“Assassinato Real”: Marie Caroline de Bourbon-Duas Sicílias e a morte que abalou a monarquia francesa!

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

No início do século XIX, o destino da Casa de Bourbon na França recaía sobre os ombros do duque e da duquesa de Berry, Carlos Ferdinando e Marie Caroline. O rei Luís XVIII não tivera filhos, tendo como herdeiro seu irmão, o conde d’Artois. O próximo na linha de sucessão era o duque de Angoulême, que não gerara descendência com sua esposa, Maria Teresa. Em 1819, Caroline dera à luz uma filha saudável, provando, assim, que era capaz de prover a Coroa com herdeiros e garantir a continuidade da linhagem masculina do Rei Sol (Luís XIV). Contudo, seu casamento, que antes parecia um idílio de contos de fadas, logo desaguou para uma desilusão. Tão logo a duquesa de Berry descobriu sobre as infidelidades de Carlos, brigas e cenas de ciúme passaram a transcorrer dentro das paredes do Palácio Eliseu. O duque resolveu então pedir ajuda ao príncipe de Castelcicala, embaixador napolitano em Paris, para abrir os olhos da duquesa sobre a realidade de um casamento arranjado. Conversando com Caroline em italiano, o príncipe lhe disse que todos os homens possuíam amantes e que suas esposas deveriam se resignar a essa situação. Incrédula, a duquesa de Berry perguntou se sua tia, Maria Amélia, sabia que o marido, o duque de Orleães, também lhe era infiel. “Sem dúvidas, senhora!”, respondeu Castelcicala.

Por volta dessa época, o rei Luís XVIII havia perdoado o duque de Orleães, Luís Filipe, e autorizado que ele e sua família retornassem para a França. Isso deixou Maria Teresa Carlota bastante enfurecida. Afinal, o pai do duque, Luís Filipe II, havia votado a favor da decapitação de seu primo, Luís XVI, antes que ele próprio entregasse seu pescoço para a lâmina da guilhotina, no final de 1793. Embora a duquesa de Angoulême tivesse dito que perdoara todos aqueles que, de alguma forma, haviam contribuído para a morte de seus pais, parece que sua boa vontade não se aplicava à prima, a duquesa de Orleães e tampouco ao marido desta. Enquanto isso, Marie Caroline se perguntava como a tia Maria Amélia, uma mulher de fibra, era capaz de suportar as traições do duque. “Madame a duquesa de Orleães é sábia demais para se ofender”, tentava explicar o embaixador de Nápoles. Seguindo o exemplo da tia, ela percebeu que continuar brigando com o marido por causa de suas relações extraconjugais não impediria que Carlos rompesse ligações com suas amantes. Em vez de protagonizar cenas escandalosas de ciúme, Caroline resolveu se concentrar na tarefa principal de uma princesa consorte, ou seja, gerar sucessores do sexo masculino para o trono. No início de 1820, ela novamente apresentou sinais de gravidez.

Marie Caroline assiste, atônita, ao assassinato de seu marido, em frente à Ópera de Paris (artista desconhecido, século XIX).

O duque e a duquesa de Berry tinham uma vida social bastante ativa. Ambos eram colecionadores de arte, especialmente de paisagens e litogravuras, e adoravam frequentar a Ópera de Paris e os teatros, como o Thêatre du Vaudeville, onde encomendaram uma peça em homenagem ao aniversário de 41 anos da duquesa de Angoulême, em 19 de dezembro de 1819. Em janeiro do ano seguinte, o casal ofereceu dois grandes bailes no Palácio Eliseu durante a temporada do carnaval. Fazia bastante frio naquele inverno, mas isso não impediu que a duquesa aparecesse resplandecente com suas joias. Estranhamente, o duque a proibiu de dançar naqueles eventos. Longe de ser mais uma cena de ciúmes entre o casal, ele estava preocupado com o estado de gravidez da esposa. Carlos Ferdinando se mostrava muito mais cauteloso e taciturno do que antes. Aquela criança que Caroline carregava no ventre deveria ser o menino pelo qual seu tio, Luís XVIII, e seu pai, o conde d’Artois, tanto esperavam. Conforme a temporada avançava, o duque decidiu parar de comparecer aos grandes bailes e passar mais tempo em casa, com Caroline, à beira da lareira. No domingo, dia 13 de fevereiro, ele decidiu levar a duquesa à Ópera, localizada na atual Rue Le Peletier, onde uma de suas amantes, Virginie Oreille, se apresentava com uma atração de dança.

Durante a apresentação, que começou por volta das 10h, Caroline se sentiu indisposta depois de visitar o camarote dos Orleães e solicitou uma carruagem para ir embora. O marido gentilmente a acompanhou até o veículo, na expectativa de que, após a partida da duquesa, ele pudesse ter um momento a sós com sua amante. “Adeus, Caroline. Nos encontraremos em breve”, foram suas palavras para a esposa. Ele então fechou a porta da carruagem, se virou para a entrada da Ópera e, de repente, foi apunhalado por um homem que passava em frente ao prédio. A duquesa, atônita, assistiu ao marido gritar por ajuda e arrancar a lâmina de seu próprio peito. “Fui assassinado! Este homem me matou! Estou morto…!” teria dito o duque de Berry, enquanto era socorrido por seu escudeiro, Ménard. Em seguida, ele se virou para a esposa, que corria na sua direção, e disse: “Caroline… venha, deixe-me morrer em seus braços”. Os demais criados do duque correram desesperados atrás do assassino: Louis Pierre-Louvel, um fanático bonapartista, que havia jurado tirar a vida do último príncipe da linhagem Bourbon que fosse capaz de produzir um herdeiro. Julgado culpado, Louvel seria conduzido à guilhotina meses depois. Quando de sua morte, em junho daquele ano, o duque de Berry já não mais se encontrava entre seus familiares.

Marie Caroline se ajoelha, desesperada, diante do leito de morte de seu marido, enquanto o rei e a família real contemplam a cena. Um bebê, representando o filho que a duquesa de Berry carregava, foi acrescentado na pintura. Tela de Alexandre Menjaud , 1824.

As cenas que acabam de ser narradas parecem ter saído de algum romance do gênero capa e espada, escrito por Alexandre Dumas ou Sir Walter Scott, não fosse a presença do duque e da duquesa de Angoulême, dos Orleães e da própria duquesa de Berry para confirmar sua autenticidade. Carlos Ferdinando foi levado às pressas para uma sala adjunta ao vestiário da Ópera, onde deveria ter se encontrado com sua amante, não fosse o atentado do qual fora vítima. O espetáculo imediatamente foi suspenso. Enquanto os espectadores deixavam as cadeiras da plateia, Maria Amélia e Luís Filipe de Orleães correram para a o local onde o primo estava sendo tratado pelos médicos. Maria Teresa Carlota e seu marido, Luís Antônio, chegaram logo em seguida. Por fim, o próprio conde d’Artois, pai do duque, entrou no recinto. Ao lado de Ferdinando, estava sua esposa, que trocou o vestido manchado de sangue por uma traje mais simples de tricô, que lhe havia sido trazido do Eliseu. Os médicos fizeram o possível para manter a vida do duque, mas o tratamento aplicado na época, que consistia em incisões no corpo para aplacar os humores do sangue do paciente, contribuiu ainda mais para enfraquecer a vítima. Ciente de que não tinha muito mais tempo, o duque de Berry pediu que o bispo mais próximo da família real, Monsenhor de Latil, lhe administrasse a extrema unção e ouvisse sua última confissão.

Durante aquela noite turbulenta, o duque confessou à esposa que tivera duas filhas antes do casamento. Compadecida pelas dores do moribundo, Caroline disse: “Deixe-as vir. Cuidarei delas como cuidaria da minha própria filha”. Alguns criados então imediatamente correram para procurar pela amante inglesa do duque, Amy Brown, que morava na Rue des Mathurins, com as filhas que tivera com Carlos, chamadas de Louise e Charlotte. Ambas foram levadas ao pai, na presença da duquesa. Em seguida, ele admitiu ter tido outros dois filhos fora do casamento e pediu para que as crianças não ficassem desassistidas na sua ausência. De repente, a energia foi abandonando seu corpo, para desespero de Marie Caroline, que chorava sem parar. Seu marido recobrou forças novamente para dizer em alto em bom som: “Fique calma, pelo bem do bebê que você carrega”. O gesto, intencional, foi a única forma que o duque encontrou, antes de morrer, para anunciar a todos de que sua esposa estava novamente grávida e, assim, livrar a criança que estava por nascer do estigma da bastardia. Sua agonia parecia não ter fim. Às cinco da manhã, o corpulento Luís XVIII chegou ao leito de morte do sobrinho. Berry pediu ao tio clemência para seu assassino, um desejo que, diga-se de passagem, não foi cumprido pelo rei. Um hora mais tarde, estava morto!

A duquesa viúva de Berry, com sua filha, Louise Marie Thérèse, de luto pela morte de Carlos Ferdinando, cujo busto aparece retratado na pintura. Tela de François Kinson, 1820.

Desnorteada, a duquesa de Berry pediu a Madame de Gontaut-Biron que cuidasse de sua filha, Louise, pois ela queria morrer ao lado do marido. Carlos Ferdinando tinha 42 anos quando faleceu, deixando sua esposa viúva aos 20. Maria Teresa Carlota então levou a prima de volta para casa. Ao chegar, com o corpo ainda coberto pelo sangue do morto, Caroline pegou uma tesoura e começou a cortar seus lindos cabelos loiros. “Carlos! Carlos!”, ela gritava, enquanto as madeixas encaracoladas caíam sobre seu colo. “Nenhuma mão além da sua vai acarinhar minha cabeça”, completou. Após terminar o serviço, ela se virou para Madame de Gontaut-Biron e disse: “Entregue esse cabelo para minha filha e diga a ela que eu o cortei no dia em que seu pai morreu”. Algumas mechas foram levadas para serem colocadas no caixão do defunto. Com a ajuda de Maria Teresa, Madame de Gontaut começou a despir a duquesa, tentando persuadi-la a dormir um pouco. Caroline, por sua vez, estava em completo delírio. Disse que não desejava dormir e que não se deitaria em nenhuma cama que não fosse a do marido. A duquesa de Angoulême, preocupada não só com a cunhada como também com a criança que ela carregava no ventre, insistiu para que Caroline deixasse o Palácio Eliseu, onde havia sido tão feliz com Carlos, e fosse para as Tulherias.

De acordo com o costume, a duquesa não estava presente nas exéquias fúnebres do marido, que ocorreram no mês seguinte, na Basílica de Saint-Denis. Segundo o último desejo do duque, seu coração deveria ter sido sepultado na capela Val de Grace. Mas, contrariando o pedido, a duquesa conseguiu manter o órgão embalsamado junto a si. Seu intuito era construir uma capela memorial no parque do Château de Rosny, dedicada especialmente ao coração do marido. Durante aqueles dias, ela passou a viver com o restante da família no Palácio das Tulherias, onde o desenvolvimento de sua gravidez era vigiado de perto, visto que ela era considerada uma ameaça tanto para si, quanto para a criança. Prova disso é que a duquesa mandou detonar explosivos no Palácio do Louvre e no das Tulherias, para convencer a polícia de que os assassinos de seu marido planejavam matá-la e, dessa forma, conseguir mais proteção. Quando o rei descobriu que a viúva de seu sobrinho agiu por conta própria, com a ajuda de um criado, pediu para que a polícia se esquecesse do incidente, desculpando-se pela natureza “italiana” da duquesa, propensa ao melodrama. Os argumentos dela, porém, não eram totalmente sem fundamento. Pouco depois do incidente no Palácio, dois homens foram acusados de tentar detonar explosivos perto dos seus apartamentos.

O Château de Rosny, residência de verão do duque e da duquesa de Berry, onde Caroline pretendia erguer uma capela para o coração do seu marido. Tela de Jean-Baptiste Camille Corot, 1840.

Para aumentar o desespero da viúva, uma das amantes de seu marido, Marie Sophie de la Roche, deu à luz um menino batizado de Carlos Ferdinando, em homenagem ao seu presumível pai. Na primavera, Marie Caroline, com sua barriga protuberante, foi vista caminhando ao redor do Rio Sena. Ela então pediu aso pedestres para que se apiedassem de sua condição e orassem por um menino. Até mesmo o famoso romancista, poeta e dramaturgo Victor Hugo escreveu uma oração, rogando a Deus para que a duquesa presenteasse a França com um filho saudável. Em carta ao conde de Brissac, Caroline desse que sonhou uma noite que era mãe do rei da França: “Eu contemplei São Luís entrando em meu quarto, assim como ele é pintado, sua coroa na cabeça, seu grande manto real bordado com flores-de-lis, e sua face venerável. Eu lhe entreguei minha garotinha. Ele abriu seu manto e me presenteou com o garotinho mais perfeito”. Cartas e mais cartas chegavam ao Palácio das Tulherias, desejando boa sorte ao parto da duquesa. O rei prontamente declarou que, se a criança fosse um menino, seria imediatamente feito duque de Bordeaux, em deferência à lealdade dos cidadãos desta província. Dessa vez, todos os presságios pareciam estar a favor de Caroline.

Na madrugada do dia 28 para 29 de setembro de 1820, a duquesa de Angoulême dormia tranquilamente, quando foi abruptamente despertada por uma criada, avisando que a duquesa de Berry havia entrado em trabalho de parto. Maria Teresa então colocou seu roupão e partiu para os aposentos da cunhada. Ao chegar lá, Caroline havia dado à luz com sucesso uma criança, sem a presença de médicos ou das testemunhas oficiais designadas pelo rei. Apenas o cordão umbilical, que ainda ligava o bebê à sua mãe, era prova de que o futuro herdeiro do trono era mesmo filho da duquesa. Imediatamente, Maria Teresa ordenou que dois guardas fossem chamados para servir de testemunhas. Quando o relógio apontou para 2h30 da manhã, tiros de canhão começaram a ser disparados: 21 salvas se fosse uma menina e 101, caso fosse um menino. O povo de Paris contava atenciosamente. Assim que os canhões dispararam pela vigésima segunda vez e continuaram, a festa tomou conta das ruas. Henri Charles Ferdinand Marie Dieudoné, duque de Bordeaux, foi orgulhosamente apresentado por sua tia, a duquesa de Angoulême, aos moradores do Palácio. Com a chegada do “bebê milagroso”, como a criança foi chamada, o futuro da dinastia Bourbon parecia, dessa forma, garantido. Os eventos futuros, porém, provariam o quanto a família real estava enganada!

Referências Bibliográficas:

AVELLA, Aniello Angelo. Teresa Cristina de Bourbon: uma imperatriz napolitana nos trópicos 1843-1889. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2014.

HUERTAS, Monique de. La Duchesse de Berry: l’aventureuse mère du dernier Roi de France. Paris: Pygmalion/Gérard Watelet, 2001.

HILLERIN, Lauren. La Duchesse de Berry: l’oiseau rebele des Bourbons. Paris: Flammarion, 2010.

IMBERT DE SAINT-AMAND, Arthur Léon. The Duchess of Berry and the court of Charles X. Nova York: Charles Scribner’s Sons, 1892.

NAGEL, Susan. Marie-Thérèse: the fate of Marie Antoinette’s daughter. Great Britain: Bloomsbury, 2008.

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