Maria Antonieta e Georgiana de Devonshire: a amizade que revolucionou o século XVIII

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

Duas das personagens mais fascinantes do século XVIII, Maria Antonieta, rainha da França, e Georgiana, duquesa de Devonshire, compartilharam muitos interesses ao longo de suas vidas, para além de terem revolucionado o comportamento feminino de seu tempo. A paixão pela moda, pelas fofocas da corte e por festas as tornou mais do que simples correlatas: elas também foram amigas! Combinação beleza, juventude e riqueza, essas mulheres foram uma verdadeira sensação na sociedade da época. As pessoas queriam saber como elas se vestiam, o que diziam, quais eram seus gostos e preferências. Jornais vendiam dezenas de números às suas custas e bastava apenas uma palavra ou qualquer sinal de favorecimento de sua parte, para que a carreira de algum modista ou dramaturgo deslanchasse. Românticas por natureza, Georgiana e Antonieta mantiveram um afetuoso diálogo, que logo evoluiu para uma amizade íntima, até que a Revolução ceifou a vida da soberana, em 1793. Em muitas ocasiões, a duquesa de Devonshire visitou a esposa de Luís XVI em Versalhes, onde podia ser vista constantemente em sua companhia, desfrutando de seus favores e ostentando os sinais de sua relação fraternal com a soberana.

A duquesa de Devonshire por Thomas Gainsborough (c. 1787).

Nascida Georgiana Spencer, a duquesa de Devonshire era apenas 18 meses mais nova que Maria Antonieta. Em 1774, ela se casou com William Cavendish, quinto duque de Devonshire, um homem bastante retraído, que gostava de viver isolado de tudo e de todos, com uma amante e uma filho ilegítimo escondido no país. Sua personalidade inibida em muito contrastava com a da esposa de 17 anos. Inteligente e frívola, Georgiana desenvolveu um gosto bastante exagerado pela moda, algo que deixava sua mãe, a condessa de Spencer, bastante estarrecida, e acabou por aproxima-la de outra jovem que tinha em comum a mesma sina. Assim como ocorreu com sua amiga inglesa, o casamento de Maria Antonieta com o delfim e depois rei Luís XVI foi um acordo político entre duas famílias. Aos 15 anos, ela foi enviada para a França, onde se deparou com uma corte bastante hostil e com um marido indiferente. Vivaz e irrequieta, a jovem delfina também não demorou a ver em laços, plumas e joias uma válvula de escape para toda aquela situação instável que ela passava em Versalhes. Era esperado tanto dela quanto de Georgiana que produzissem um herdeiro masculino, cujo nascimento cimentaria a união entre suas respectivas famílias.

Maria Antonieta era considerada uma beldade para seu tempo. De pele alva, loira e com olhos azuis, ela chamava muito a atenção quando caminhava pela galeria dos espelhos do palácio de Versalhes. O barão de Besenval notou como havia “algo delicioso no modo como sustenta a cabeça, uma elegância maravilhosa em tudo, fazem com que possa disputar a primazia com outras mais bem dotadas pela natureza e até derrota-las” (FRASER, 2009, p. 145). Constantemente comparada a deusas e ninfas pelos seus admiradores (Madame Campan relacionou a beleza de sua senhora às estátuas clássicas nos jardins de Marly), em 1775 Lady Clermont disse à rainha que ela lembrava bastante a jovem duquesa de Devonshire, o que deixou Antonieta “muito lisonjeada”. Em breve, as duas teriam oportunidade de matar a curiosidade que nutriam uma pela outra. Quando Georgiana e William Cavendish foram convidados a Versalhes, um sentimento de amizade nasceu entre a rainha e a duquesa. Ao longo da estada dos nobres inglesas na corte, elas eram vistas indo para todo lado juntas, na companhia de Yolande de Polignac, ostentando nas vestes lembranças uma da outra. Ao se despedirem, trocaram cachos de cabelo em sinal de afeto.

Com efeito, tanto Maria Antonieta quanto Georgiana de Devonshire gostavam de estar na vanguarda da moda, usando-a como um instrumento de expressão política. A primeira dessas tendências foi o uso do pouf, penteado desenvolvido pela marchand des modes Rose Bertin e pelo cabeleireiro Leonard, que podia chegar a 1m de altura. A rainha e a duquesa chocaram a sociedade exibindo verdadeiras esculturas no topo de suas cabeças, que podiam reproduzir jardins, navios e animais em miniatura. Da Áustria, a imperatriz Maria Teresa admoestava a filha:

Quanta frivolidade! Onde está o amável e generoso coração da arquiduquesa Antonieta? Tudo que vejo é intriga, vil aversão, um espírito de perseguição e humor barato […] Seu sucesso muito precoce e sua companhia de bajuladores sempre me levaram a recear por você, desde aquele inverno em que você se cercou de prazeres e modas ridículas. Essas correrias de um prazer a outro sem o rei e sabendo que ele não as aprecia e que ou a acompanha ou a libera em virtude de sua boa índole […] Onde estão o respeito e a gratidão que você lhe deve por toda a sua bondade? (apud FOREMAN, 2011, p. 63).

O tom das cartas da regente do Sacro Império à sua filha, por sua vez, era bastante semelhante ao que a condessa de Spencer costumava utilizar com Georgiana. Na mesma época em que Maria Teresa escrevia essas linhas, a duquesa recebeu da mãe várias queixas, entre as quais sobre a desatenção que ela devotava ao duque: “Você nada diz [dele] – como ele se distrai e se diverte?” (FOREMAN, 2011, p. 63).

La Reine en Gaulle, por Élisabeth Vigée Le Brun (1783).

Não obstante, a escolha de amizades irresponsáveis parecia ser uma marca no gênio destas duas mulheres. Enquanto Maria Antonieta cobria a duquesa de Polignac de cargos e presentes, angariando assim a antipatia de cortesãos mais velhos, Georgiana desenvolveu uma forte ligação com Mary Graham. Lady Clermont comentou que Mary era um “belo tipo de mulher” e que “a duquesa gosta dela acima de tudo” (FOREMAN, 2011, p. 75). Porém, esse tipo de amizade com fortes traços de coquetismo e demonstrações exageradas de afeto deu lugar para que muitos rumores sobre a sexualidade da rainha da França e da duquesa de Devonshire circulassem entre os meios de fofoca e preenchessem as páginas de libelos. As duas pareciam não dar muita importância para esses comentários, o que as conduziu a um embaraço após o outro, principalmente no caso de Maria Antonieta. Em vez disso, elas preferiram dar seguimento ao processo de revolução na moda feminina, que haviam iniciado juntas. A rainha enviava constantemente sua modista Rose Bertin à Devonshire House, centro do círculo de Georgiana, para passar à amiga dicas e informações sobre roupas e adereços. Quem também começou a frequentar a casa da duquesa foi Yolande de Polignac, que cruzava o canal para levar as últimas fofocas da corte francesa, envolvendo o nome de sua senhora.

Um sinal desse escambo cultural entre a rainha da França e a duquesa de Devonshire foi o uso da gaulle, uma chemise de musselina branca que Maria Antonieta começou a usar no verão de 1780, enquanto passava as tarde no Petit Trianon. O retrato de Antonieta usando uma peça de vestuário tão simples, pintado por Élisabeth-Louise Vigée-Le Brun em 1783, chocou bastante a corte, que achou aquele traje indigno de uma soberana. Enfiada em corpetes de tecido flexível, a roupa era livre de quaisquer outros elementos estruturantes, exceto pela gola de rufos fechada com fitas, mangas bufantes e uma faixa amarrada na cintura. Georgiana recebeu um vestido desses de presente da rainha e acabou popularizando seu uso em toda a Inglaterra. A duquesa causou verdadeiro frisson quando chegou no baile do príncipe de Gales usando musselina branca ornamentada com ramos prateados. “Agora todas as mulheres, dos 15 aos 50 anos e mais […] aparecem em seus vestidos de musselina branca com faixas largas”, publicou a revista Lady’s Magazine. Maria Antonieta e Georgiana também passaram a adotar o uso de um chapéu de palha muito amplo, que era colocado abaixo da testa e inclinado para cima, enfeitado com um laço enorme na aba. Não demorou muito e o Le Magasin des Modes passou a recomendar para sua leitoras o uso do chapeau à la Devonshire.

No dia 2 de novembro de 1785, a rainha completou 30 anos e pediu a Rose Bertin para que suas roupas fossem confeccionadas com mais seriedade. Aos poucos, ela foi abandonando todos os adornos exagerados que a haviam deixado tão famosa. Essa escolha, por sua vez, reflete o estado de espírito da soberana naqueles anos, quando estourou na Europa o escândalo do colar de diamantes, envolvendo seu nome, o da condessa de La Motte, do cardeal de Rohan e de Cagliostro, um charlatão que enganava ricos com seus supostos dons proféticos e que também frequentava o círculo da Devonshire House. A rainha ficou muito abatida. Nem mesmo seus antigos amigos, como Yolande, tinham o poder de agrada-la mais. O embaixador britânico na França, o jovem duque de Dorset, disse que a “Sra. Brown” (querendo dizer Bourbon), como apelidava Antonieta na sua correspondência com Georgiana, estava parecendo “uma velha”. Quando o cardeal de Rohan foi absolvido no caso do colar, ele escreveu:

A senhora B. e eu conversamos muito a respeito deste assunto no outro dia. Aconteceu de eu ter lhe dito que o Parlamento fora justo. O cardeal tinha que ser absolvido. A senhora B. foi de outra opinião, e o achava censurável. Seu preconceito contra ele foi sempre mantido pelo barão de Breteuil, que foi quem guiou a senhora B. em todo esse caso. Agora seus olhos se abriram, e espero em Deus que ela passe a trata-lo com o desprezo que ele merece. Você não faz ideia como a senhora B. ficou prejudicada frente a opinião pública por apoiar um ministro tão tirânico e arrogante (apud HASLIP, 1987, p. 226).

A duquesa de Polignac, por Vigée-Le Brun.

Não só a reputação de Maria Antonieta ficou abalada naqueles anos, como também a de sua amiga, devido à relação extraconjugal mantida pelo seu marido com Lady Elizabeth “Bess” Foster, antiga amiga da duquesa. Rumores envolvendo o próprio nome de Georgiana e o de Charles Gray, político liberal que compartilhava das mesmas tendências que ela, também começaram a correr. Não obstante, em Versalhes se comentava que a rainha tinha um caso com o conde sueco Hans Axel von Fersen, a quem Georgina teve oportunidade de conhecer e disse que “por aqui ele é considerado feio, porque pelo fato de a Sra. B. [Maria Antonieta] gostar dele, esperava-se uma grande beleza. Ele tem olhos encantadores, o semblante mais agradável que pode haver e o ar mais cavalheiresco”. “Graças a Deus, não estou apaixonada por ele”, completou (FOREMAN, 2011, p. 167).

Com efeito, o duque de Dorset dizia a Georgiana que tinha na França nenhum amigo, “exceto a senhora B.” e via com preocupação o descompasso dela frente à situação política que se avizinhava naquele país. Em abril de 1787, quando Charles Alexander Calonne, ministro das Finanças, e Jacques Necker, diretor-geral de Finanças, foram destituídos de seus cargos, o embaixador inglês comentou com a duquesa: “que horrível governo (entre amigos) é este […] julgando pela influência que a Sra. B. tem sobre seu marido, ela sentiu seu poder e influência em risco e livrou-se de seu rival num piscar de olhos” (FOREMAN, 2011, p. 232). A efígie de Calonne foi queimada em praça pública, contendo venenosos ataques à rainha, apelidada então de Madame Déficit. Exilado pelo rei, o antigo ministro se retirou eventualmente para a Inglaterra, somando-se aos inimigos de Maria Antonieta que já viviam por lá. A duquesa de Polignac, por sua vez, também passou a alimentar o ressentimento contra sua soberana, comparecendo aos jantares da embaixada francesa em Londres, onde podia ser vista fazendo severas queixas. “Pobrezinha! Você não sente pena dela?”, escreveu o duque de Dorset à Georgiana. “A senhora B. continua a trata-la com gentileza, mas ela sente no coração que perdeu a confiança da senhora B., e não há atenções que possam consola-la” (HASLIP, 1987, p. 232). Esse tipo de amizade íntima, misturada com intrigas e política de bastidores, era algo irresistível para a duquesa de Devonshire.

Em 27 de julho de 1789, às vésperas da tomada da Bastilha, Georgiana e seu marido, acompanhados de Bess, visitaram Maria Antonieta em Versalhes para um jantar. Naquele mesmo dia, Luís XVI havia se rendido à Assembleia Nacional, a despeito dos constantes esforços da rainha para que o órgão fosse dissolvido. A duquesa achou sua amiga “tristemente transformada”, conforme relatou em carta à mãe. “Ela nos recebeu muito graciosamente, embora muito desanimada com os tempos. Perguntou muito pela senhora e pegou o retrato das crianças e admirou muito”. Georgiana ainda notou que sua amiga estava “lamentavelmente mudada, com a barriga bastante inchada e sem nenhum cabelo, mas ainda tem grande brilho” (FOREMAN, 2011, p. 271). Três dias depois, elas se encontraram novamente num jantar de gala, transcorrido conforme o decoro, apesar da presença do povo invadindo o pátio enquanto era rechaçado pela guarda suíça. Na ocasião da Messe du Roi, Antonieta e Georgiana tiveram um encontro privativo, onde discutiram trivialidades e agiram como se nada estivesse acontecendo. Quando estourou a Revolução, porém, a duquesa whig a descreveu como “o mais grandioso dos eventos”. Aparentemente, ela não achava incongruente ser amiga da rainha e apoiar aqueles que se levantavam contra o poder da coroa.

O duque de Dorset, por Joshua Reynolds.

“Os problemas aqui são indescritíveis”, disse Georgiana em carta ao seu irmão, George. “Os guardas recusam-se a agir, as pessoas estão meio ensandecidas e grande parte dos nobres está dividida da forma mais surpreendente, de modo que as famílias estão prontas para brigar”. Ignorando o perigo que havia nas ruas, a duquesa saia para se encontrar com líderes do chamado lado “patriótico”, como o general La Fayette. “Sou a favor da corte por causa de Madame de Polignac. Eles são violentamente contra” (FOREMAN, 2011, p. 272). A rainha e sua amiga viram-se pela última vez naquele ano no dia 8 de julho, antes dos Devonshire deixarem Paris. Depois disso, Georgiana visitou Maria Antonieta em Saint Cloud em 1792, quando ela esteve na França para dar à luz sua filha com Charles Grey. A rainha, emaciada pela contínua falta de sono e pelo medo, chorou bastante. Do lado de fora dos portões do jardim, uma multidão gritava insultos terríveis contra ela. Levada a julgamento em 14 de outubro de 1793, Maria Antonieta foi condenada à morte pela guilhotina. A duquesa ficou arrasada e comentou sobre o “horror de fazer o filho depor contra ela”, que “foi a coisa que seria de esperar que a mente do homem fosse incapaz” (FRASER, 2009, p. 498). Seus últimos comentários sobre a soberana foram para exaltar “suas respostas, sua inteligência, compostura, grandeza mental que brilharam em duplo esplendor”.

Referências Bibliográficas:

BECKMAN, Jonathan. How to ruin a queen: Marie Antoinette and the diamond necklace affair. Boston: Da Capo Press, 2014.

FRASER, Antonia. Maria Antonieta: biografia. Tradução de Maria Beatriz de Medina. 4ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2009.

FOREMAN, Amanda. Georgiana: duquesa de Devonshire. Tradução de Cristina Paixão Lopes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.

HASLIP, Joan. Maria Antonieta. Tradução de Eduardo Francisco Alves. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1987.

SEWARD, Desmond. Marie Antoinette. New York: St. Martin’s Press, 1981.

WEBER, Caroline. Rainha da moda: como Maria Antonieta se vestiu para a Revolução. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.

2 comentários sobre “Maria Antonieta e Georgiana de Devonshire: a amizade que revolucionou o século XVIII

  1. SE ELA APROVEITASSE A OPORTUNIDADE DE SER RAINHA E DE TER AJUDADO OS MAIS POBRES, ABDICANDO A TODO LUXO, O POVO FICARIA DO LADO DELA, E TALVEZ NEM FOSSE GUILHOTINADA, SE ELA INFLUENCIASSE O REI A AJUDAR OS MAIS NECESSITADOS, TERIA TIDO UM FIM DIFERENTE, MAS TALVEZ POR FALTA DE MATURIDADE, PENDEU PRO LADO FRÍVOLO. COITADA!

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