Por: Renato Drummond Tapioca Neto
Em quatro de Dezembro de 2012 tive a chance de realizar um sonho meu: visitar a cripta no Monumento ao Centenário da Independência (localizada no bairro Ipiranga – SP) e tirar uma fotografia ao lado do túmulo da Imperatriz Leopoldina. Desse dia em diante, perguntei-me como estaria o estado de conservação dos corpos da família imperial, uma vez que as condições físicas do prédio que os abriga eram bastante preocupantes, devido à umidade do local. Sendo assim, foi com espanto e admiração que em fevereiro deste ano pude matar minha curiosidade, ao tomar conhecimento dos resultados obtidos a partir dos estudos da Arqueóloga e Historiadora Valdirene do Carmo Ambiel feitos com os remanescentes humanos de D. Pedro I e de suas duas esposas. Desde então, vinha me dedicando a acompanhar (seja através da televisão, internet ou periódicos) todos os dados que poderia encontrar referentes à autopsia da família imperial, nos mínimos detalhes, extraindo daí informações importantes para compor meus textos. Passei, então, a nutrir esperanças de que um dia a Valdirene pudesse vir a responder algumas perguntas para o Rainhas Trágicas, e eis que meu desejo acabou se tornando realidade: fiz contato com a referida pesquisadora, e de boa vontade ela aceitou conceder uma entrevista para o blog, contando alguns detalhes de sua vida como arqueóloga, seus desafios e recompensas. O resultado desta conversa você confere aqui:
Rainhas Trágicas: Como você observa o desenvolvimento da arqueologia no Brasil?
Valdirene Ambiel: “Existem muitos trabalhos e nomes de arqueólogos que deveriam ser conhecidos, entre eles: Paulo Duarte, Dorath Pinto Uchoa e Margarida Andretta. Estes arqueólogos desenvolveram várias pesquisas interessantes, como no caso do Prof. Dr. Duarte e Prof.ª Dr.ª Dorath em sambaquis. A Prof.ª Andretta participou de escavações fora do Brasil, e é uma das grandes responsáveis por belos trabalhos na Arqueologia histórica. Entretanto, acredito que está na hora destes conhecimentos saírem do mundo das academias. Temos normas governamentais que exigem prospecção arqueológica antes de qualquer grande obra, porém, nossa profissão não é reconhecida. Isso tem que mudar. Arqueólogos são profissionais como qualquer outro. Hoje, a Arqueologia Preventiva é uma realidade levada a sério por muitos profissionais em todo o Brasil. Não há nada de errado em viver da Arqueologia, muito pelo contrário. Nosso trabalho não se resume a períodos pré-históricos, mas também ao passado de cinco minutos atrás, envolvendo pesquisas multi e interdisciplinares. Temos que fazer com que as pessoas conheçam, valorizem e respeitem nosso trabalho”.
Rainhas Trágicas: O que te despertou para essa área?
Valdirene Ambiel: “Tanto a Arqueologia como a História eram meus ‘hobbys’. Gostava muito de ler e assistir documentários sobre o assunto. Mas exatamente pela falta de informações sobre essas áreas, não acreditava que pudesse viver disto. Contudo, tive uma série de problemas com relação às carreiras que busquei. Logo, pensei que ser Historiadora e Arqueóloga poderia ser possível e, para isso, busquei informações sobre os trabalhos junto com profissionais da própria USP. Agora estes meus hobbys são minhas profissões”.
Rainhas Trágicas: A Arqueologia é um campo que estabelece muitas comunicações com outras áreas do conhecimento humano e biológico. Como você avalia a contribuição destes profissionais em suas pesquisas?
Valdirene Ambiel: “Este relacionamento com as outras ciências, inclusive as exatas, sempre depende das informações que se pretende obter, ou seja, das perguntas para que o método possa ser desenvolvido e os demais cientistas possam colaborar de maneira mais efetiva. Como sempre digo como Historiadora e Arqueóloga é claro que consigo ler um documento histórico. Entretanto, será que conseguiria interpretar um boletim médico do século XIX? Acredito que não, por isso passei estes dados para a interpretação de um médico e assim chegarmos a uma conclusão. Sei que as pesquisas que foram feitas no meu trabalho não estão ao alcance de muitos colegas em campo, e o fato de ser aluna de uma instituição como a USP foi fundamental, mas sabemos que temos recursos que poderão ser usados, inclusive pela sociedade como um todo, como foi a experiência com as técnicas de tomografia aplicadas aos três remanescentes humanos, onde hoje sabemos que possuímos mais recursos na identificação de corpos, principalmente após acidentes, como os aéreos”.
Rainhas Trágicas: História e Arqueologia estabelecem uma relação muito profunda. Qual a sua sensação em saber que certos dados coletados a partir de determinada pesquisa arqueológica podem vir a contribuir para uma reescrita do passado?
Valdirene Ambiel: “É comum ligar a Arqueologia à História, porém, ela não é apenas isso. A diferença maior entre ambas é que uma depende de textos e a outra também usa a cultura material. A interpretação de ambos contribui para o conhecimento das ações humanas, seja de um pequeno grupo ou de uma sociedade. São mais abordagens que poderão sugerir novas hipóteses”.
Rainhas Trágicas: Qual foi seu maior desafio como Arqueóloga?
Valdirene Ambiel: “Acredito que tenha sido o respeito para com projeto no Monumento à Independência. Infelizmente, há alguns preconceitos com estes temas e personagens, além de muitos não acreditarem que os despojos do Imperador e das duas Imperatrizes pudessem estar nesse local”.
Rainhas Trágicas: Ficou-se provado que D. Leopoldina não fraturou o fêmur após cair de uma escadaria no Palácio de São Cristóvão, ou que teria falecido em decorrência de uma agressão por parte do marido. Contudo, você acredita que D. Pedro I fosse capaz de cometer atos violentos contra sua consorte?
Valdirene Ambiel: “Gosto de trabalhar com os argumentos que tenho. Não posso provar que D. Pedro I não tenha usado agressões físicas contra a esposa, mesmo porque isso era comum na época, quando a mulher (esposa) era uma propriedade do marido, e infelizmente ainda vemos isso em nossos dias. Porém, sabemos que esta violência, se aconteceu, nunca foi com uma força que pudesse provocar fraturas, inclusive nos dentes, e menos ainda que tenha causado a morte da Imperatriz”.
Rainhas Trágicas: De acordo com a autópsia de D. Leopoldina é possível dizer que ela apresentava os mesmos traços faciais de seus retratos?
Valdirene Ambiel: “Ainda não fizemos exames com este objetivo”.
Rainhas Trágicas: Muitos Historiadores e cronistas costumam dizer que D. Leopoldina não era possuidora de muita beleza. Podemos dizer, então, a partir da análise de seus remanescentes humanos, que ela não tinha atrativos estéticos?
Valdirene Ambiel: “Pessoalmente, eu acredito que a ‘beleza’ é relativa, independente da época. Com base nos dados históricos, sabemos que D. Leopoldina não era uma mulher vaidosa. Mas para mim isso não é só uma questão de opção própria, como também atividades desenvolvidas pela Imperatriz, inclusive sua participação em algumas etapas da expedição científica austríaca pelas matas do Rio de Janeiro, onde ela não poderia usar roupas luxuosas para fazer tais trabalhos. Ela gostava de equitação, que praticava frequentemente com D. Pedro, e a pessoa que conhece o relevo do Rio de Janeiro sabe que seria difícil e muito perigoso montar a cavalo com as duas pernas para um lado, como algumas damas faziam. As próprias irmãs de D. Pedro montavam com uma perna de cada lado para dar mais estabilidade. Então, o uso destas roupas, incluindo chapéus considerados por alguns como ‘pouco femininos’, era também pensado na praticidade do trabalho que ela faria.
“Com relação ao corpo da Imperatriz, é como falei, é cedo para dizer algo, mas é possível que ela não fosse obesa. A obesidade mencionada por alguns registros pode ser em decorrência da sucessão de estados de gestação em um curto período de tempo, como também um outro problema de adaptação ao clima quente do Rio de Janeiro”.
Rainhas Trágicas: Qual foi seu sentimento em estar lado a lado do corpo de uma mulher que tanto contribuiu para o processo de Independência do Brasil?
Valdirene Ambiel: “Fantástico, foi uma fã ao lado da minha maior ídolo! Além da participação no processo de Independência do Brasil, ela foi a responsável pelo início da Ciência em nosso país”.
Rainhas Trágicas: Qual foi sua maior dificuldade, uma vez em contato direto com os remanescentes humanos na Cripta do Monumento ao Centenário da Independência?
Valdirene Ambiel: “Conseguir manter tudo em segredo”.
Rainhas Trágicas: O que você considera como o ponto mais alto de sua pesquisa na Cripta Imperial?
Valdirene Ambiel: “É difícil destacar se foi este ou aquele, mas acredito que estar com D. Leopoldina, D. Pedro e D. Amélia foi sem dúvida o ponto alto”.
Rainhas Trágicas: Sobre D. Amélia de Leuchtenberg, havia algum indício em seus caixões ou vestes de que ela fora Imperatriz do Brasil?
Valdirene Ambiel: “Não. Apenas uma placa fixada no caixão com os títulos dela. Ela foi sepultada como uma mulher viúva, sem nada que identificasse sua origem nobre, como foi seu pedido, um enterro simples”.
Rainhas Trágicas: Há algum tempo foi veiculado na mídia que uma reconstrução facial de D. Pedro I e das Imperatrizes D. Leopoldina e D. Amélia seria feita. Essa informação procede?
Valdirene Ambiel: “Sim. Este estudo faz parte do meu Doutorado, porém, temos muito trabalho a fazer até chegar ao ponto”.
Rainhas Trágicas: Houve participação da Igreja no projeto com os remanescentes humanos de D. Pedro I e das Imperatrizes?
Valdirene Ambiel: “Não, a família Imperial apenas pediu que fosse feita uma pequena cerimônia religiosa no local antes dos trabalhos começarem em cada um dos remanescentes humanos”.
Rainhas Trágicas: Há algum plano para que sua dissertação de mestrado seja publicada?
Valdirene Ambiel: “Sim, e já está sendo visto com o Museu Imperial de Petrópolis, pois será lançado por eles”.
Rainhas Trágicas: Valdirene, quais serão os próximos passos de sua pesquisa?
Valdirene Ambiel: “Meu Doutorado! (risos) A etapa que terminamos foi a de campo, onde colhemos informações que serão processadas em laboratório”.
Rainhas Trágicas: Para além dos trabalhos com arqueologia, que outras experiências você considera significativas em sua vida profissional?
Valdirene Ambiel: “Todas que vivi até hoje me deram força para concluir este trabalho, incluindo o aprendizado com pessoas que conheci neste tempo. Só para citar, fui atleta da Polícia Militar do Estado de São Paulo entre 1986-1999, quando fui amazona R.C. ‘9 de Julho’ (hipismo até 1995) e triatleta, e corretora de fundo da Escola de Educação Física da PMESP. Tentei ser policial militar e não consegui. Também fui estagiária e segurança do Consulado de Mônaco em São Paulo, entre 1988-1994, quando pude ter uma experiência mais direta com a Monarquia.
“Nos anos 2000 tive vários altos e baixos, até que em 2006 fui para a faculdade de História. Tive que enfrentar muitos problemas, principalmente financeiros, para concluir o curso”.
Rainhas Trágicas: Além do período monárquico brasileiro, que outro período da História (Brasil ou Mundial) mais lhe fascina?
Valdirene Ambiel: “Tenho muito respeito e admiração pela revolução de 1932 e pelos nossos pracinhas da Segunda Guerra, infelizmente esquecidos e marginalizados por alguns de nós.
“Mundial, eu queria ser egiptóloga, ou seja, o Egito faraônico me fascina. Também gosto da Revolução Francesa e acho interessante esta ‘releitura’ que esta sendo feita por alguns historiadores. Temos muito que aprender ainda com este tema, embora, os resultados possam não agradar a determinadas pessoas e ideologias”.
Rainhas Trágicas: Que palavras e/ou recomendações você daria para os jovens estudantes de História e Arqueologia do Brasil?
Valdirene Ambiel: “Dedicação, amor pela profissão e respeito por aqueles ‘amigos do passado’ que estamos estudando, afinal, foram seres humanos e tiveram suas vidas como temos as nossas hoje, só que eles não estão mais aqui para se defender”.
Rainhas Trágicas: Valdirene, não temos palavras suficientes para expressar nosso sentimento de gratidão por você ter aceitado responder a algumas perguntas para o portal Rainhas Trágicas. Muito obrigado pela sua disponibilidade e delicadeza para conosco. Gostaríamos de lhe parabenizar pelas suas pesquisas que tanto contribuem para uma reescrita da nossa História, e desejar muito sucesso e felicidade em sua carreira. Grande Abraço!
Valdirene Ambiel: “Muito obrigada pelo apoio e interesse ao meu trabalho. E parabéns pelo trabalho desenvolvido por vocês! No que precisar de mim e eu puder colaborar, podem contar comigo”.
Créditos pela foto: Luiz Roberto Fontes
Bárbaro, esta entrevista, amei de coração ,pois sou também fascinada pela Arqueologia e História. Parabéns a Valdirene Ambiel pelo belo trabalho, revendo nossa História.
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O mais importante que eu considero dentro da Arqueologia, é trazer a verdade sobre a História. Como a nossa no momento, esta sendo .
Parabéns a toda a equipe, a Sra Valdirene Ambiel muito obrigado.
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Olá pessoal parabéns pelo blog e pela reportagem. Descobri no entanto que a descoberta não fora tão inédita assim leiam:
Na reunião da Comissão de Estudos e Pesquisas Históricas (CEPHAS), do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, de 14 de abril de 1982, o então diretor do Museu Imperial de Petrópolis, Lourenço Luiz Lacombe, “…descreveu a cerimônia de entrega ao Brasil dos despojos de nossa segunda Imperatriz D. Amélia de Leuchtenberg (Duquesa de Bragança) e os de sua filha a princesa Maria Amélia. Informou o orador ter surpreendido grandemente a todos os que assistiram à abertura das urnas no Jazigo e Câmara Real do antigo Convento de São Vicente de Fora de Lisboa o fato de ainda estarem intactos, com excelente aparência, apesar do tempo decorrido desde o século passado, os corpos da segunda mulher e da filha do Imperador D. Pedro I.” – Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, nº 337, out-dez 1982, p. 270.
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Obrigada! Fantástica entrevista.
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