Isabel de Castela: a Primeira Grande Rainha da Europa (resenha)

TREMLETT, Giles. Isabel de Castela: a primeira grande rainha da Europa. Tradução de Geni Hirata. Rio de Janeiro: Rocco, 2018.

No século XV, uma princesa espanhola estava disposta a brigar com unhas e dentes pelo seu direito hereditário aos reinos ibéricos de Castela e Leão. Poucos a levavam a sério, uma vez que se acreditava que o marido viesse a assumir as responsabilidades que cabiam à sua jovem esposa. O que aquele conjunto de nobres e cortesãos não sabia, porém, era que dentro da princesa Isabel havia uma mulher determinada a assumir o poder da Coroa na sua plenitude, governando como se homem fosse, embora geralmente relegassem seu gênero a um papel subordinado que ela jamais aceitou. Isabel não foi a primeira e tampouco a última rainha reinante de Castela. Mas, é possível dizer, sem receio de incorrer num julgamento equivocado da figura, que ela se destaca entre as demais pelo conjunto de sua obra. Não é à toa que até hoje ela é reconhecida como a primeira grande rainha da Europa. Embora muitos possam discordar desse título, o fato é que, depois de Isabel, as monarquias europeias assistiram com maior frequência a uma sucessão de reinados prolíficos, cujas figuras de proa eram personalidades do calibre de Elizabeth I da Inglaterra e Catarina II da Rússia. Ou, como disse o historiador Giles Tremlett, “as realizações de Isabel não são apenas notáveis por causa do seu sexo, mas especialmente por ele”.

Giles Tremlett

Jornalista e historiador inglês, Giles Tremlett possui notória produção sobre temas ligados à história da Espanha, durante o período moderno. Formado pela Universidade de Oxford, com passagem pelas Universidades de Barcelona e Lisboa, Tremlett atua como correspondente do jornal The Guardian e da revista The Economist, além de participar de seminários e conferências de outros centros acadêmicos da Europa. Em 2007, ele publicou Ghosts of Spain: Travels Through a Country’s Hidden Pats. Porém, foi com sua biografia de Catarina de Aragão, rainha da Inglaterra, que ele conseguiu renome internacional, ao devolver voz a uma personalidade que vinha sendo um tanto negligenciada pela historiografia inglesa. Foi através de Catherine of Aragon: The Spanish Queen of Henry VIII (2010), que a primeira esposa de Henrique VIII voltou a ser objeto de uma série de livros e romances dedicados à sua vida. Graças a esse ótimo alcance, a obra de Giles Tremlett passou a ser bastante recomendada pela Britsh Spanish Society e pela Historical Society, da Inglaterra. Em 2017, ele foi mais uma vez destaque no mercado editorial por sua biografia de Isabel de Castela, que acaba de ser publicada no Brasil pela editora Rocco, com o subtítulo de “A Primeira Grande Rainha da Europa”.

Com mais de 600 páginas e um acabamento muito bem elaborado, a biografia de Isabel de Castela, traduzida por Geni Hirata, chega num momento bastante oportuno ao mercado editorial brasileiro, quando temas ligados ao empoderamento da mulher estão entre os mais debatidos nas redes sociais e fóruns de discussão acadêmicos. Nesse enquadramento, a história da mulher que liderou um país recém-saído da Idade Média, que transformou uma nação rebelde e indisciplinada numa potência mundial, ganha destaque. Isabel foi um dos primeiros nomes a compor o grupo seleto de algumas das soberanas mais poderosas da história da Europa. Na opinião de Giles Tremlett, “apenas Elizabeth I, da Inglaterra, a arquiduquesa Maria Teresa, da Áustria, Catarina, a Grande, da Rússia (ofuscando uma formidável antecessora, a imperatriz Elizabeth) e a rainha Vitória, do Reino Unido, podem rivalizar com ela, cada qual em sua própria era” (2018, p. 19). O autor, em muitas passagens da obra, deixa explícita sua grande admiração pela biografada, o que já pode ser deduzido pela escolha do subtítulo do livro: “a primeira grande rainha”. Algo que certamente incomodou alguns dos leitores, por emitir um suposto juízo de valor, que, para muitos, seria indigno do trabalho de um historiador.

Isabel I de Castela, por artista desconhecido.

Entretanto, precisamos ressaltar que a biografia de notórias personalidades do passado há muito deixou de ser preocupação dos historiadores. A chamada “biografia histórica”, nos dias de hoje, perpassa pelos ramos da prosopografia, ou seja, o estudo do indivíduo só interessa na medida em este que atinge ao grupo ou aos grupos sociais nos quais o sujeito se inseria. Para se ter um ótimo exemplo disso, basta ler “O Queijo e Os Vermes”, de Carlo Ginzburg, obra considerada responsável por reintroduzir o gênero biográfico na escrita da História. Por outro lado, biografias de personalidades como Isabel de Castela, Henrique VIII, Elizabeth I, Maria Antonieta, Napoleão, Hitler, entre outros, apesar de sua grande aceitação entre o público, atualmente estão mais voltadas para o ramo do jornalismo e a literatura. Aqui, a utilização de títulos como “a história secreta” e “a verdade não dita” são justificáveis enquanto joguetes publicitários, utilizados para atrair a atenção dos leitores. No que se refere ao livro de Tremlett, é preciso ressaltar ainda que, até o final do século XIX, o conceito de grandeza era utilizado para classificar indivíduos dotados “de particularidades que o tornam mais capaz de servir às grandes necessidades sociais de sua época, surgidas sob a influência de causas gerais e particulares”, conforme ressaltou o teórico russo Gueorgui Plekhanov.

Com efeito, a noção de grandeza individual definida por Plekhanov serve para justificar o epíteto de “grande rainha”, que até hoje costuma ser atribuído a Isabel de Castela. O conjunto de sua obra e suas realizações nos permite encaixa-la entre os líderes políticos de maior destaque do período moderno. Para o historiador Hugh Thomas, “não houve na história nenhuma mulher que houvesse suplantado suas realizações”, opinião essa que é aceita por Giles Tremlett na sua obra. Ao longo dos 46 capítulos do livro, o autor desconstrói uma série de impressões equivocadas sobre a história de Isabel. Entre elas, a mais famosa seria a de que se casara por amor com Fernando II de Aragão. Essa narrativa romanceada, surgida muitos anos depois, não reflete a escolha pragmática da jovem ao tomar seu primo como esposo. Aliando-se ao reino de Aragão, a monarca adquiria um poderoso suporte para fazer valer seus direitos ao trono de Castela. Não obstante, a crença de que Isabel foi enganada pelo noivo, que falsificou uma bula papal autorizando aquele casamento em segundo grau de afinidade, também foi refutada pela documentação levantada por Tremlett. Segundo o autor, ela sabia desde o princípio das tramoias do marido.

Isabel de Castela: A Primeira Grande Rainha da Europa (Rocco, 2018)

Entretanto, ao lado da imagem da rainha poderosa, coexiste também a figura da soberana implacável, que condenou vários judeus e árabes à Inquisição, punindo indistintamente seus súditos. Esse aspecto faz com que Isabel até hoje encabece listas sensacionalistas, como uma das mulheres “mais sangrentas” da história, ao lado de sua neta, Maria I da Inglaterra. Além de reducionista, listas como essa sempre pecam por seu viés anacrônico e distorcido. Certamente, a execução em massa de fieis causaria choque à maioria de nós hoje em dia. Porém, no tempo de Isabel, tais práticas eram vistas como corretas pela grande maioria da população. Giles Tremlett esclarece que “limpeza étnica ou religiosa, escravização e intolerância não eram vistas com maus olhos. Podiam, na verdade, ser virtuosas”. Todavia, “mesmo para os parâmetros de sua época, Isabel era considerada severa” (2018, p. 23). Tal faceta do reinado da rainha católica fez com que Maquiavel, defensor de tais atitudes na sua obra máxima, O Príncipe, reagisse com espanto à “crueldade piedosa” praticada na Espanha. Essa leyenda negra, por sua vez, acabou por eclipsar a imagem de uma soberana que lançou as bases do que pode ser considerado o primeiro império global e transformou Castela numa potência dominante na Europa dos séculos XV e XVI.

Isabel I de Castela ainda permanece como uma figura controversa para a contemporaneidade. Ela fez uso da violência para centralizar os poderes da Coroa e reverter o declínio do cristianismo, acreditando sentir a mão de Deus por trás de cada golpe seu. “A aparente calma de Isabel escondia não só uma ferrenha força de vontade, como também um conceito elevado de seu lugar na história e um desejo de fama duradoura que levaram sua ambição muito além das tradicionais fronteiras de Castela”, ressalta Giles Tremlett (2018, p. 24). Desde 1945, quando a editora O Cruzeiro publicou a biografia escrita por Luiz Amador Sanchez, que o mercado editorial brasileiro não recebia uma obra atualizada sobre Isabel. Com as recentes produções midiáticas, séries de TV e filmes, o interesse na sua vida cresceu de forma considerável. Interesse esse que foi alimentado pelas pesquisas na área da História das Mulheres. Por meio de uma linguagem simples e direta, Tremlett apresenta para o leitor a faceta de uma governante que foi mãe, guerreira e rainha. Isabel transcende para a posteridade como um sinônimo de força, determinação e coragem. Numa época em que se considerava seu sexo inapto para governar, ela mostrou ao mundo que as mulheres eram tão capazes de reinar quanto qualquer um dos reis que as precederam.

Renato Drummond Tapioca Neto

Graduado em História – UESC

Mestre em Memória: Linguagem e Sociedade – UESB

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4 comentários sobre “Isabel de Castela: a Primeira Grande Rainha da Europa (resenha)

  1. Adquiri meu exemplar na promoção da Saraiva, estou ansioso para começar a lê-lo assim que terminar com a monumental biografia de Pedro, o Grande.

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