O universo colorido do filme “Maria Antonieta” (2006)

Produzido pela Columbia Pictures, “Maria Antonieta” pode ser considerado como o maior clássico dos tempos modernos sobre a trajetória do grande ícone da revolução francesa. Obra prima da diretora Sofia Copola (vencedora do oscar de melhor roteiro original por Encontros e Desencontros – 2003), o filme transparece para telas um misto de cores alegres e músicas atuais, que oferecem um contraste interessantíssimo com a atmosfera romântica do século XVIII. O roteiro tem por base o best seller da historiadora inglesa Antonia Fraser “Marie Antoinette, The Journey”, que aborda com riqueza de detalhes os anos iniciais da esposa austríaca do apático delfim Luís Augusto, até seu triste fim na guilhotina de Paris. Todavia, não foi intensão de Sofia dar enfoque na morte dela, mas à sua vida repleta de diversão. Atentemo-nos, pois, a esse ponto, para melhor compreendermos o fascínio e o glamour de ser rainha da França.

Cena da chegada da jovem Delfina Maria Antonieta (Kisten Dunst) a Versalhes.

Cena da chegada da jovem Delfina Maria Antonieta (Kisten Dunst) a Versalhes.

A primeira cena, que se passa em Viena, nos mostra um pouco da vida cotidiana e a realidade de uma princesa de sague real, usada como objeto de trunfo no jogo de interesses e relações estatais. Maria despede-se da Áustria querida e parte para um novo reino, que lhe aguardava muitas surpresas e desavenças. Na pele da jovem, temos a já muito conhecida pelos amantes de filmes dos heróis em quadrinhos, Kirsten Dunst, a famosa Mary Jane da trilogia do “Homem Aranha” (2002 – 2007). Sua escolha fora perfeita para o papel, pois além de ter ascendência alemã, Kirsten possui o mesmo tipo de maxilar que vemos nos retratos de Maria Antonieta, incluindo a desenvoltura e porte régio. Não obstante, conseguiu mostrar a inocência de uma adolescente diante de um mundo perverso e decadente, e com um marido incomum.

A tomada da transferência dos reinos, quando a princesa se despe de todos os ornamentos que pertençam à corte estrangeira, foi praticamente esplêndida: ali vemos uma garota de 14 anos que estava perdida no meio de tantas regras de etiqueta, desnudada na frente de pessoas que nunca vira. Em 1770, Antonieta passou por tudo isso, para seu horror e constrangimento. E embora fosse de boa aparência, parece que o noivo não se impressionou muito. Como Luís Augusto, temos Jason Schwartzman, representando o desinteresse do delfim por demais frivolidades, incluindo uma esposa que nunca tinha visto. A propósito, cabe ressaltar que muitas das falas dos personagens são baseadas em registros históricos, como quando a Delfina agradeceu ao ministro Chuaseul por ter sido o responsável pela sua felicidade, enquanto ele teria respondido: “e da França”.

Cena com casal de herdeiros (Kirsten Dunst e Jason Schwartzman) no frustado leito conjugal.

Cena com casal de herdeiros (Kirsten Dunst e Jason Schwartzman) no frustado leito conjugal.

Da chegada à Versalhes, até a procissão de casamento, observamos pouco diálogo entre as pessoas. No entanto, o peculiar desses primeiros 30 minutos do filme são os cerimonias da corte, como o ritual da vestimenta matinal, em que a Delfina era arrumada pela nobreza, o café da manhã com o jovem Luís, e as missas. Em todos esses momentos salta aos olhos uma grande gama de cortes quentes e em tons pastéis, com flores e enfeites que passam para a mente do telespectador a sensação de estar vendo uma eterna comemoração. Personagens como a condessa de Noialles (Judy Davis), o rei Luís XV (Rip Torn) e sua amante, madame Du Barry (Asia Argento), constituem um aspecto fundamental nesta parte da trama, pois ao lado de mesdames Tias, Vitória e Sofia (Molly Shannon e Shirley Henderson, respectivamente), representam aquele universo pecaminoso e cheio de fofoca e intrigas do qual Maria Antonieta jamais se veria livre.

Como maneira de escapar ao tédio e aos boatos que inventavam a seu respeito, a rainha encontrou na princesa de Lamballe (Mary Nighy) e na duquesa de Polignac (Rose Byrne) excelentes companhias. Das duas, Byrne foi a que melhor se acomodou no papel da divertida duquesa, com seu ar de frescor e piadas indiscretas. Nighy transparece uma desenvoltura muito modesta, tal qual a verdadeira princesa demonstrava, e por isso sua presença não é tão destacada quanto Polignac. Sendo assim, estava formado o trio que abalava as noites de mascaradas parisienses. Foi numa ocasião dessas que a Delfina conheceu Leu Beau Fersen (Jamie Dornan), o conde sueco que, acredita-se, foi seu único amante. Até então, ela e o marido não haviam consumado o casamento, para chacota de todos os súditos que perturbavam a futura rainha com indiretas maldosas, especialmente depois que sua cunhada, a condessa de Provance, deu à luz um filho homem.

Asia Argento como Madame Du Barry, e Rip Torn como Luís XV.

Asia Argento como Madame Du Barry, e Rip Torn como Luís XV.

Sob esse aspecto, é preciso ressaltar alguns dos erros de licença poética que Sofia Copola incluiu no roteiro, mas que não comprometem muito a trama: o irmão de Luís Augusto, o conde Provance, não se casou antes dele e tampouco teve qualquer filho com a mulher. Na verdade foi o conde D’Artois, caçula da família, quem foi o primeiro pai entre os irmãos mais velhos; Maria Antonieta e Luís XVI tiveram ao todo quatro filhos, e não três. O primeiro menino dos dois, Luís José, morreu em 1789, sendo sucedido como herdeiro pelo mais novo, Luís Carlos; a rainha não ganhou de presente o Petit Trianon após o parto de Maria Teresa, mas antes disso; na cena em que a Delfina, a princesa de Lamballe e a duquesa de Polignac estão experimentando roupas novas, nota-se a presença de um par de sapatos azuis da marca All Star (00h55min), talvez inseridos ali como forma de brincadeira.

Sapatos All Star em cena do filme "Maria Antonieta" (2006).

Sapatos All Star em cena do filme “Maria Antonieta” (2006).

Os figurinos, por sua vez, constituem-se num tesouro inestimável, tanto que venceram a categoria no Oscar 2007. Os vestidos em estilo rococó, com suas anquinhas salientes, de tronco justo e em finos tecidos de seda, são a grande atração desse quesito. Os penteados também são fabulosos, principalmente os poufs da rainha, que chegavam a ter um metro de altura. A forma como os cabelos foram empoados, aliados aos trajes, transformam-se em um quadro vivo do século XVIII, de cores saturadas e movimentos enérgicos. Os cenários também demonstram riqueza, sendo um ótimo pano de fundo para as cenas. Em nível de curiosidade, muitas tomadas do filme foram rodadas em partes restritas de Versalhes, porém a mobília não é original, uma vez que a produção não conseguiu permissão para utilizar dos objetos do palácio, tendo que trazer os seus próprios, que, por sua vez, atendem aos designes do período.

Outros aspectos meticulosamente estudados do filme foram a coroação de Luís XVI e a fase campestre de Maria Antonieta, quando ela se recluiu no Trianon para fugir de todo o protocolo da corte. Ali se percebe o abandono do espartilho e a preferência por roupas mais leves e sem grandes adornos, num clima bem pastoril, incluindo representações teatrais no palco do palacete. Até aí tivemos uma excelente impressão da vida privada da rainha, mas como não poderia deixar de serem, as catástrofes da revolução logo se fariam sentir. O filme desmente de forma clara a famosa frase do brioche, assim como mostra a indiferença da soberana às acusações que lhes eram feitas. Com a queda da Bastilha, tivera que mandar seus melhores amigos para longe, a fim de protegê-los. Do grupo que se despede de Antonieta, apenas o conde e a condessa de Provance não deveriam estar ali, pois só fugiram da França em 1791. Nesse momento final da obra, quando dias de luto a fizeram abandonar as cores claras e utilizar com frequência o preto, embargamos numa profunda atmosfera de melancolia.

Cena da família real se protegendo do ataque ao palácio de Versalhes.

Cena da família real se protegendo do ataque ao palácio de Versalhes.

A essa altura, era completamente odiada, tanto pela nobreza, que não mais lhe mostrava a devida reverência, quanto pelo povo (atentar nesse aspecto para as duas óperas do filme: a primeira em que a Delfina é ovacionada pela plateia, e a segunda, quando os convidados da monarca lhe mostram desprezo). Numa das ultimas cenas, confrontamo-nos com a macha das mulheres do mercado, que partiram para Versalhes exigindo a morte de “madame déficit”. Então, numa demonstração de digníssima majestade, a rainha se curva pra todos na sacada do palácio, emudecendo-os com sua atitude. Depois de tantas queixas, a família real é obrigada a se mudar para Paris, dizendo adeus para sempre de seu mundo de contos de fadas. É dessa forma que termina um dos filmes mais imagéticos sobre a mais notória soberana francesa, aludindo acerca dos infortúnios que estavam por vir. Contudo, a escolha de Sofia Copola por não mostra os anos finais da protagonista é bastante esclarecedora. Sua intensão desde o início era fazer um tributo à imagem daquela mulher, sua vida e seus amores. Com toda certeza, ela conseguiu atingir seus objetivos, trazendo à tona um espetáculo de cores e lugares exóticos. “Uma verdadeira festa à memória de Maria Antonieta”.

Renato Drummond Tapioca Neto

Graduando em História – UESC

Confira o trailer de “Maria Antonieta” (2006):

8 comentários sobre “O universo colorido do filme “Maria Antonieta” (2006)

  1. Excelente análise dessa personagem intrigante da História Francesa e Mundial, a qual não tem sido devidamente tratada pela historiografia. Espanta que ainda se lhe atribua a malfadada frase que lhe deu fama. Como se sabe, quem escreveu a frase dos “brioches” foi Rousseau, o qual não afirmou que a referida frase tivesse sido proferida pela Rainha, então criança. Enfim, texto bem escrito. Parabéns pelo blog, aliás. ^^

    Curtido por 1 pessoa

    • Obrigado pelas considerações e pela intervenção feita acerca dessa mulher que até hoje é marcada pela propaganda negativa que lhe foi feita no século XVIII. Esperamos que você retorne sempre. Abraço!

      Curtir

  2. Amo esse filme, um dos meus preferidos! Sofia Copola fez um espetáculo explêndido da Maria Antonieta, e por mais q eu quisesse ver como a Kirsten Dunst se sairia na cena da execução, entendi perfeitamente o intuito da Sofia: mostrar a vida deslimbrante, porém cheia de obstáculos dessa rainha divina.
    O q mais gostei foi o fato de eles terem desmentido a famosa frase “Que comam brioches”, pois essa frase é um dos vários equiívocos que cometem contra Antonieta (fiquei com raiva do meu professor de história que chamou de vagabunda fútil).
    Ótima análise, amei esse site!

    Curtir

    • Muito Obrigado pelo interesse, Camila. Realmente Maria Antonieta foi uma figura muito mal tratada pela História. Felizmente, nessas últimas décadas, se vêm constatando um esforço para resgatá-la desse mundo de interpretações equivocadas. Espero que você retorne sempre. Abraço!

      Curtir

  3. «Ela é como uma princesinha, cujos olhos são olhos são olhos de âmbar. Através das nuvens de musselina ela sorri como uma princesinha» in «Salomé» de Óscar Wilde.

    Curtir

  4. Filme encantador. Ja vi algumas veze e sempre fico encantada. As cores, o figurino, as mesas, a llouça é tudo muito lindo. Uma das cenas que eu acho linda é quando ela, vestindo preto, caminha pelo jardim e a sua silhueta e dos ciprestes que ladeiam o gramado, possuem a mesma forma e são apresentados numa cor escura, traduzindo o luto da morte do filho. Muito harmônica e tocante, essa cena.

    Curtir

Deixe um comentário