Por: Renato Drummond Tapioca Neto
Londres, 28 de junho de 1838: às 4 horas da manhã, Alexandrina Vitória de Hannover, rainha aos 19 anos de idade, despertava de seu sono com o troar dos canhões. A artilharia real disparava uma salva de tiros para saudá-la. O motivo de tanto barulho era apenas um: a sua coroação. Não conseguindo dormir novamente, ela permaneceu acordada, ouvindo as vozes da imensa multidão que se juntava ao redor dos muros do palácio. Quando o relógio então marcou 7 horas, ela cedeu à curiosidade e foi até a janela observar o Hyde Park, outrora tão silencioso. Naquele dia, porém, estava apinhado de súditos, soldados e bandas de música. “O Parque oferecia um curioso espetáculo, com o povo que se espalhara pela Constitution Hill, soldados, bandas, etc.”, escreveu a rainha no seu diário. Diante de tamanha demonstração de alegria e afeto, a jovem ficou excitada. Sequer sentiu fome ao ver o farto café que lhe foi apresentado, embora beliscasse alguma coisa ou outra. Afinal, as cerimônias marcadas para a ocasião seriam muito longas.

Trajes usados por Vitória no dia da sua coroação.
Algum tempo depois, sua meia-irmã, Feodora, chegou para ajuda-la a se arrumar. Usando um vestido amarrado à cintura por um cordão com borda de ouro, cujo corte frontal permitia visualizar a anágua de cetim branco adornada com enfeites dourados, que recaia em dobras fartas, formando assim uma longa cauda, completava o traje da jovem rainha um manto de veludo carmesim, debruado com renda dourada e forrado com pele de arminho. Por fim, um diadema de brilhantes dava o toque final à toalete da soberana. Todas as damas da casa da rainha já estavam a postos para o grande cortejo que partiria dali para a Abadia de Westminster. Às 9:30, Vitória entrou num aposento contíguo ao que usara para se vestir. Lá ela se encontrou com seus dois meio-irmãos, Feodora e Charles, juntamente com seu tio, o rei de Hannover, “cuja figura alta e magra refletia-se em estranhas e negras sombras, no soalho brilhante e banhado d sol” (SITWELL, 1946, p. 86).
Quando o relógio apontou 10 horas da manhã, Vitória entrou na carruagem, acomodando-se num assento elevado especialmente para que a pequena monarca, de 1,52 m, pudesse visualizar os seus súditos. Assim que o coche atravessou os portões do palácio, a grande multidão que esperava impaciente desde a madrugada a saudou com vivas e brados de alegria. “As aclamações atingiram enormes proporções, ao surgir o Duque de Wellington, herói nacional, seguido de perto por seu antigo adversário na Península Espanhola e Waterloo, Marshal Soult” (SITWELL, 1946, p. 87). Durante todo o percurso até a Westminster, passando pela Constitution Hill, Piccadilly, St. James Street, através da Trafalgar Square, o povo aplaudia o cortejo sem dar qualquer sinal de cansaço. Como disse Deirdre Shearman, Vitória podia sentir nas faces das pessoas ali reunidas “sua afeição, sua devoção e, mais do que tudo, sua honesta esperança de que a nova rainha se revelasse uma soberana justa e corajosa para o Império Britânico” (1987, p. 8).

Interior da Abadia de Westminster no dia da coroação da rainha Vitória. Tela de John Martin, 1839.
Quando a comitiva finalmente estacionou em Westminster, às 11:30, “entre ensurdecedoras aclamações”, conforme escreveu a jovem rainha no seu diário, ela então ficou deslumbrada com a imponência do lugar: todo o interior da Abadia estava enfeitado com pavilhões dourados e vermelhos que pendiam através de pilares monumentais. O altar, por sua vez, resplandecia em ouro, e diamantes brilhavam nos trajes dos convidados. Segurando as mãos com força e respirando fundo, a jovem atravessou a nave da igreja seguida pelo cortejo real, acompanhada pelas damas que lhe seguravam a cauda do vestido, entre elas Lady Caroline Lennox, Lady Adelaide Paget, Lady Mary Talbot, Lady Fanny Cowper, Lady Wilhelmina Stanhope, Lady Anne Fitzwilliam, Lady Mary Grimston e Lady Louise Jenkinson, todas “ostentando trajos de setim branco, bordados a prata, pequenas guirlandas de flores na cabeça e salpicadas nos ricos vestidos” (SITWELL, 1946, p. 87). Então, com bastante graça e delicadeza, ela se ajoelhou perante o arcebispo da Cantuária, fazendo o juramento de “manter a religião protestante reformada, como estabelece a lei”.
Após ser ungida com os óleos sagrados, Vitória se retirou para a capela de St. Edward, “pequeno e escuro oratório, situado bem atrás do altar da Abadia”, onde deveria se paramentar para a cerimônia da coroação. Removendo o manto vermelho e o diadema, ela vestiu “um traje singular, de uma espécie de linho com renda” coberto por um manto forrado com seda carmesim e renda dourada, bordado a fios de ouro e prata. Em seguida, ela retornou para a Abadia. Conforme nos conta sua biógrafa, Edith Sitwell:
Ao penetrar no recinto, “rodeada por oito damas, semelhantes, em seus vestidos claros e vaporosos, a grandes nuvens prateadas, ela parou, como que presa de súbita emoção e cruzou as mãos”, sentando-se, em seguida, na Cadeira de St. Edward, onde a túnica dalmática lhe foi imposta pelo Lorde Camarista. Chegara o momento supremo, em que a rainha receberia a Coroa, e em que todos os pares do reino e respectivas esposas deveriam também colocar em si mesmos as coroas a que tinham direito (SITWELL, 1946, p. 88).
Ainda de acordo com o relato de Sitwell, no momento em que a rainha se ajoelhou para receber a insígnia real, um raio de sol incidiu sobre ela, fazendo com que sua mãe, a Duquesa de Kent, já bastante emocionada, caísse em lágrimas.

O Arcebispo da Cantuária coloca em Vitória a insígnia real. Enquanto isso, um raio de sol ilumina a silhueta da monarca. Tela de George Hayter (1838).
Com a coroa na cabeça, orbe e cetro na mão, Vitória foi ovacionada por todos os súditos com os brados de “God save the Queen”. A cena foi muito bem registrada pelos pincéis de muitos artistas da época, que contribuíram ainda mais para alimentar o caráter divino ao qual muitos atribuíram à cerimônia. A própria Vitória nos conta em seu diário pessoal que sua entronização, seguida pelas homenagens dos Bispos, Duques e Pares do reino, foi um verdadeiro espetáculo. Contudo, alguns incidentes aconteceram, como o tombo que Lorde Rolle, um homem de quase 90 anos, levou ao tentar subir os degraus do Trono. Felizmente, ele não se machucou, mas o impulso de Vitória no momento da queda foi levantar-se para lhe prestar ajuda. Quando Rolle retornou para cumprimenta-la, a rainha perguntou: – “Não poderei mais ir ao seu encontro?”, então ergueu-se e, descendo dois ou três degraus, impediu que o senhor fizesse uma subida que, para ele, era muito desgastante. Esse gesto por parte da jovem monarca causou grande sensação. “Nada poderia ter causado melhor impressão”, escreveu à sua irmã Mr. Disraeli, um jovem membro do Parlamento.

Detalhe do quadro pintado por Sir George Hayter, retratando Vitória sentada no trono, com a coroa na cabeça e cetro na mão (1838).
Ainda de acordo com o testemunho de Disraeli: “a rainha desempenhou a parte que lhe cabia com grande graça e perfeição, mas não se pode dizer o mesmo dos demais participantes; mostravam-se sempre em dúvida do que viria em seguida, e notava-se claramente a falta dos ensaios necessários”. Um exemplo disso foi o Arcebispo, que atrasava-se invariavelmente. Vitória percebeu que quando ele lhe quis entregar o orbis mundi, este, por sua vez, já se encontrava em seu poder, o que deixou o prelado bastante confuso e hesitante. Terminada a cerimônia, a recém-coroada rainha desceu do trono e, seguida pelos Pares e suas damas, dirigiu-se ao quarto de vestir, onde já lhe esperavam sua mãe, a Duquesa de Kent, as Duquesas de Gloucester e Cambridge, e suas damas. Permaneceram ali por quase uma hora, parte da qual tentando tirar da rainha o anel da coroação, que o Arcebispo colocara no dedo errado e que muito a incomodava. Às 4:30 da tarde, com a coroa na cabeça, orbe e cetro nas mãos, Vitória passou por imensa multidão e tomou a carruagem de volta ao Palácio em meio a cenas de “entusiasmo, alegria e protestos de lealdade verdadeiramente tocantes”, conforme ela mesma escreveu no seu diário.
A impressão que a jovem rainha causou nos seus súditos à medida que a carruagem avançava pelas ruas de Londres foi de arrebatamento, especialmente pela sua mocidade e aspecto infantil. Thomas Carlyle, autor de “História da Revolução Francesa”, foi um dos espectadores da cena e deixou para a posteridade sua opinião sobre a monarca recém-coroada: “Pobre Rainhazinha! Acha-se numa idade em que mal se pode confiar a uma menina a escolha dum chapéu para si mesma; no entanto, uma tarefa lhe foi imposta que até a um homem assustaria”. Uma vez em casa, mal tendo despido os trajes da coroação, a jovem ocupou-se em banhar Dash, o seu cachorro de estimação, de forma bastante alegre e conversando com a baronesa Lehzen, sua governanta. Finalizada a tarefa, era então tempo de se vestir para o jantar de família, marcado para as 8:00, ao qual estavam presentes os tios da rainha, seus irmãos, Lehzen, o Duque de Gloucester, Lorde Surrey e Lorde Melbourne. Ela tomou lugar na mesa entre este último e seu tio, o rei de Hannover. O resto da noite decorreu com bastante alegria e conversas animadas, incluindo uma palestra do Príncipe Charles.

Ilustração da coroa de Vitória, feita por John Martin. A peça existe ainda hoje, embora as pedras tenham sido removidas para adornar a coroa que hoje é usada por outra rainha: Elizabeth II.
Entre a família, Vitória se permitia gracejar sobre quase todos os detalhes da cerimônia da coroação. Disse aos convidados, inclusive, que a coroa era bastante cumprida para sua cabeça e trocou opiniões sobre os vestidos das senhoras. Muito comovido, Lorde Melbourne, então primeiro ministro, lhe disse: “Vossa Majestade deve achar-se muito cansada. Conduziu-se de maneira perfeita, em tudo – nos menores detalhes e com tanta graça! Nesses momentos tornam-se inúteis os conselhos; a pessoa deverá agir espontaneamente”. Ao seu diário, Vitória confidenciou que “ouvir tais palavras dum amigo bondoso e e imparcial como Lorde M., causou-me grande e verdadeiro prazer”. Mais tarde, todos os convidados foram às sacadas do Palácio apreciar os fogos de artifício que foram disparados até ao alvorecer, em homenagem à rainha. Dessa forma findou-se o longo e glorioso dia. Antes das velas se apagarem, a jovem se dedicou ao seu inseparável diário, concluindo que se lembraria daquela data “como a que mais me encheu de orgulho na minha vida”.
Referências Bibliográficas:
MUHLSTEIN, Anka. Vitória: retrato da rainha como moça triste, esposa satisfeita, soberana triunfante, mãe castradora, viúva lastimosa, velha dama misantropa e avó da Europa. Tradução de Maria Lúcia Machado. – São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
SHEARMAN, Deirdre. Rainha Vitória. Tradução de Achille Picchi. – São Paulo: Nova Cultural, 1987.
SITWELL, Edith. Vitória: rainha da Inglaterra. Tradução de Solena Benevides Viana e Jaime de Barros. – Rio de Janeiro: José Olympio, 1946.
STRACHEY, Lytton. Rainha Vitória. Tradução e prefácio de Luciano Trigo. – Rio de Janeiro: Record, 2001.
Ótimo texto! Apesar de serem franceses (Oh heresia!) gosto especialmente de Alexandre, Philippe e de l’Aulnoit, Béatrix, «Victória a Última Rainha», Bertrand Editora, tradução de Fátima Gaspar e Carlos Gaspar.
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Obrigado, João. Não conhecia esse livro que você citou. Vou procurar 😉
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Sempre com ótimos textos! A rainha Vitória foi contemporânea de Dona Maria da Glória, filha de D. Pedro I do Brasil, né? Parece que as duas até se conheceram quando meninas, por ocasião da viagem de D. Maria da Glória à Europa… Acho que isso li num livro de Otávio Tarquínio de Sousa (ótimo livro, por sinal).
Obrigada por nos presentear com tantas informações preciosas! 😉
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As duas foram contemporâneas. Inclusive, Maria da Glória se casou com um parente do príncipe Albert.
Eu que agradeço pelo seu interesse, Jossi.
Abraços.
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