“Queremos o sangue e as tripas da rainha”: a marcha das mulheres contra os soberanos em Versalhes

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

5 de outubro de 1789 foi uma data histórica para a monarquia na França. Desde os tempos do Rei Sol, Luís XIV, que a capital do país havia sido transferida para Versalhes, onde se localizava o palácio homônimo, símbolo do poder da realeza e centro de toda vida luxuosa e decadente da nobreza. Essa situação, contudo, estaria prestes a mudar. A possibilidade de trazer os reis de volta para Paris já era cogitada desde o dia 14 de julho, quando a fortaleza da Bastilha fora atacada e derrubada. O povo havia mostrado aos seus soberanos do que era capaz de fazer. Transferir a capital de Versalhes para Paris era só uma questão de tempo. E o momento havia chegado. O clima de inquietação em Paris havia se concentrado após o jornal L’Ami du Peuple, escrito pelo revolucionário Jean-Paul Marat, ter publicado que, durante um banquete dado no teatro do Palácio de Versalhes para a guarda real, ocorrera uma orgia protagonizada por Maria Antonieta, que deliberadamente teria ordenado aos presentes que atirassem a cocarde tricolor (símbolo da revolução) ao chão e a pisoteassem. Embora a acusação tenha sido vigorosamente negada pelos que estavam presente, foi o bastante para enfurecer o povo, que estava propenso a acreditar em tudo de ruim que era divulgado contra sua rainha.

Marcha das mulheres do mercado sobre Versalhes, em 5 de outubro de 1789.

Quatro dias depois do banquete, numa segunda-feira, a rotina em Versalhes mantinha seus ares de normalidade. A rainha dirigiu-se para o seu palacete, o Petit Trianon. Esse seria o último dia que ela passaria na sua “casa de recreio”. Quanto a Luís XVI, havia ido caçar no bosque acima de Meudon. A caçada parecia estar indo muito bem (o rei abateu oitenta e um animais), quando de Versalhes chegou uma notícia alarmante: uma multidão de mulheres feirantes partira de Paris às 10 horas da manhã em direção ao palácio real, para exigir farinha e/ou trigo dos soberanos, bem como algumas mudanças constitucionais propostas pela Assembleia Nacional. Imediatamente, Luís galopou de volta para casa, chegando lá às três horas da tarde, ao mesmo tempo em que avisava à rainha para que também regressasse. Uma vez a família real reunida, houvera uma série de discussões sobre como deveriam se preparar para receber a multidão que se avizinhava. Segundo a duquesa de Tourzel, nomeada preceptora dos príncipes em julho de 1789 e uma testemunha ocular daqueles eventos:

O Senhor de Saint-Priest, ministro da casa do Rei, aconselhou Sua Majestade a abandonar Versalhes, algo que o soberano parecia disposto a aceitar; mas o referido senhor teve de ausentar-se a fim de acompanhar à abadia de Saint-Cyr a senhora de Saint-Priest, sua esposa, prestes a dar à luz, tendo então o senhor Necker aproveitado a ausência do nobre para lançar no espírito do Rei tantas inquietações sobre essa resolução, bem como sobre a impossibilidade de recolher dinheiro bastante para a subsistência das tropas e das casas reais, que Sua Majestade mudou de opinião (2014, p. 15).

Enquanto as discussões se acaloravam entre Luís XVI e seus ministros acerca da possibilidade de fuga para a família real, as feirantes finalmente chegaram aos portões de Versalhes, atacando os guardas que estavam prontos para atirar, ferindo uns e massacrando outros.

Maria Antonieta, por Elisabeth Vigée Le Brun (1786)

Por volta das seis horas da noite, chegou uma mensagem do general La Fayette, informado de estava levando a Guarda Nacional para controlar a situação, o que deixou a família real um pouco mais tranquila. Cerca de cinco a seis mil mulheres (entre elas, homens disfarçados de mulheres), armadas, penetraram no palácio em hordas, percorrendo seus salões dourados e suntuosamente decorados, a procura do rei e da rainha, que chamavam afrontosamente de “o Padeiro e a Mulher do Padeiro”. Juravam capturar Luís XVI e Maria Antonieta e os trazer de volta a Paris, a fim de garantir maiores provisões de comida. Uma delegação de mulheres finalmente chegou à antecâmara dos aposentos do rei, que estava ainda em conferência com seus ministros. O monarca aceitou receber uma representante delas, para ouvir quais eram suas reivindicações. A porta-voz discursou com veemência sobre a necessidade de pão para o povo de Paris. Após ouvi-la, Luís prometeu às pedintes que elas poderiam levar o quanto conseguissem dos estoques de dois celeiros. Não contente com a palavra do soberano, a mulher exigiu a ordem do rei por escrito, ao que Luís XVI assinou prontamente.

Aos poucos, os ânimos da população foram se amenizando, exceto pela presença de alguns exaltados, como uma certa Luísa Renée, que teria dito querer voltar para Paris “com a cabeça da rainha em sua espada”. Embora Luísa tenha negado essa afirmação mais tarde, já que não possuía qualquer espada, “apenas um cabo de vassoura”, muitas outras mulheres praguejavam contra Maria Antonieta, clamando pelo sangue de sua soberana e afirmando que carregariam suas vísceras em seus aventais de trabalho. Nunca antes a figura de Antonieta como responsável pelas fraquezas e falhas da monarquia ficara mais evidente. Segundo Madame Campan, primeira-dama camareira da rainha:

A insurreição dirigia-se sobretudo à rainha; ainda hoje tremo quando me lembro o que algumas dessas pessoas gritavam enquanto transportavam tabuleiros brancos e diziam que estes se destinavam a receber as entranhas de Maria Antonieta, com as quais iriam depois fabricar insígnias, ao mesmo tempo que não deixavam de proferir as mais obscenas expressões e as mais horríveis ameaças (2008, p. 193).

Preocupada com os acontecimentos daquele dia, a rainha só conseguiu dormir por volta das duas da manhã do dia 6. Ela havia ordenado às suas damas de companhia para que se deitassem também, pois acreditava nada mais recear, uma vez que o general La Fayette lhe prometera controlar a população aglomerada no pátio de Versalhes.

Com efeito, La Fayette entregou à Guarda Nacional, que lhe era fiel, a tarefa de guarnecer os portões externos do Palácio. Os internos, por sua vez, ficaram ao encargo da guarda real, que era pouco numerosa. La Fayette, porém, permanecia confiante, pois “o povo tinha me prometido que ficaria calmo”. Por volta das três da manhã, declarou que iria descansar um pouco e convidou os representantes da Assembleia a fazer o mesmo. Diversos parisienses, bastante cansados da fatigante caminhada, procuraram abrigo em tavernas, estábulos, pátios de mansões, igrejas e sob os toldos dos portões do palácio, muito embora a grande maioria tivesse permanecido na Place d’Armes, diante do castelo. As pessoas bebiam e comiam diante de fogueiras. Até às cinco da manhã, o clima era de calmaria, até que se ouviu o rufar dos tambores e um chamado à ação: várias mulheres notaram que os portões que davam para o Pátio dos Príncipes não se encontravam fechados, assim como os portões que davam para o Pátio da Capela. A multidão começou a penetrar no castelo, bradando contra a rainha, que ainda estava dormindo. Aqueles que tentassem impedir a passagem da turba eram prontamente assassinados. Dois membros da guarda foram massacrados e por fim decapitados. As cabeças foram espetadas em pontas de lanças.

Luís XVI, por Antoine-François Callet (c. 1786).

Dos aposentos de Maria Antonieta, começou a se ouvir uma gritaria que parecia se aproximar cada vez mais. Uma de suas damas abriu as portas da antecâmara e encontrou um guarda bastante ferido e com o rosto ensanguentado. Este gritou para a serviçal: “Senhora, salvai a rainha; querem assassina-la”. De forma frenética, as damas vestiram Maria Antonieta e correram para os aposentos do rei através de uma escada secreta anexa aos aposentos da rainha. Mal Antonieta e suas damas haviam deixado o quarto e o grupo de assaltantes, depois de matar dois guardas, penetrou no recinto e “perfuraram a grande cama da rainha com suas lanças, fosse para garantir que ela não estava ali escondida, fosse como ato simbólico de desafio” (FRASER, 2009, p. 327). O que teriam feito se ali encontrassem Maria Antonieta? Sobre essa questão, podemos apenas conjecturar. A rainha tinha todos os motivos para acreditar que seria morta pelas mãos do povo. Desde o caso do Colar de Diamantes, ela havia se tornado em bode expiatório para todas as coisas ruins que assolavam a França, às quais ela não tinha culpa. Anos mais tarde, sua filha, Maria Teresa, se lembraria da coragem e do sangue-frio de sua mãe nessa ocasião. Paulina de Tourzel, filha da duquesa de Tourzel, também recordou os gestos calmos da soberana: “Não tenha medo, Paulina”, disse Maria Antonieta para sua dama de companhia.

Todavia, se por fora Maria Antonieta pretendia demonstrar serenidade, por dentro era invadida por um terror do qual nunca se recuperaria totalmente. Ao chegar às portas do quarto de Luís XVI, constatou-se que estavam trancadas. “Meus amigos, meus queridos amigos, me salvem”, soluçou a soberana, despertando assim um dos oficiais, que lhe deu passagem para a antecâmara. Ela foi levada à sala de jantar do rei, onde esperaria pela chegada do marido e dos filhos. Com o raiar do dia, a multidão se aglomerou na Praça de Mármore, diante da sacada dos aposentos reais, exigindo a presença do rei. Foi com espanto que alguns receberam a imagem de Luís XVI junto aos filhos e a esposa, a quem se acreditava já estar morta. Logo se ouviram de baixo os gritos “sem crianças, sem crianças”. Imediatamente, o Delfim, Luís Carlos, e Maria Teresa foram tirados da sacada e levados embora. Maria Antonieta, muito assustada, ficou ali, em pé, diante de uma enorme plateia, sem saber se seria alvejada por algum assassino. Nas palavras da duquesa de Tourzel:

A rainha ordenou que os filhos se retirassem e mostrou-se sozinha à varanda. E esse seu ar de grandeza e de coragem heroica, à vista do perigo, fez estremecer toda a gente, impondo-se de tal modo perante a multidão que todos abandonaram instantaneamente os seus sinistros propósitos e, possuídos de grande admiração, gritaram “Viva a Rainha” (2014, p. 21).

Teria a compostura de Antonieta vencido os revoltosos? Nem tanto. Um grito logo se fez mais alto do que todos: “A Paris! A Paris”! Entre a multidão, a duquesa de Tourzel identificou pessoas limpas e bem vestidas, pagas por terceiros para tomarem parte naquele alvoroço. Maria Antonieta suspeitava que o duque de Orleans estivesse envolvido nisso, embora nenhuma prova de sua participação tenha sido encontrada.

A rainha ordenou que os filhos se retirassem e mostrou-se sozinha à varanda. E esse seu ar de grandeza e de coragem heroica, à vista do perigo, fez estremecer toda a gente, impondo-se de tal modo perante a multidão que todos abandonaram instantaneamente os seus sinistros propósitos e, possuídos de grande admiração, gritaram “Viva a Rainha” (2014, p. 21).

Em estado de confusão, Luís XVI caminhava entre seu quarto de dormir e a Sala do Conselho. Saint-Priest implorava para que o rei atendesse à vontade popular, ao que a rainha disse: “Ó monsieur de Saint-Priest, por que não partimos a noite passada!”. “Madame, não é minha culpa”, respondeu o ministro. Depois de muita deliberação, o rei se dirigiu novamente à sacada dos aposentos reais, acompanhado do general La Fayette, e declarou em alto e bom som: “Meus amigos, irei a Paris com minha mulher e meus filhos, confio o que tenho de mais preciso ao amor de meus bons e fieis súditos”. Ditas essas palavras, Luís foi aplaudido pela multidão e louvado com uma salva de mosquetes. Em seguida, deu ordens para a partida da família real, mandando embalar todos os objetos, documentos e joias que levaria consigo. Maria Antonieta distribuiu presentes aos seus mais chegados. Madame Campan se recorda que:

Estive com Sua Majestade antes de sua partida para Paris; a rainha mal conseguia falar; as suas faces estavam inundadas de lágrimas; Sua Majestade deu então o privilégio de me abraçar, ao mesmo tempo em que dava sua mão a beijar ao senhor Campan e nos dizia: “vinde depressa instalar-vos em Paris; pretendo que vos alojeis nas Tulheiras; vinde, não me deixeis; em situações como a presente, os fiéis servidores tornam-se bons amigos; estamos perdidos, talvez nos arrastem para a morte; os reis aprisionados estão sempre perto da morte” (grifo meu) (2008, p. 197).

No começo da tarde, entre meio dia e uma hora, uma enorme procissão partiu pela estrada de Versalhes em direção a Paris. O palácio ficava sob a guarda do conde de La Tour du Pin, enquanto a família real (o rei, a rainha, os filhos, madame Elisabete e madame de Tourzel) era escoltada de volta à antiga capital da França. A multidão vociferava com alegria que estavam levando consigo “o padeiro, a mulher do padeiro e o filho do padeiro” e entoavam canções lascivas sobre a suposta promiscuidade da rainha, fazendo gestos obscenos para ela. Era um dia muito quente, e a viagem seguia a passo lento. “Que cortejo, santo Deus!”, exclamou Luís XVI, ao ver a extensão da comitiva que os acompanhava. À frente da carruagem, surgiam espetadas em lanças duas cabeças dos guardas massacrados na noite anterior. Quando uma das lanças se aproximou da janela da rainha, horrorizada, ela teria gritado: “Alguém afaste esse sans-culotte de mim”. Na opinião de um cronista, a frase dita por Maria Antonieta teria inspirado nos revolucionários o uso das pantalons, grosseiras calças compridas de operários, num gesto de desafio à aristocracia. Ela e sua família chegaram a Paris às dez horas da noite do dia 6, se alojando na antiga residência real, o Palácio das Tulheiras. Nunca mais regressariam a Versalhes. Nos anos que se seguiram, o palácio de Luz erguido um século antes por Luís XIV viveria assombrado pelos fantasmas daqueles que ali viveram, durante os tempos gloriosos da monarquia francesa.

Referências Bibliográficas:

CAMPAN, Madame. Memórias. Tradução de Carlos Vieira da Silva. Lisboa: Aletheia, 2008.

CARLYLE, Thomas. História da Revolução Francesa. Tradução e prefácio de Antônio Ruas. 3ª ed. São Paulo: Melhoramentos, [196-].

FRASER, Antonia. Maria Antonieta. Tradução de Maria Beatriz de Medina. 4ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2009.

LEVER, Evelyne. Maria Antonieta: a última rainha da França. Tradução de S. Duarte. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.

MICHELET, Jules. História da Revolução Francesa: da queda da Bastilha à Festa da Federação. Tradução de Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras/Círculo Do Livro, 1989.

MORIN, Tania Machado. Virtuosas e perigosas: as mulheres na Revolução Francesa. São Paulo: Alameda, 2013.

PRICE, Munro. A queda da monarquia francesa: Luís XVI, Maria Antonieta e o barão de Breteuil. Tradução de Julio Castañon. Rio de Janeiro: Record, 2007.

TOURZEL, Duquesa de. Memórias. Tradução de Carlos Vieira da Silva. Lisboa: Aletheia, 2014.

VINCENT, Bernard. Luís XVI. Tradução de Julia da Rosa Simões. Porto Alegre: L&PM Editores, 2007.

ZWEIG, Stefan. Maria Antonieta: retrato de uma mulher. Tradução de Irene Aron. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

WEBER, Caroline. Rainha da moda: como Maria Antonieta se vestiu para a Revolução. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. – Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

2 comentários sobre ““Queremos o sangue e as tripas da rainha”: a marcha das mulheres contra os soberanos em Versalhes

  1. Conheci o Palais de Versailles: um exagero de luxo e suntuosidade. Enquanto ao povo, viviam na mais absoluta miséria, salvo raríssimas exceções de uma ainda incipiente burguesia que dava sinais de organização e progresso; que se infiltrou nessa massa popular contra os déspotas da monarquia, acabando, finalmente, com ela: a Revolução Francesa, que embasou a moderna democracia francesa – Liberté, Egalité, Fraternité. O governo francês presenteou a América com a Estátua da Liberdade, dentro do mesmo espírito.

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