“Em meu fim está meu começo”: a genialidade por trás de “Mary Queen of Scots” (2013)

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

Uma das ideias mais comuns com relação à morte é a de que o indivíduo, prestes a deixar este mundo, repassa em flashback a história da sua vida. Se isso é verdade ou não, todos nós um dia descobriremos. Porém, é curioso imaginar o que passava pela cabeça de grandes personagens do passado momentos antes de morrerem, especialmente se essa pessoa teve um fim trágico, como é o caso de Maria Stuart (1542-1587). Ao longo dos séculos, já se gastou mais papel e tinta para escrever sobre a trajetória desta senhora do que se possa imaginar. Será que, minutos antes da lâmina do machado do carrasco cair sobre seu pescoço, passou perante seus olhos todas as desventuras que protagonizara? Teria ela imaginado um destino diferente para si, ou apenas se preocupado com a salvação de sua alma? São tantas conjecturas e nenhuma delas é mais verídica do que a outra. Os pensamentos finais da rainha da Escócia podem ter ido com ela para o túmulo, mas ainda bem que a literatura e o cinema existem aí para preencher as lacunas que a historiografia não consegue. Melhor ainda quando fato e ficção se juntam para oferecer a nós, telespectadores, um quadro mais estimulante da realidade. É o que podemos observar no filme suíço “Mary Queen of Scots” (2013), do diretor Thomas Imbach.

Camille Rutherford  como Maria Stuart.

Camille Rutherford como Maria Stuart.

Para início de conversa, gostaria de destacar que este não é um filme sobre o período Tudor como outro qualquer. Diferentemente das produções atuais, “Mary Queen of Scots” se destaca pela sua fidelidade aos fatos e respeito pelos personagens da trama. Ao contrário de muitos diretores e roteiristas que costumam alterar a história original para despertar o interesse do grande público, Thomas Imbach conseguiu trazer para as telas a história de Maria Stuart sem qualquer distorção, dando prioridade aos fatos conhecidos e apenas usando o recurso da chamada “licença poética” em casos necessários, para não deixar o enredo do filme confuso aos olhos de quem o assiste. A coisa toda fica ainda mais interessante quando descobrimos que o longa-metragem se trata de uma adaptação da obra de Stefan Zweig, “Mary Stuart”, lançada em 1935. Zweig foi autor de muitos livros, destacando-se pela brilhante análise psicanalítica que fazia de seus biografados, entre os quais, Maria Antonieta. Sua biografia da última rainha da França já serviu de inspiração para diretores como W. S. Van Dyke (“Marie Antoinette”, 1938) e, mais recentemente, Sofia Copola (“Marie Antoinette”, 2006).

Entretanto, agora é a vez do livro “Mary Stuart” (1935) ganhar sua própria versão cinematográfica. Para fazer jus ao enredo da obra foi organizado um elenco bastante preparado, com uma fotografia esplêndida e cenários de tirar o fôlego. Verdadeiro painel de cores e formas que trazem para os dias atuais toda a selvageria de uma Escócia quase inóspita e a bravura da mulher que tentou domá-la. Não vou ficar aqui gastando tempo recontando a história de Maria Stuart, pois acredito que ela já seja conhecida por muitos. O que interessa antes é analisar os demais aspectos da produção. Conforme aludi no primeiro parágrafo, o filme se desenvolve a partir dos preparativos de Maria para sua execução. A partir de então ela começa a recordar toda a sua vida, do nascimento até a perda do trono. Esse aspecto por si só já destoa “Mary” de outros do gênero, visto que poucos diretores de filmes sobre o período em questão optaram por essa forma cronológica de narrativa. A exceção, nesse caso, fica para “Anne of the Thousand Days” (1969), de Charles Jarrott, que também dirigiu outro longa-metragem sobre a vida da rainha da Escócia, tendo como protagonistas as atrizes Glenda Jackson, no papel de Elizabeth I, e Vanessa Redgrave como Maria Stuart.

Marie de Guise (Joana Preiss) exibe sua filha recém-nascida para a corte.

Marie de Guise (Joana Preiss) exibe sua filha recém-nascida para a corte.

Desde que assisti pela primeira vez ao filme “Mary Queen of Scots”, de 1971, acreditei que nenhum outro do gênero poderia superá-lo. Como até pouco percebi, estava enganado. Redgrave ainda continua sendo, em minha opinião, a melhor atriz que já interpretou a rainha da Escócia no cinema. Contudo, a francesa Camille Rutherford soube muito bem dar conta do recado, não deixando nada a dever para Vanessa. Aliás, ouso a dizer que de 40 anos pra cá, não houve melhor interpretação de Maria Stuart que a dela. Ao longo das cenas do filme, o telespectador que já teve algum contato com a obra de Stefan Zweig poderá identificar na atuação de Camille a mesma intensidade com a qual aquele autor descreveu a rainha da Escócia. No entender de Zweig, Maria era dada a constantes explosões de humor, variando da alegria à impaciência e mesmo raiva, chegando inclusive a gritar sozinha para extravasar seus sentimentos. Tais características ficaram bastante transparentes no filme. Dá até para sentir o drama da vida de uma mulher que, apesar de rainha, não podia fazer tudo o que queria. Quando se revoltou contra essa situação, pôs em risco sua coroa e a própria vida. Maria Stuart era um espírito livre e como tal ela foi representada.

Não obstante, quando o assunto é aparência física, mais uma vez tenho que reconhecer que Camille Rutherford quase caiu do céu para esse papel. Assim como a personagem original, Camille é alta, maior do que muito dos atores com os quais ela contracena. O telespectador já toma consciência disso na cena do casamento de Maria com Francisco II. Para interpretar o rei doente, foi escolhido o ator Sylvain Levitte. Historicamente falando, sua atuação, apesar das breves aparições, foi bastante acurada, especialmente nos momentos em que o jovem casal tentava consumar o matrimônio, o que não aconteceu graças à enfermidade e nervosismo por parte do noivo.  Durante essa fase, a linguagem usada na gravação foi o francês. Já nas cenas rodadas na Escócia, a língua falada pelos atores é o inglês. Esse, acredito, foi um dos grandes acertos da produção. Sendo assim, não foi à toa que escolheram uma atriz francesa que sabe falar inglês para o papel principal. A pronúncia de Camille é carregada de sotaque, da mesma forma como a de Maria. Tendo crescido na corte dos Valois, a rainha era de fato muito mais francesa do que escocesa. Isso fica ainda mais evidente no filme ao contrastarmos os modos da soberana frente ao de seus súditos.

David Rizzio (Mehdi Dehbi) e seu teatro de fantoches, com as bonecas de Elizabeth I e Maria Stuart.

David Rizzio (Mehdi Dehbi) e seu teatro de fantoches, com as bonecas de Elizabeth I e Maria Stuart.

Além de Sylvain Levitte, outro membro do elenco que pouco aparece é Joana Preiss, atriz que interpreta a mãe de Maria Stuart, Marie de Guise. No entanto, fiquei feliz por observar que incluíram esse personagem na trama, embora sua participação se restrinja mais ao início, nos primeiros anos de vida da rainha. Outros personagens, como Catarina de Médici, esposa do rei Henrique II, simplesmente foram cortados pela produção, apesar de sua importância na história original. Por outro lado, existe mais uma personagem que, embora não possua uma atriz que a interprete, está presente no enredo do começo ao fim: Elizabeth I. A história não registra um encontro com as duas soberanas, de modo que para preencher essa lacuna alguns escritores como Friedrich Von Schiller e o já citado diretor Charles Jarrott providenciaram uma entrevista (fictícia) entre elas. Em “Mary Queen of Scots” (2013), porém, tal cena não chega a se concretizar, embora a imagem de Elizabeth esteja presente durante todo o tempo, seja através dos retratos da monarca enviados à sua prima através de diplomatas (todos verídicos, vale ressaltar), das cartas enviadas por Maria, ou mesmo por meio do teatro de fantoches que o músico e depois conselheiro David Rizzio promove para entreter a corte, com bonecas das duas rainhas contracenando juntas.

Por falar em Rizzio, o ator escolhido para interpretá-lo foi Mehdi Dehbi, que apesar de ser moreno (enquanto David não era), soube muito bem incorporar o papel. Mas daí a exigir que todos os atores e atrizes correspondam fisicamente com os personagens originais já é demasiada exigência. É o que podemos perceber com os atores destacados para dar vida aos outros dois maridos de Maria. Comecemos com Lorde Darnley: por trás dele está ninguém menos que Aneurin Barnard, famoso por interpretar Ricardo III na série de TV baseada no romance de Philippa Gregory, “The White Queen” (2013). Aneurin não se parece nem um pouco com os retratos do seu personagem, mas sua atuação foi magnífica. O mesmo tipo de ciúme, egoísmo e egocentrismo que um dia fora observado em Darnley transparece através de Barnard. Não obstante, o que dizer do truculento James Hepburn, Lorde Bothwell, terceiro e último esposo de Maria? Dificilmente alguém imaginaria um ator como Sean Biggerstaff num papel como esse. Contudo, ele surpreende o telespectador ao encarnar o mesmo temperamento agressivo de Bothwell. A química entre ele e Camille Rutherford é muito intensa e também violenta (com direito a algumas cenas “quentes”), da mesma forma como Zweig descreveu a relação entre Maria Stuart e seu último marido.

Aneurin Barnard (à esquerda) como Lorde Darnley e Sean Biggerstaff (à direita) como Lorde Bothwell.

Aneurin Barnard (à esquerda) como Lorde Darnley e Sean Biggerstaff (à direita) como Lorde Bothwell.

O terceiro casamento entre a rainha da Escócia nunca foi bem aceito pelos seus súditos e contribuiu de forma decisiva para a sua queda. O filme retrata James Hepburn tal como a historiografia constrói o personagem: um homem mais preocupado com si mesmo do que com sua esposa. Sobre isso, há pouco o que discutir. Contudo, para não dizer que “Mary Queen of Scots” (2013) é um filme totalmente fiel, há apenas um aspecto que poderia ser aperfeiçoado: os figurinos. O designe das roupas, especialmente as peças masculinas, está correto, mas as femininas, como as da rainha, não apresentaram um pouco daquele exagero de detalhes que era a marca do gosto luxuoso daquelas pessoas. Alguns dos vestidos usados por Camille são bastante simples para uma mulher que não se arrumava com modéstia. Outros modelos, entretanto, ficaram bem ilustrativos, como os trajes de viúva de Maria e o vestido usado na cena da execução. Um aspecto que gostei de observar no filme foi o destaque que a produção deu para as roupas de montaria usadas pela soberana. Diferentemente dos trajes femininos, Maria usava roupas masculinas, por serem mais práticas, e montava com uma perna de cada lado do cavalo, a despeito das outras damas que usavam uma cela especial que lhes possibilitava sentarem de lado.

Após o término do filme, que dura cerca de 120 minutos, a impressão que fica no indivíduo é a de que a esperança de assistir a produções factualmente precisas não está morta. “Mary Queen of Scots” (2013) é a prova de que um drama histórico não precisa apresentar uma versão diferente dos registros apenas para cativar o público, pois o enredo original é interessante o suficiente para prender a atenção do telespectador. Como bem demonstra o enredo, a Inglaterra daquele período foi sacudida pela existência de duas rainhas que, apesar de residirem próximas, jamais se viram pessoalmente. Elizabeth era o grande fascínio de Maria e ao mesmo tempo seu oposto. Enquanto a soberana inglesa abdicou de sua vida pessoal em prol do Estado, a rainha da Escócia quis ser monarca e mulher ao mesmo tempo. Ao tomar nas mãos as rédeas do próprio destino, sem querer perdeu tudo aquilo que por nascimento lhe havia sido destinado: sua coroa; seu casamento; o filho; a vida. A história de Maria Stuart termina quando sua liberdade é tomada. Só a morte poderia resgata-la de sua prisão, devolvendo a autonomia de seu espírito indomado e foi isso o que aconteceu.  Com efeito, ela provou que de fato no seu fim estava seu começo e enquanto sua lenda for contada, seja através do cinema ou da literatura, ela sempre renascerá; mais viva e fascinante do que em gerações passadas.

Confira abaixo o trailer de “Mary Queen of Scots” (2013):

Para assistir ao filme online (sem legenda) Clique aqui!

5 comentários sobre ““Em meu fim está meu começo”: a genialidade por trás de “Mary Queen of Scots” (2013)

  1. Vou ver este filme espero que seja realmente bom. Eu estou simplesmente encantada com Mary. Ultimamente tenho pesquisado muito sobre ela e toda sua vida fascinante… É difícil acreditar que ela viveu neste mundo e a mataram em público. To com vontade de conhecer e a Escócia e França só pra tentar imaginar um pouquinho o que foi que ela viveu, pq pra mim é tipo surreal a vida dessa mulher. Ahh

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  2. Descrição magistral do filme, que ainda vou assistir. Isso porque no último parágrafo o autor(Renato) mostra como conhece a saga apaixonante dessa rainha singular.

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