A retratista de Maria Antonieta: Élisabeth Vigée Le Brun (1755-1842)

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

Maria Antonieta foi uma das mulheres que mais pousou para pintores na sua época. Em muitos dos seus retratos, a vemos cercada por diversos símbolos monárquicos, uma vez que, como rainha do primeiro trono da Europa, a imagem da soberania francesa deveria estar bem representada em tais quadros. Numa certa manhã de 1783, porém, cansada de toda essa etiqueta da corte de Versalhes, ela resolveu posar usando apenas um simples vestido de musselina branca, um chapéu de palha e segurando nas mãos uma rosa. Conhecido como La Reine em Gaulle, esse retrato expressa bem a fase campestre que a rainha vivia naquele momento, quando passava cada vez mais tempo no seu palacete, o Petit Trianon e provocava a indignação da nobreza, que não via com bons olhos a esposa do rei negligenciar assim os ornamentos reais. Logo, o novo estilo da rainha seria copiado por outras nobres, que também foram retratadas em trajes semelhantes. O talento responsável pela execução da tela em questão, porém, não era masculino. La Reine em Gaulle foi pintado por ninguém menos que Élisabeth Vigée Le Brun, a retratista favorita de Maria Antonieta.

Autorretrato de Élisabeth Vigée Le Brun (1790).

Autorretrato de Élisabeth Vigée Le Brun (1790).

Nascida em 1755, Élisabeth era filha de Louis Vigée, um retratista famoso que a ensinou o que ela precisava saber para se tornar uma boa pintora. Ela começou com pastéis, gênero no qual se destacou ainda em tenra idade. Mais tarde, ela estudou com Pierre Davesne, Gabriel François Doyen e Claude-Joseph Vernet, frequentando também a escola de desenho liderada por Marie-Rosalie Hallé. Naquela época, era quase impensável para qualquer mulher ingressar na Academia de Belas Artes, ou mesmo trabalhar com modelos vivos (especialmente nu-artístico). Élisabeth foi, portanto, uma das primeiras a fazê-lo! Como seu padrasto confiscou sua renda (a mãe se casou novamente em 1768), na adolescência ela tentou viver a partir da renda adquirida a partir da venda dos seus quadros. Mas, de acordo com a lei, os artistas deveriam pertencer a uma corporação e assim que as atividades ilegais de Le Brun foram descobertas, em 1774, seu estúdio foi fechado. Depois disso, ela teve que pleitear uma vaga na Academia de Saint-Luc, que a aceitou. Apesar dos seus 20 anos, a jovem já tinha uma grande quantidade de clientes.

Inicialmente, sua mãe, Jeanne Vigée, sempre a acompanhava durante as sessões de pintura, até que em 1776 Élisabeth se casou com Jean-Baptiste Pierre Le Brun, um pintor mais conhecido como comerciante de artes, vendendo telas de vários mestres antigos em estoque. Assim, sua jovem esposa teve a oportunidade de estudar de perto um quadro de Ticiano, copiando uma de suas séries Danae. Em 1781, Jean-Baptiste a levou numa viagem à Holanda, onde ela descobriu Rubens e admirou o retrato que o artista pintou de Suzanna Lunden, usando um chapéu de palha. Élisabeth analisou atentamente este quadro e tentou reproduzir num autorretrato seu a técnica da sombra clara sobre o rosto que Rubens utilizava. À medida que as demandas iam subindo, a artista foi aumentando progressivamente o preço de suas obras. A fama de seu trabalho se espalhou e chegou ao próprio palácio de Versalhes, sede da monarquia francesa, onde a rainha Maria Antonieta, anos antes, procurava por um novo pintor que conseguisse disfarçar certos traços do seu rosto, notadamente o queixo proeminente dos Habsburgo.

La Reine en Gaulle, por Élisabeth Vigée Le Brun (1783).

La Reine en Gaulle, por Élisabeth Vigée Le Brun (1783).

Na sua biografia da rainha, Marie Antoinette: the Journey (2001), Antonia Fraser esclarece que retratar Maria Antonieta não era tarefa fácil. Devido à alvura de sua pele, muitos pintores sentiam dificuldade em encontrar uma pose adequada para a modelo, de forma que deixasse transparecer com exatidão os seus traços físicos. Élisabeth Vigée Le Brun, contudo, concebeu uma fórmula ideal para isso ao elaborar três poses diferenciadas para a rainha, que lhe permitiam captar sua aparência e disfarçar as imperfeições. Antonieta não só aprovou o trabalho da artista como também a patrocinou. Em pouco tempo, Le Brun seria contratada por outras tantas nobres para pintar seus retratos. Entre elas, estavam a amiga favorita de Maria, a duquesa de Polignac, membros da família real, como Madame Elisabete, e também Madame du Barry, a última amante do finado rei Luís XV. As três foram pintadas em trajes semelhantes ao La Reine em Gaulle. O talento de Élisabeth Vigée Le Brun se tornou conhecido e apreciado tanto dentro quanto fora da França, devido, em parte, ao patrocínio da rainha.

Luís XVI ficou tão encantado com o trabalho de Élisabeth que teria afirmado: “eu não sei nada sobre pintura, mas você me fez gostar disso”. Maria Antonieta adorava posar para ela, visto que Madame Vigée Le Brun, além de talentosa, era também animada e muito comunicativa (duas características que a rainha admirava). Foi dito que as duas, inclusive, cantavam baladas populares juntas. Através de Antonieta, Élisabeth foi introduzida em 1783 na Academia de Pintura, embora seu marido fosse traficante de quadros, o que violava as regras da instituição. Com efeito, sua familiaridade com a rainha também atraiu certas hostilidades, uma vez que a monarca havia caído drasticamente na opinião popular após o caso do colar de diamantes (1785). Para alavancar sua reputação, Maria Antonieta encomendou para a artista um retrato com seus quatro filhos, destinado a ficar exposto na Grande Galeria. A intenção por trás do quadro era passar a todos a imagem da rainha como mãe da França. Foi um desafio e tanto para Élisabeth, que pediu concelhos ao pintor e amigo Jacques-Louis David, o mesmo artista que anos depois faria o último esboço de Antonieta em vida, sendo transportada para a guilhotina.

David aconselhou Élisabeth Vigée Le Brun a se inspirar nos retratos da Sagrada Família para produzir o efeito desejado pela rainha. Na tela, podemos ver Maria Antonieta usando um vestido de seda carmesim, segurando no colo o filho Luís Carlos; à sua direita, a filha mais velha, Maria Teresa; em pé, de frente para a mãe, o delfim Luís José, apontando para um berço vazio onde antes havia sido pintada a princesa Maria Sofia, falecida prematuramente aos onze meses de vida. A preocupação com o retrato foi tanta, que inclusive o próprio vestido que a soberana usava foi tirado do seu guarda-roupas e emprestado a Élisabeth, para que esta o reproduzisse nos mínimos detalhes. Infelizmente, a tela não atingiu o propósito esperado, pois o caso do colar de diamantes ainda estava muito fresco na memória do povo e, embora Maria Antonieta tivesse tomado todo o cuidado para não usar qualquer colar ao posar, atrás dela constava uma peça de mobiliário envolvida em sombras que nada mais era do que um armário de joias. A opinião popular levou isso em consideração e o retrato logo foi tirado de exposição, deixando seu lugar vacante na Grande Galeria.

Maria Antonieta e seus filhos, por Élisabeth Vigée Le Brun (1787).

Maria Antonieta e seus filhos, por Élisabeth Vigée Le Brun (1787).

Em outubro de 1789, quando uma grande multidão da Guarda Nacional trouxe o rei e a família real de volta para Paris, Élisabeth Vigée Le Brun percebeu que aquele mundo em que ela tanto lutou para vencer como mulher e artista estava se desmoronando. Decidida a ir embora, ela tomou uma carruagem apenas sua filha Julie e uma governanta. Partiu para a fronteira italiana, deixando o marido para trás. Enquanto estava no exílio, ela ficou sabendo das últimas novidades da Revolução: a queda da monarquia, a morte de Luís XVI e finalmente a execução de sua patrona, em 16 de outubro de 1793. Nos anos em que passou fora, sua carreira continuou a prosperar. Uma vez em Roma, se encontrou com Ménageot, que encontrou apartamentos para ela na Vila Médici. Muitos dos seus antigos clientes também se encontravam lá e continuaram a encomendar seus trabalhos, permitindo a Élisabeth garantir a renda necessária para seu próprio sustento e o da filha. Aos olhos da aristocracia europeia, ela ainda continuava sendo a retratista de Maria Antonieta, vítima da Revolução Francesa.

Autorretrato de Élisabeth Vigée Le Brun com sua filha (1787).

Autorretrato de Élisabeth Vigée Le Brun com sua filha, Julie (1787).

O trabalho de Élisabeth Vigée Le Brun com a rainha, mesmo após a morte da mesma, lhe rendeu muitos contratos. Em Nápoles, ela foi comissionada pela rainha Maria Carolina, irmã de Antonieta e também foi chamada para pintar um retrato do compositor Giovanni Paisiello, cujo resultado foi elogiado pelo próprio Jacques-Louis David. Depois, ela viajou para Bolonha e se tornou membro das academias de Parma, Florença, Siena, Milão, Mântua e Veneza, o que lhe possibilitou uma melhor compreensão da arte italiana. Num certo momento, Élisabeth chegou a cogitar a possibilidade de voltar para a França, mas então soube das notícias dos massacres de 1792 e de que seu nome havia sido incluído na lista dos exilados renegados. Consequentemente, ela perdeu seus direitos cívicos e suas propriedades em Paris foram confiscadas. Depois da morte de Maria Antonieta, a artista também passou uma temporada na Áustria, terra natal da rainha. Em 1795, depois de já ter passado pela Hungria e pela Alemanha, finalmente ela chegou em São Petersburgo, onde foi recebida pela czarina Catarina II. Em 1800 já estava estabelecida em Moscou.

Durante os treze anos que permaneceu no exílio, a situação da França sofreu uma grande transformação. Os líderes revolucionários haviam caído e agora quem estava no poder era um general, Napoleão Bonaparte. Élisabeth voltou para Paris, mas nem por isso deixou de fazer suas andanças, indo à Londres e à Suíça. Com toda certeza, ela teve uma vida bastante incomum para uma mulher do seu tempo. Antes de morrer, em 1842, já no reinado de Luís Felipe de Orleans, a artista pintou uma apoteose de Maria Antonieta e escreveu suas Memórias, que foram objeto de debate no seu salão literário, frequentado por eminentes figuras, como François-René de Chateaubriand de Honoré de Balzac. Perto do fim, Élisabeth também teve contado com os livros do jovem escritor Victor Hugo. Tendo viajado quase toda a Europa, pulando de cidade em cidade, ela faleceu aos 87 anos. Seu túmulo no cemitério de Louveciennes, próximo de Versalhes, apresenta um interessante epitáfio: “aqui, finalmente, eu descanso”. Hoje, Madame Vigée Le Brun é reconhecida como uma das artistas mais importantes do seu tempo e um conjunto de suas telas foram exibidas pela primeira vez no Grand Palais, em Paris.

Referências Bibliográficas:

FRASER, Antonia. Maria Antonieta. Tradução de Maria Beatriz de Medina. 4ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2009.

LEVER, Evelyne. Maria Antonieta: A última rainha da França. Tradução de S. Duarte. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.

WEBER, Caroline. Rainha da Moda: como Maria Antonieta se vestiu para a Revolução. Tradução de Maria Luiza X. De A. Borges. – Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

ZWEIG, Stefan. Maria Antonieta. Tradução de Medeiros e Albuquerque. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

Sites:

The Guardian – Acesso em 17 de novembro de 2015

Apollo Magazine – Acesso em 17 de novembro de 2015

Tv5 Monde – Acesso em 17 de novembro de 2015

9 comentários sobre “A retratista de Maria Antonieta: Élisabeth Vigée Le Brun (1755-1842)

  1. Amo esse site e entro todos os dias buscando por conhecimento e curiosidades. Não costumo comentar, mas você está de parabéns! Seus textos são envolventes e muito bem escritos, nunca pare de escrever 😉

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    • Para mim é uma verdadeira dádiva ler comentários como esse, Nathália. Essa é a minha maior recompensa pela dedicação ao blog. Muito obrigado pelo interesse. Abraços!

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  2. Oi Renato! Lembra-se de mim da Inês de Castro? Trabalho como voluntário no Museu da Música e temos um optimo retrato da cantora lírica Luísa Todi pintado por L.E.Vigée-Lebrun. Obrigado pela biografia que vai ajudar nas visitas guiada. Loise V.L. e Luísa Todi foram duas das primeiras artistas femininas que ganharam notoriedade europeia e viveram do seu próprio trabalho na 2ª met. do sec. XVIII. Obrigado.

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    • Oi João. Quanto tempo… Fico feliz que o texto tenha ajudado. É maravilhoso saber que uma das maiores retratistas do séc XVIII também pintou uma das maiores cantoras da época.
      Abraços!

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  3. Gostos muito do seu texto, principalmente os escritos sobre a Rainha Maria Antonieta e os que a cercavam. Amo a forma que você escreve! Parabéns pelo blog 👏👏👏

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  4. Parabéns Renato! Mais um texto cativante que descreve muito bem a força de uma mulher batalhadora do século XVIII, que graças ao seu talento artístico e coragem, conseguiu se destacar com maestria e delicadeza, num mundo governado por homens ruins, opressores e machistas. Obrigado e um forte abraço!

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  5. Um pequeno erro no texto mas que não atrapalha a compreensão. A palavra “conselho” está grafada como concelho. Fora isso, foi interessante conhecer a vida desta artista.

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