmava seu poder como soberano, e deu maior autonomia para a Igreja Católica, autorizando o regresso dos Jesuítas para a França. Logo, ele se tornou um monarca extremamente impopular, ao contrário da duquesa de Berry, que era adorada pelas massas, não apenas por sua vivacidade, como também por sua condição de mãe do futuro rei.

Retrato do rei Carlos X. Atelier de François Gérard.

Confiando na boa estrela da nora, Carlos X organizou para ela uma turnê entre as regiões da Bretanha e da Vendéia, programada para junho de 1828. O objetivo era conquistar a população daqueles distritos, que haviam se sublevado durante a Revolução Francesa, para a causa da monarquia. A duquesa de Berry, por sua vez, aproveitou a oportunidade para se apresentar como mãe do futuro Henrique V ao povo daquela região. Vestida de amazona, ela percorreu um itinerário que passou primeiro pela Bretanha, seguindo por Vannes, Sainte Anne d’Auray, passando pelas regiões de Lorient e Rennes, até regressar por Nanter, no dia 1 de julho. Sua viagem foi um verdadeiro triunfo. Bandeiras brancas se curvavam à sua passagem, com os veteranos das guerras da Vendéia lhe prestando homenagens. Emocionada, Caroline disse aos súditos: “Meus amigos, se novas tempestades perturbassem mais uma vez o futuro da nossa bela pátria, é entre vocês que eu gostaria de reconquistar o trono de meu filho”. Em 2 de março do ano seguinte, a duquesa ofereceu um suntuoso baile à fantasia, no qual ela compareceu caracterizada como Mary Stuart, a trágica rainha decapitada da Escócia. Os gastos públicos com tais eventos – que se equiparavam em despesas com aqueles outrora oferecidos por Maria Antonieta em Versalhes – eram enormes!

O povo certamente tinha noção da vida sem limites de Caroline. Mas, com a economia da França relativamente estável, pareceram não dar tanta importância para os disparates da duquesa. A raiva popular, por outro lado, voltava-se cada vez mais para o rei e suas quatro ordenanças desastrosas. Numa atitude displicente, Carlos X havia devolvido bens e propriedades confiscados durante a Revolução de 1789 para a nobreza e convidado de volta para a França famílias antes detestadas, como os Polignac. Em julho de 1830, tumultos começaram a tomar conta das ruas da capital. Barricadas eram erguidas por moradores de bairros pobres em ruas estreitas e nos arredores das praças Luís XV, Vendôme e no Carrousel. A polícia, por sua vez, reagiu com violência, disparando tiros de canhão e matando várias pessoas que manifestavam contra o despotismo do monarca. Naquela ocasião, Carlos havia assinado um decreto censurando a imprensa, especialmente o periódico de 50 anos, Charter de France, que tinha tendências liberais. “Vida longa ao Charter”, gritavam as pessoas na ruas, enquanto os sinos de Notre-Dame badalavam. “Em menos de cinco minutos, o ramo sênior dos Bourbon terá deixado de reinar”, observou Talleyrand nas suas Memórias.

Fazia muito calor naquele mês de julho de 1830. Observando através de um binóculo no Palácio de Saint-Cluud, o rei Carlos X e a duquesa de Berry assistiram com horror a população tomar (novamente) o Palácio das Tulherias e hastear a bandeira tricolor no lugar do estandarte branco real. Tentando demonstrar força, mas, ao mesmo tempo, preocupado com sua família, o rei partiu em direção a Versalhes no dia 31. A duquesa de Berry, vestida de amazona e montada à cavalo, escoltava a carruagem dos filhos. Armada com pistolas, ela lembrava as heroínas dos romances de Sir Walter Scott, dos quais tanto gostava de ler. Eles conseguiram deixar a capital com segurança, avançando em direção a Rambouillet. Enquanto isso, em Paris, o General Lafayette, novamente sobre comando da Guarda Nacional, abraçava Luís Filipe, duque de Orleães, na frente de uma multidão de milhares em frente ao Hôtel de Ville. Mas, ao contrário do que Talleyrand escreveu, demoraria pelo menos três dias desde a fuga da família real, para que os Bourbon deixassem o trono. Em 2 de agosto, o rei Carlos X se viu forçado a abdicar em favor de seu filho, Luís Antônio. Isso fez dele e de sua esposa, Maria Teresa Carlota, os novos rei e rainha consorte. Pelo menos por tempo suficiente, até que o próprio delfim também desistisse da coroa. Ou seja, 20 minutos!

A duquesa de Berry com seu filho, Henri, duque de Bordeaux. Ateliê de François Gérard, 1828.

As esperanças da família real passaram a residir no pequeno Henri, duque de Bordeaux, que, de acordo com os documentos de abdicação assinados por seu avô e tio, era o novo rei da França[1]. Quando informado sobre a abdicação de Carlos X, Henri, que tinha aproximadamente 10 anos e brincava com seus cavalinhos, demonstrou descrença quanto à afirmação de que seu “bom vovô” fora incapaz de fazer o povo da França feliz. Em seguida, ele ignorou os informantes e continuou entretido com a brincadeira. A criança desconsiderava que sua coroa havia sido tomada pelo primo, o duque de Orleães, que ascendeu ao trono como Luís Filipe I, rei dos Franceses. Os Bourbon foram então condenados ao exílio no Reino Unido, onde receberam asilo do novo rei William IV. Marie Caroline, furiosa, estava disposta a lutar pela herança do duque de Bordeaux. Desde o início dos tumultos de julho que ela estava plenamente convencida de que seria capaz de dispersar a multidão, caso tivesse permissão para marchar sobre Paris com o pequeno Henri ao seu lado. Carlos X, porém, a impediu de cometer tamanha irresponsabilidade para com a vida do garoto. Cansada da inércia do sogro, a duquesa de Berry começou a confabular seu próprio plano, visando a reconquista da promessa que certa vez São Luís lhe fizera em sonho: o trono da França!

Referências Bibliográficas:

AVELLA, Aniello Angelo. Teresa Cristina de Bourbon: uma imperatriz napolitana nos trópicos 1843-1889. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2014.

HUERTAS, Monique de. La Duchesse de Berry: l’aventureuse mère du dernier Roi de France. Paris: Pygmalion/Gérard Watelet, 2001.

HILLERIN, Lauren. La Duchesse de Berry: l’oiseau rebele des Bourbons. Paris: Flammarion, 2010.

IMBERT DE SAINT-AMAND, Arthur Léon. The Duchess of Berry and the court of Charles X. Nova York: Charles Scribner’s Sons, 1892.

NAGEL, Susan. Marie-Thérèse: the fate of Marie Antoinette’s daughter. Great Britain: Bloomsbury, 2008.

Notas:

[1] Em tese, os partidários da família real só o reconheceriam como Henrique V após a morte de Carlos e Luís.

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