A rainha consorte: da retidão feminil à transgressão dos padrões sociais.

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

Por anos, a figura da mulher fora interpretada de maneira inferiorizada, simplesmente por se considerar o gênero como uma fraqueza indissolúvel à sua condição. A Bíblia foi um dos veículos mais responsáveis por endossar essa imagética de submissão, ao trazer o personagem de Eva como tendo sido feita da costela de Adão. Não obstante, ela carregava o estigma do pecado original (a companheira do primeiro homem feito à imagem de Deus, também fora responsável pela expulsão deste do paraíso). Essa concepção dos fatos ficara tão marcada nas mentes das pessoas, de várias épocas do passado da humanidade, que não raro se têm registros de situações em que integrantes do sexo feminino estavam subordinadas a indivíduos menos preparados, simplesmente por um padrão machista imposto pela sociedade.  Maria, que era virgem e mãe ao mesmo tempo, tornara-se um modelo de castidade ideal e ao mesmo tempo inatingível para muitas seguidoras das sagradas escrituras, para quem os prazeres do sexo foram proibidos. O ato da traição passa, então, a ser muito mal visto por parte delas, do que da parte deles, algo que ainda se verifica nos dias atuais.

Todavia, tal prerrogativa não era exclusiva às classes menos abastadas da população, mas prioritariamente à nobreza. Durante toda a idade média e moderna, o principal dever das soberanas, além de gerar uma prole considerável de sucessores à coroa, era zelar pela reputação de seus maridos, serem piedosas e não interferirem em assuntos de estados, por se considerar que atitudes como essas eram demasiado complexas para sua mente tida como incapaz. Contudo, a História nos trouxe grandes exemplos de rainhas consortes que, longe de permanecerem caladas, souberam usar os meios de que dispunham para obterem destaque perante os súditos de seus maridos. Um bom exemplo disso é Maria Antonieta de França, que, entre 1770 a 1789, se apropriou de elementos da moda para influenciar toda uma geração. Seu vestuário, por sua vez, falou muito mais alto que as medidas políticas frustradas do apático Luís XVI. Como ícone de uma época, ela mostrou que poderia se expressar de uma maneira criativa e diferenciada, ao passo que os ministros do rei a queriam longe do governo, graças à sua identidade austríaca, sempre vista por muitos com desconfiança.

As seis mulhers de Henrique VIII

As seis mulheres de Henrique VIII: Catarina de Aragão, Ana Bolena, Jane Seymour, Ana de Cleves, Katherine Howard e Katherine Parr, respectivamente.

O caso de Maria Antonieta serve-nos perfeitamente para exemplificar como se davam os casamentos concretizados para selar uma aliança diplomática entre dois reinos distintos. Nesse termo, ela estava ali para representar seu país nos domínios do marino, podendo agir inclusive como embaixadora, e, em alguns casos, como agente secreta. Em 1501, quando Catarina de Aragão (1485-1536) viajou para a Inglaterra, ela não estava ali apenas para se casar com o príncipe Arthur e gerar filhos, mas para fazer valer os interesses da Espanha em solo estrangeiro. O caso da infanta de Castela é bastante interessante, pois ali temos uma garota de 15 anos que descendia de um dos mais poderosos reinos da Europa, e cuja união marital seria de fundamental importância para solidificar as bases da Dinastia Tudor, ainda recém-instaurada naqueles tempos. Por outo lado, Se a virgem era o ideal de recato,  as rainhas consortes fariam de tudo para aproximarem-se o máximo possível desse padrão, não deixando qualquer margem para se levantarem suspeitas ligadas ao seu comportamento.

Entretanto, muitas delas passaram aos arautos da História como transgressoras dessa condição de retidão feminil: é o caso de Katherine Howard (morta em 1542), a esposa supostamente adúltera de Henrique VIII. Muito do que se sabe acerca da vida dessa jovem provém do inquérito que fora instaurado para julgar seu comportamento “lascivo”. Acusada em 1541 de trair o rei com Francis Deeram e Thomas Culpeper, sua cabeça rolou diante de uma plateia pouco complacente à situação em que se encontrava. Katherine, assim como as outras mulheres de Henrique, são perfeitamente adequadas para exemplificar o papel que cabia à rainha consorte. Cada uma delas representou suas funções de forma diferenciada, ora submissas à vontade do esposo, como Jane Seymour (1507?-1537) e Ana de Cleves (1515-1557), ora dedicadas à erudição, como Catarina de Aragão, Ana Bolena (1501?-1536) e Katherine Parr (1512-1548). No caso da mãe de Elizabeth I, observamos uma plebeia se erguendo da multidão e conquistando por meios próprios um lugar no topo da pirâmide social. O fato de existirem mulheres, que em pleno outono da idade média lutavam pelos seus ideais, é mais um exemplo de como aquele contexto oferecia brechas para que elas se erguessem, embora poucas.

A imagística da sagrada família exercia um grande poder na mente dos cristãos. No entanto, diferentemente da mãe de Jesus Cristo, uma soberana jamais amamentava sua prole, cabendo a uma ama de leite o dever de alimentar o rebento real. Segundo David Loades:

A rainha que era também mãe de um herdeiro varão era duplamente afortunada. Não tinha só cumprido seu dever mais elevado – tinha também aumentado a autoridade do marido a um nível incalculável e demonstrado que Deus via favoravelmente o seu governo (LOADES, 2010, pag. 14).

Por esse motivo é que vemos Henrique VIII brigar tanto por um filho homem, tomando para isso medidas desesperadas, como romper com a igreja, casando-se sucessivas vezes. Todavia, a soberana não podia esperar que tomasse as rédeas da educação dos herdeiros homens. Poucos foram os casos em que se isso se verificou, pois em verdade o príncipe, a partir do dia em que nascia, passava a ser propriedade do estado. Ana d’Áustria (1601-1666), esposa de Luís XIII da França e mãe do futuro Luís XIV, contrariou esse costume, educando ela mesma seus dois filhos.

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Vitral representando a Sagrada Família.

Quando acontecia de não vir o sucessor varão, então a linhagem passava às filhas, se existissem. Na França, tal possibilidade não era cogitada, pois devido à lei sálica, que datava do século XIV, uma mulher não podia assumir o trono. Na eventualidade de o rei morrer sem sucessores legítimos, então a coroa passava para o parente mais próximo, como aconteceu com Francisco I, da casa de Valois, em 1515. Luís XII, mesmo tendo conseguido uma dispensa que autorizava seu casamento com outra mulher, no intuito de produzir filhos, morreu tendo apenas duas filhas. Uma das princesas, Claudia, era casada com o pretendente ao trono, Francisco, o que dava mais credibilidade à reivindicação dele à coroa. Situação parecida ocorreu em Inglaterra no ano de 1485, com o fim da guerra das duas rosas, quando Isabel de York e Henrique VII de Inglaterra selam a paz através do matrimônio. Neste último exemplo, a união dos dois serviu para por um término às disputas entre a casa de Lancaster (que ele era membro) e a casa de York (da qual ela provinha).

No seio da aristocracia, era comum que as filhas herdassem algumas das posses do pai quando este morria sem sucessores homens, porém os títulos de nobreza eram confiscados pela coroa. Todavia, quando este nobre era um monarca, sua esposa não perdia o título, sendo conhecida a partir de então como rainha viúva, ou se seu filho se tornasse rei, rainha mãe. Exerciam também muita influência no governo dos mesmos e eram geralmente respeitadas pelos súditos. No caso da minoridade do herdeiro, atuavam como regentes e inclusive assumiam grandes decisões de Estado, como aconteceu com Ana d’Áustria, mãe de Luís XIV. Outro episódio comum é termos consortes administrando os domínios dos maridos, quando estes saíam em campanha militar, deixando-as encarregadas de assumir o controle da máquina estatal. Henrique VIII fez isso com duas de suas esposas: primeiro com Catarina de Aragão (em 1513) e depois com Katherine Parr (em 1545). Nos dois casos, elas se saíram esplendidamente bem-sucedidas, trazendo honra e prestígio para o governo do monarca.

No Brasil, nossas três imperatrizes representam três tipologias distintas de consorte reais. Com D. Leopoldina (1797-1826), vemos uma mulher mais bem instruída que seu marido aconselhando-o a tomar medidas que beneficiassem o país. Porém, a infidelidade conjugal deste fora um duro golpe na autoestima da filha dos césares, fazendo com que ela lamentasse em cartas à família o destino que Deus lhe destinara. D. Amélia de Leuchtenberg (1512-1873), por sua vez, era a representação da soberana vaidosa e confiante de seus atributos físicos. Fez o possível para que a marquesa de Santos fosse expulsa da corte, como também conseguiu garantir maior fidelidade de D. Pedro I. Já D. Teresa Cristina (1822-1889) era o tipo de mulher passiva e submissa que a bíblia pregava. Fora importante na vida de D. Pedro II, no entanto rivalizava a atenção deste com a condessa de Barral, amante do mesmo.

Imperatrizes do Brasil

As imperatrizes consorte do Brasil: D. Leopoldina, D. Amélia e D. Teresa Cristina, respectivamente.

De mulher recatada, que tomava a virgem como ideal inalcançável, as rainhas consortes passaram a usar os elementos de que dispunham para se promoverem, na medida em que obtinham espaço para isso. Em todos os exemplos aqui citados, observamos que independente de qualquer coisa, seu papel fundamental era o de engravidar e garantir a continuidade da linhagem do esposo, podendo haver consequências diversificadas caso essa tarefa não fosse cumprida, de acordo com as leis de cada país. Era também uma conselheira e um exemplo para as outras mulheres. Sua conduta deveria ser impecável, ou do contrário sofreria as consequências, como aconteceu com Ana Bolena e Katherine Howard, ambas acusadas de adultério e decapitadas. Seu dever era zelar pelo marido e deveriam se empenhar o máximo possível nesta tarefa, pois pela suposta inferioridade do sexo, estavam sujeitas a vários tipos de acusação e culpa, como, por exemplo, quando abortavam uma criança. Hoje em dia, restam-nos poucos exemplos de rainhas consorte. É interessante perceber que, embora o fato de terem filhos homens não mais represente uma tarefa sacramental, pelo menos uma característica de sua condição ainda permanece: a de prezar pela honra do monarca.

Referências Bibliográficas:

FRASER, Antonia. As Seis Mulheres de Henrique VIII. Tradução de Luiz Carlos Do Nascimento E Silva. 2ª edição. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010

LOADES, David. As Rainhas Tudor – o poder no feminino em Inglaterra (séculos XV – XVII). Tradução de Paulo Mendes. – Portugal: Caleidoscópio, 2010.

PRIORE, Mary Del. A carne e o sangue: A imperatriz D. Leopoldina, D. Pedro I e Domitila, a marquesa de Santos. – Rio de Janeiro: Rocco, 2012.

WEBER, Caroline. Rainha da Moda: como Maria Antonieta se vestiu para a Revolução. Tradução de Maria Luiza X. De A. Borges. 1ª edição. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

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