No século XIX, vários romancistas e dramaturgos começaram a pensar o Brasil e a formação de seu povo por meio de uma produção que falasse diretamente acerca da realidade nacional, embora a partir de uma visão idealizada. Dentre os escritores que obtiveram maior relevo, encontra-se José de Alencar, que foi advogado, jornalista, romancista, dramaturgo e político, tendo sido eleito deputado e depois ocupado a pasta de Ministro da Justiça. Em 1857, Alencar escreveu a peça O Demônio Familiar, que pode ser considerara a primeira produção brasileira a colocar um negro como protagonista do enredo, a personagem Pedro, embora caracterizado por uma série de estereótipos. A função de Pedro era, antes de mais nada, arrancar o riso da plateia, com sua linguagem marcada por uma heteroglossia e trejeitos cômicos. Nesse sentido, é interessante perceber como a visão do José de Alencar, homem oriundo da elite imperial brasileira, via a figura do negro escravizado em convívio com as famílias escravistas como um fator que corrompia a moralidade do homem branco.

José de Alencar
Dessa forma, o preconceito racial ia se institucionalizando por meio das artes, da literatura, nos mundos do trabalho e da política, a ponto de muitos setores da sociedade naturalizarem práticas racistas, perpetuando assim hábitos e costumes que, por sua vez, seriam problematizados com maior ênfase em meados do século XX. Quando José de Alencar escreveu O Demônio Familiar, porém, a figura do negro como preguiçoso e trapaceiro era aceita por grande parte do público que tinha poder aquisitivo para frequentar os teatros da corte. Devido ao seu caráter vanguardista, os dramaturgos lançavam ao palco ideias que mais tarde seriam reproduzidas em periódicos e depois passavam a correr de boca em boca. Demoraria quase um século para que personalidades como Abdias do Nascimento, com seu Teatro Experimental do Negro, problematizassem essas representações sobre homens e mulheres negras nas artes dramáticas do país. Até então, as ideias alencarianas, assim como de outros autores de sua geração, era aceita por parte da elite nacional, que não se via como descendente de africanos e preferia reafirmar sua ancestralidade europeia. Lembremos que a perspectiva de que apenas três raças constituíram o povo brasileiro se dilui quando nos confrontamos com o fato da imigração alemã, italiana e dos povos orientais para o Brasil, ocorrida entre os séculos XIX e XX.
Retomando a discussão sobre O Demônio Familiar, após tentar organizar casamentos vantajosos para a família que o mantinha em cativeiro e causar uma verdadeira confusão. A visão do autor quanto à ação da personagem fica expressa na quinta cena do segundo Ato: “Sim. Pedro fez história de negro, enganou senhor. Mas hoje mesmo tudo fica direito. (ALENCAR, 1977, p. 62).” Depois de desfazer a confusão de casais que havia criado, Pedro é “punido” com uma carta de alforria:
EDUARDO – Todos devemos perdoar-nos mutuamente; todos somos culpados por havermos acreditado ou consentido no fato primeiro, que é a causa de tudo isto. O único inocente é aquele que não tem imputação, e que fez apenas uma travessura de criança, levado pelo instinto da amizade. Eu o corrijo, fazendo do autômato um homem; restituo-o à sociedade, porém expulso-o do seio de minha família e fecho-lhe para sempre a porta de minha casa. (A Pedro) Toma: é a tua carta de liberdade, ela será a tua punição de hoje em diante, porque as tuas faltas recairão unicamente sobre ti; porque a moral e a lei de pedirão uma conta severa de tuas ações. Livre, sentirás a necessidade de trabalho honesto e apreciarás os nobres sentimentos que hoje não compreendes. (Pedro beija-lhe a mão) (ALENCAR, 1977, p. 98).
A liberdade de Pedro é concedida através do seu senhor, sem, contudo, romper as relações de gratidão e respeito que este deveria ter para com aquele. A personagem Eduardo associa o menino Pedro ao demônio familiar que atrapalhava o sossego das famílias no mundo antigo, denotando assim a inconveniência de se partilhar a intimidade das famílias brancas com os escravizados domésticos. Nos dizeres de Eduardo: “Quantas vezes não partilha conosco as carícias de nossas mães, os folguedos de nossos irmãos e uma parte das afeições da família! Mas vem um dia, como hoje, em que ele na sua ignorância ou na sua malícia, perturba a paz doméstica” (ALENCAR, 1977, p. 97).

“O Demônio Familiar” – José de Alencar.
Nas análises feitas sobre a produção alencariana, subjaz a questão da escravidão. Enquanto ministro da Justiça, Alencar extinguiu o antigo mercado de escravizados no cais do Valongo e foi o primeiro entre seus colegas dramaturgos a colocar uma personagem negra como protagonista de uma obra, embora redimida pela moralidade do homem branco colonizador, em O Demônio Familiar. A postura do autor diante do tema é muito ambígua. Numa série de sete Cartas a favor da escravidão (2020) – textos políticos compostos no gênero epistolar entre 1867 e 1868, escritos no rastro das pressões internacionais e domésticas para que o Brasil acabasse com a escravidão, principalmente após a abolição do cativeiro nos Estados Unidos – José de Alencar, sob o pseudônimo de Erasmo, defendia para D. Pedro II a necessidade de se manter a Instituição escravocrata até que o Brasil atingisse o estágio de civilização corrente na Europa. Só então, a escravatura deveria ser extinta. Em 1860, ele abordou novamente o tema na peça Mãe, que foi considerada um sucesso de palco. Dessa vez, a protagonista é a escravizada negra Joana.
O enredo de Mãe se passa no ano de 1855. Joana esconde de seu filho, Jorge, nascido através da relação com um homem branco, o segredo de sua maternidade. Sendo filho de uma mulher negra, a protagonista se passa por escravizada de Jorge, para livrá-lo do estigma social e lhe facilitar a entrada na elite intelectual através de um diploma de medicina, permitindo-lhe também arranjar casamento com uma moça branca, Elisa. Segundo Sidney Chalhoub: “Em Alencar, a escravidão é a chave de todo um modo de vida, não necessariamente mau; se ‘as luzes do século’ e circunstâncias políticas específicas exigiam a emancipação, era preciso fazê-la sem comprometer a continuidade do mundo senhorial” (2003, p. 196). Assim, o autor saiu em defesa de uma determinada visão de mundo, na qual senhores e escravizados partilhavam um destino em comum. Na terceira das cartas de Erasmo, ele diz:
Eis um dos resultados mais benéficos do tráfico. Cumpre não esquecer, quando se trata dessa questão importante, que a raça branca, embora reduzisse o africano à condição de mercadoria, nobilitou-o não só pelo contato, como pela transfusão do homem civilizado. A futura civilização da África está aí, nesse fato em embrião (2020, p. 86).
José de Alencar era um conservador tanto nas letras quanto em sua vida política, algo que fiz notável em documentos como As Novas Cartas de Erasmo, citado acima, ou em seus discursos no Parlamento, trabalhados por Sidney Chalhoub e José Murilo de Carvalho[1]. Porém, Machado de Assis, considerava Mãe o melhor trama nacional. Em artigo publicado no Diário do Rio de Janeiro, em 13 de março de 1866, Machado dizia o seguinte:
Vejamos o que é essa mãe. Joana, estando ainda com o seu primeiro senhor, teve um filho que foi perfilhado por um homem que a comprou, apenas nascido o menino. Morreu esse, instituindo o rapaz como seu herdeiro; nada mais fácil a Joana do que descobrir ao moço Jorge o mistério do seu nascimento. Mas então onde estava a heroína? Joana guarda religiosamente o segredo e encerra-se toda na obscuridade da sua abnegação, com receito de que Jorge venha a desmerecer, diante da sociedade, quando se conhecer a condição e a raça de sua mãe. (apud AGUIAR, 1984, p. 163-4).
Embora o autor de Dom Casmurro tendesse a interpretar Joana como uma heroína, por se passar como escravizada de seu próprio filho e não como sua mãe, opinião bem diversa podemos encontrar com Joaquim Nabuco, expressada cerca de 10 anos depois da publicação do comentário de Machado. O filho do senador Nabuco de Araújo era conhecido por se opor publicamente às ideias de Alencar, algo que ficou explícito numa série de artigos publicados no jornal O Globo em 1875, organizados por Afrânio Coutinho na obra A Polêmica Alencar-Nabuco (1978). Na edição de 3 de outubro de 1875, o conhecido abolicionista em coluna intitulada Aos Domingos, disse: “ao escrever Mãe, ele [Alencar] quis ser o criador de um teatro brasileiro, cujo característico ficaria sendo a escravidão; ao fazer O Demônio Familiar, pensou ter nascido com a veia cômica, que aliás falta inteiramente ao seu sistema nervoso” (p. 48). Na sua obra clássica, O Abolicionismo (1883), Joaquim Nabuco discordava abertamente das ideias do autor de Cartas a favor da escravidão:
Porque a escravidão é um peso enorme que atraza o Brazil no seu crescimento em comparação com os outros Estados Sul-Americanos que a não conhecem ; porque, a continuar, esse regimen ha de forçosamente dar em resultado o desmembramento e a ruina do paiz ; porque a conta dos seus prejuizos e lucros cessantes reduz a nada o seu apregoado activo, e importa em uma perda nacional enorme e continua ; porque, somente quando a escravidão houver sido de todo abolida, começará a vida normal do povo, existirá mercado para o trabalho, os indivíduos tomarão o seu verdadeiro nível, as riquezas se tornarão legitimas, a honradez cessará de ser convencional, os elementos de ordem se fundarão sobre a liberdade, e a liberdade deixará de ser um privilégio de classe (1883, p. 115).
Usando o tema da escravidão, Alencar procurava demonstrar a inconveniência do cativeiro doméstico e seus entraves para as famílias brancas, uma vez que os cativos partilhavam da intimidade e dos segredos de seus senhores. Por outro lado, no IV ato de Mãe, Joana se suicida assim que seu segredo é descoberto. Analisando a peça na edição de 24 de outubro de 1875 de O Globo, Joaquim Nabuco dissecava a verdadeira situação de Joana: “tinha sido amante de um homem desprezível, que no drama é tratado por todos com respeito; sabendo que a sua amásia ia dar-lhe um filho, esse miserável comprou-a, em vez de resgatá-la, e deixou a criança nascer escrava; só no ato de batismo reconheceu-a” (1978, p. 110). Após a morte do proprietário de Joana, a escravizada se tornou posse de seu próprio filho. José de Alencar soluciona esse impasse matando a protagonista, permitindo com que Jorge, uma vez livre do estigma social de ser filho de uma mulher escravizada, se casasse com Elisa.
A situação de Joana em Mãe, por sua vez, nos remete ao que Lélia Gonzalez escreveu no capítulo Racismo e sexismo na cultura brasileira, publicado na obra organizada por Heloísa Buarque de Holanda, Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto:
Ao caracterizar a função escrava no sistema produtivo (prestação de bens e serviços) da sociedade escravocrata, Heleieth Saffioti mostra sua articulação com a prestação de serviços sexuais. E por aí ela ressalta que a mulher negra acabou por se converter no “instrumento inconstante que, paulatinamente, minava a ordem estabelecida, quer na sua dimensão econômica, quer na sua dimensão familiar”. Isso porque o senhor acabava por assumir posições antieconômicas, determinadas por sua postura sexual; como houvesse negros que disputava com ele no terreno do amor, partia para a apelação, ou seja, a tortura e a venda das concorrentes (2019, p. 243-4).
Gonzales chama nos chama a atenção para uma disputa de masculinidades brancas e negras em torno do corpo da mulher cativa. Como detinha a posse da escravizada, o senhor de Joana dispôs dela como uma herança que passou dele para seu filho. Primeiramente, Alencar se cala quanto às circunstâncias em que Jorge foi concebido. Por ser lido socialmente como uma pessoa de pele clara, supõe-se que seu pai fosse branco. Em seguida, a identidade de sua mãe é escondida pela própria que, conformada com o cativeiro, aceita a condição de escravizada do próprio filho, permitindo-se ser alugada para pagamento de dívidas contraídas por Jorge.

“Mãe” – José de Alencar
No livro Cultura e Representação (2016), Stuart Hall problematiza a figura de “Sambo”, personagem que aparece na obra A Cabana do Pai Tomás (1852), da escritora norte-americana Harriet Beecher Stowe. Tal como Sambo, as personagens negras em O Demônio Familiar, Mãe e O que é o casamento?, são bastante estereotipadas, ou seja, reduzidas a alguns fundamentos fixados pela natureza, tendo suas características simplificadas, tais como: a fidelidade ao senhor, o entretenimento tolo, a infantilidade e, em alguns casos, a malandragem. Nestas obras, os cativos jamais se voltam com a intenção de fazer maldade contra os brancos, sempre subservientes e estoicos. Dentro dessa interpretação, Pedro, nas palavras do próprio Alencar, seria uma espécie de “Fígaro brasileiro”. Sua linguagem é marcada por uma heteroglossia, misturando diferentes dialetos com o português. Ele é o animador “pastelão” do enredo, criador de histórias mirabolantes. Já com Joana em Mãe, temos o perfil da cativa extremamente devotada à casa dos brancos, com subserviência inquestionável. Mas, tanto em uma quanto na outra peça, as personagens negras são expulsas do seio da família. Pedro por meio de uma carta de alforria e Joana através de sua morte. Dessa forma, o autor delimita as desigualdades de poder, mantendo a ordem social e simbólica do patriarcado.
Nota:
[1] Conforme ressaltado anteriormente, Alencar era a favor de uma educação limitada para as mulheres, que as instruísse apenas no seu papel como esposas e primeiras educadoras dos filhos do casal. Contudo, era contra a extensão da cidadania às eleitores. José Murilo de Carvalho, em Teatro das sombras (2013), observa que “José de Alencar, o mais original pensador da época no que se refere ao sistema eleitoral, preocupado, embora, apesar de conservador, com a ampliação da participação, inclusive para a mulher e o escravo, era contra dar voto ao analfabeto, por ele equiparado ao surdo-mudo, inapto para conhecer o governo e experimentar sua vontade (p. 395).
Referências Bibliográficas:
ALENCAR, José. Teatro Completo. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Teatro, 1977.
______. Cartas a favor da escravidão. 2ª ed. São Paulo: Hedra, 2020.
ALENCASTRO, Luiz Felipe de (Org.). História da vida privada no Brasil: Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro das sombras: a política imperial. 8ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.
CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis: Historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
FARIA, João Roberto (Dir.). História do Teatro Brasileiro, volume I: das origens ao teatro profissional da primeira metade do século XX. São Paulo: Perspectiva, 2012.
HALL, Stuart. Cultura e representação. Tradução de Daniel Miranda e William Oliveira. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio: Apicuri, 2016.
HOLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.
NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. Londres: Typographia de Abraham Kingdon, 1883.