Uma napolitana na família real francesa: Marie Caroline de Bourbon-Duas Sicílias, duquesa de Berry!

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

Em 1815, a reinstaurada Casa de Bourbon enfrentava uma grave crise dinástica: o duque e a duquesa de Angoulême, herdeiros do rei Luís XVIII da França, não haviam produzido sequer um sucessor para a Coroa. Próxima de completar quarenta anos, a duquesa Maria Teresa Carlota, única filha sobrevivente de Luís XVI e Maria Antonieta, sabia que a probabilidade de conceber um filho do marido era diminuta. Imediatamente, seu tio começou a procurar entre outras cortes da Europa uma noiva para seu sobrinho mais jovem, Carlos Ferdinando, duque de Berry. Embora tivesse um comportamento promíscuo, o duque havia provado ser capaz de gerar filhos, sendo pai de duas garotas de nascimento ilegítimo, em Londres. Para salvar a linhagem real, Luís XVIII pediu a bênção de Maria Teresa para contratar o casamento de Carlos Ferdinando com a sobrinha da rainha decapitada, a princesa Marie Caroline de Nápoles e da Sicília. A escolha parecia perfeita. Afinal, a jovem de 17 anos tinha todos os predicados de uma consorte: tinha boa aparência, tinha ancestrais ilustres e carregava consigo a promessa de renovação da família real. Poucos poderiam imaginar que a futura duquesa de Berry era também uma mulher cheia de astúcia, tão sequiosa de poder quanto seus ancestrais.

Retrato da duquesa de Berry, por Élisabeth Louise Vigée Le Brun, 1824.

Nascida em 5 de novembro de 1798, no Palácio Real de Caserta, em Nápoles, Maria Carolina Ferdinanda Luise era a primogênita do futuro rei Francisco I das Duas Sicílias com a prima, a arquiduquesa Maria Clementina da Áustria. O nome escolhido para a criança fazia uma referência aos seus avós: pelo lado paterno, Marie era neta do rei Fernando IV de Nápoles e I da Sicília e da rainha Maria Carolina da Áustria (irmã favorita de Maria Antonieta); já por via materna, era neta do imperador Leopoldo II do Sacro-Império e da imperatriz Maria Luísa da Espanha. A primeira infância da pequena infanta transcorreu tranquilamente entre as belas paredes do Palácio Real de Caserta e Palermo. Seus primeiros anos só foram perturbados pela ocupação de Nápoles pelas tropas napoleônicas no ano de 1799, fazendo com que a família real se refugiasse na Sicília. Pouco tempo depois, veio a morte prematura de sua mãe, aos 24 anos, em 1801. Como precisava de herdeiros do sexo masculino, Francisco teve que tomar uma segunda esposa. Dessa vez, ela se casou com outra prima, a infanta Maria Isabel da Espanha. Desse casamento, nasceriam outros treze príncipes e princesas, incluindo o futuro rei Fernando II das Duas Sicílias e a imperatriz do Brasil, Dona Teresa Cristina.

Novamente, a infância de Marie Caroline e de seus meios-irmãos foi perturbada pela invasão do reino Nápoles pelas tropas de Joseph Bonaparte. Desta vez, a família real teve que pedir abrigo ao imperador Francisco I da Áustria, irmão da finada arquiduquesa Maria Clementina. Apenas com a definitiva queda de Napoleão, em 1815, os Bourbon conseguiram regressar com segurança para o recém-criado reino das Duas Sicílias. Por volta dessa época, o rei Luís XVIII procurava entre seus parentes uma noiva adequada para seu sobrinho. Quem melhor do que a jovem Marie Caroline para se tornar a futura duquesa de Berry? A despeito de ter crescido no seio de uma família unida e de encontrar na madrasta a figura de uma segunda mãe, tanto o príncipe herdeiro Francisco quanto a princesa Maria Isabel foram indulgentes na sua criação, priorizando os divertimentos em detrimento dos deveres e do aprendizado adequado para uma princesa real. Por outro lado, Marie Caroline era uma bela jovem e, quaisquer problemas envolvendo sua educação, estes poderiam ser rapidamente solucionados durante seus anos na corte francesa. Luís XVIII então enviou seu favorito, Pierre Louis Jean Casimir de Blacas, na qualidade de embaixador extraordinário para pedir ao rei Fernando I a mão da neta em casamento para o duque de Berry.

Com efeito, o relato de Baclas para o rei descreve a princesa como mal-educada e preguiçosa. Ela teria dito ao embaixador que “nós, sicilianos somos tão ignorantes quanto uma carpa. Imagine que passei minha infância na Sicília e nem aprendi italiano”. A fala, um tanto quanto anedótica, reportada pelo embaixador, carece de maior comprovação. De sua parte, Marie Caroline considerou o favorito real como pomposo e esnobe. Se confiarmos nos retratos pintados Sir Thomas Lawrence e Elisabeth Vigée-Lebrun, a princesa era bastante charmosa: tinha o rosto comprido e o lábio Habsburgo de sua mãe; os olhos, de um azul intenso, sofriam com um leve estrabismo e seus cabelos eram loiros e cacheados; a pele leitosa e as maçãs rosadas da face lhe davam um ar de frescor muito admirado no período. O casamento por procuração foi celebrado no dia 16 de abril de 1816, na Catedral de Nápoles, com um dos irmãos da noiva representando o duque de Berry. No mês seguinte, a nova duquesa embarcou no “La Christine”, escoltada por três navios napolitanos e três navios franceses, em direção à sua nova pátria. Durante o trajeto, ela iniciou uma singela troca de correspondência com seu marido, quase 20 anos mais velho, para que se conhecessem melhor.

Maria Teresa Carlota, duquesa de Angoulême, por
Antoine-Jean Gros, 1817.

Devido a esse correio amoroso, um nítido interesse começou a surgir entre o casal. Em cada ponto de parada da viagem, Marie Caroline recebia uma carta de Carlos Ferdinando, endereçada a ela como “Madame”. A duquesa, por sua vez, respondia polidamente ao marido, dirigindo-se a ele como “Monseigneur”. Aos poucos, as formalidades foram desaparecendo e Carlos começou a se dirigir a ela apenas como “Caroline”. No dia 12 de junho, ele escreveu: “Estou com saudades de ver você, minha Caroline… Meu coração está batendo e acredito que vai bater muito mais forte quando meus lábios tocarem suas lindas bochechas”. Durante esses dias, a duquesa permanecia em quarentena no porto de Marselha, antes de ser finalmente autorizada a desembarcar. O medo da peste, oriunda dos portos italianos, ainda era muito grande naquele período. Uma vez comprovado que não havia infecção nos navios da comitiva, a duquesa foi autorizada a desembarcar na cidade, onde uma grande recepção na Câmara Municipal lhe aguardava. Pelos próximos quinze dias, ela teve que aguentar uma infinidade de discursos, fanfarras, cantos, chuvas de flores e arcos do triunfo. Finalmente, no dia 15 de junho, ela chegou à floresta de Fontainebleau, local em que viu seu marido pela primeira vez.

Com efeito, Maria Teresa, duquesa de Angoulême, havia criado para a sobrinha-neta de sua mãe uma recepção quase tão faustosa quanto a que Maria de Médici recebera em outubro de 1600, quando cruzou a fronteira para se casar com o primeiro rei Bourbon da França, Henrique IV. Uma grande tenda foi montada no local, com ricas tapeçarias cobrindo o gramado. Marie Caroline entraria naquele pavilhão como uma princesa napolitana e sairia de lá como uma autêntica princesa francesa. Devido à sua obesidade, que o impossibilitava de andar, o rei Luís XVIII teve que ser carregado até o local numa cadeira, a fim de apresentar a duquesa à sua nova família. Segundo Susan Nagel:

Apesar do duque de Berry ter se correspondido com sua noiva, e de ambos terem flertado em suas cartas, ele não fazia ideia do que deveria esperar. Quando ele finalmente encontrou sua noiva, ficou imediatamente apaixonado. A despeito do fato de que o francês de Marie Caroline era muito ruim, a jovem siciliana foi reconhecida por todo mundo como uma lufada de ar fresco. Assim como Luís XV havia ficado deslumbrado com a encantadora jovem Maria Antonieta, Luís XVIII estava certo de que seu sobrinho acharia sua noiva irresistível – e, com esperança, fértil (NAGEL, 2008, p. 278).

Outros convidados, porém, ficaram menos impressionados. James Gallatin, filho do embaixador dos Estados Unidos na França, Albert Gallatin, considerou a nova duquesa bastante mimada e com péssimas maneiras. Em contraste, ele ficou impressionado com a “gentileza, doçura e compaixão” da duquesa de Angoulême, com a qual ele trocaria várias cartas, recordando-se dela em seus diários como uma “santa”.

O rei Luís XVIII da França, por Robert Lefèvre, 1814.

Dois dias depois das festividades de Fontainebleau, ocorreu o casamento oficial na Catedral de Notre-Dame, em Paris, após a entrada oficial de Marie Caroline na capital. A nave da Igreja estava toda acesa pela luz de mais de mil velas e decorada com cestas de flores e frutas, simbolizando a promessa de fertilidade da noiva. Tecidos de veludo azul bordados com as flores-de-lis douradas se enroscavam entre as pilastras, enquanto bandeiras ostentavam as glórias passadas da dinastia no teto da Catedral. O próprio rei estava vestido em um traje azul real, coberto com laços e pérolas, incluindo os diamantes Regente e Sancy[1]. A noiva, por sua vez, cruzou os portais do prédio medieval, palco de tantos casamentos reais, usando um vestido de cetim branco coberto com tule bordado com fios prateados. Seus cachos loiros estavam presos por uma diadema de diamantes. Após a cerimônia religiosa, as festividades tiveram lugar no Palácio das Tulherias, na Galerie de Diane. Do lado de fora, o povo da capital comemorava desde cedo, enquanto as mulheres ostentavam seus melhores trajes para a ocasião. À meia-noite, os cônjuges partiram para sua nova morada, o Palácio do Eliseu. No passado, ele havia servido de teto para Madame de Pompadour, Murat e para as imperatrizes Joséphine e Marie Louise (prima de Marie Caroline). Na ocasião, Luís XVIII declarou: “O duque de Berry está apaixonado pela sua esposa, mas não é o único. Somos todos seus rivais!”.

Em casamentos arranjados como o duque e da duquesa de Berry, era muito raro que os cônjuges desenvolvessem alguma forma de afeto que pudesse ser chamada de paixão. Histórias de que Marie Caroline corria na direção do marido assim que ouvia seus passos na escada, apenas para ser carregada nas costas dele degraus acima, começaram a deleitar o povo de Paris. Toda a equipe de criados do Palácio estava encantada com o romance. Outros membros da corte, por outro lado, se preocupavam com a educação da jovem duquesa. Maria Teresa passou a considerar sua prima como uma mulher tola e frívola, razão pela qual ela contratou Monsieur Abraham, especialista em protocolo e etiqueta, para educá-la apropriadamente de acordo com os ditames da corte francesa. Em dezembro daquele ano, uma notícia maravilhosa chegou aos seus ouvidos: a cunhada estava grávida! O futuro da dinastia Bourbon na França parecia, assim, assegurado pela criança que a duquesa de Berry carregava no ventre. A própria Maria Teresa colocou de lado sua desaprovação pelas maneiras da prima e decidiu observar de perto o desenvolvimento da gravidez. Apenas uma coisa preocupava-a: o duque, sempre tão carinhoso com a jovem esposa, havia reatado suas relações extraconjugais.

No Antigo Regime, sepultado com a Revolução Francesa de 1789, príncipes que possuíam uma variedade de relações fora do casamento mostravam para a sociedade um testemunho de sua virilidade, principalmente se desses casos nascessem crianças bastardas. O pai do duque de Berry, o futuro rei Carlos X, era um exemplo disso. Mal tinha tomado por esposa a princesa Maria Teresa de Saboia, o então conde d’Artois criara no seu Château de Bagatelle, no Bois de Boulogne, em Paris, um boudoirs repleto de espelhos, que refletiam imagens eróticas pintadas nas paredes, com camas forradas de vermelho, nas quais o duque recebia suas várias amantes. Logo, se tornou famoso o “palácio dos prazeres” do irmão do rei. No início do século XIX, com a ascensão dos valores burgueses e a valorização da família, esse comportamento não era mais tolerável por parte da aristocracia. O exemplo deveria vir de cima para baixo! Embora Berry achasse sua esposa encantadora, isso não o impediu de reatar relações com atrizes da Comédie-Française, como Marie Sophie de la Roche, Joséphine Deux de la Roserie e certa Mademoiselle de Saint-Ange. Outros nomes incluíam a bailarina Eugénie Virginie Oreille, a atriz Résica Lebreton e Louise Thiryfoq, com quem Carlos teve uma filha.

Carlos Ferdinando, duque de Berry, por Jean-Baptiste Jacques Augustin.

No dia 13 de julho de 1817, Marie Caroline deu à luz um bebê do sexo feminino. Infelizmente, a criança tinha a compleição muito frágil e não sobreviveu ao dia seguinte. O diminuto caixão com os despojos da princesa, batizada de Louise Élisabeth, foi sepultado aos pés do sarcófago de Luís XVI, na Cripta Real da Basílica de Saint-Denis, sob os olhos chorosos de Maria Teresa. Naquele período, as mães eram responsabilizadas por qualquer coisa que afligisse a prole do casal. Assim, a duquesa precisou se desculpar com o marido, tanto pela perda do bebê, quanto pelo sexo da criança. Ciente de que seu mau comportamento havia provocado ciúmes e desgosto na sua jovem esposa, enquanto ela estava grávida, Carlos deu para ela o antigo Château de Sully, às margens do Rio Sena. No ano seguinte, em 13 de setembro, a duquesa deu à luz um bebê natimorto, batizado de Louis. Apenas em 1819 ela conseguiria levar à termo uma gravidez bem-sucedida. No dia 21 de setembro daquele ano, nasceu a princesa Louise Marie Thérèse, batizada em homenagem à sua tia e madrinha, a duquesa de Angoulême. “Depois da menina, o menino!”, disse a mãe esperançosa, ao saber do sexo da criança. O futuro da Casa de Bourbon ainda estava pendendo diante dos seus olhos!

Referências Bibliográficas:

AVELLA, Aniello Angelo. Teresa Cristina de Bourbon: uma imperatriz napolitana nos trópicos 1843-1889. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2014.

HUERTAS, Monique de. La Duchesse de Berry: l’aventureuse mère du dernier Roi de France. Paris: Pygmalion/Gérard Watelet, 2001.

HILLERIN, Lauren. La Duchesse de Berry: l’oiseau rebele des Bourbons. Paris: Flammarion, 2010.

IMBERT DE SAINT-AMAND, Arthur Léon. The Duchess of Berry and the court of Charles X. Nova York: Charles Scribner’s Sons, 1892.

NAGEL, Susan. Marie-Thérèse: the fate of Marie Antoinette’s daughter. Great Britain: Bloomsbury, 2008.

Nota:

[1] Ambas as gemas preciosas, tão históricas quanto lendárias, haviam desaparecido durante a Revolução Francesa, para reaparecerem anos depois durante o governo de Napoleão.

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