“Eu fiz muitas coisas boas em meus dias” | A religiosidade de Ana Bolena – Parte II (final)

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

Uma vez coroada rainha da Inglaterra, Ana Bolena aparentemente exerceu significativa influência sobre a pequena facção protestante na corte, liderada por Thomas Cromwell e Thomas Cranmer. A elevação deste último ao posto de arcebispo de Canterbury, por sua vez, fora um passo decisivo no processo de separação entre o rei e sua primeira esposa, Catarina de Aragão. É possível que Ana tenha interferido de maneira relevante na nomeação de Cranmer, que na época se encontrava em missão diplomática junto a Carlos V, em Nuremberg. De volta à Inglaterra, o clérigo trouxe na sua bagagem um profundo conhecimento e apego pelas doutrinas luteranas, tornando-se com o tempo defensor e promotor da Reforma da Igreja no país. Em 1534, por exemplo, ele emitira licenças a clérigos protestantes para que se juntassem à sua arquidiocese, atitude tão audaciosa que, se levarmos em consideração a timidez e a prudência de caráter do mesmo, provavelmente só terá sido tomada com a certeza da proteção da rainha (ABREU, 2003, p. 228).

Thomas Cranmer, arcebispo de Canterbury, atribuído a Gerlach Flicke.

Thomas Cranmer, arcebispo de Canterbury, atribuído a Gerlach Flicke.

Com o apoio de Ana Bolena e Henrique VIII, Cranmer convidara o luterano Hugh Latimer para oficiar os serviços religiosos da Quaresma. O rei teria ficado tão bem impressionado com a eloquência de seu novo capelão que, mais tarde, o nomeara bispo de Worcester. Na opinião do martirologista John Foxe, a elevação de Latimer fora feita graças à intervenção da rainha, provavelmente em colaboração com Thomas Cromwell. No ano de 1533, Ana conseguira a nomeação de outro luterano, Matthew Parker, para seu capelão, assim como distribuíra proteção e apoio a outros clérigos protestantes (ABREU, 2003, p. 228). Ainda de acordo com Foxe, o luteranismo de Ana Bolena era conhecido por todo o reino, sendo ela “uma especial entusiasta e ajudante de todos aqueles que professavam o evangelho de cristo, tanto daqueles mais eruditos quanto dos menos instruídos”(apud ABREU, 2003, p. 227). É possível que haja algum exagero na fala de Foxe, visto que sua propagação de um forte protestantismo por parte de Ana Bolena teria como finalidade estimular a filha desta, Elizabeth, a perseverar na Reforma da Igreja em Inglaterra.

Segundo G. W. Bernard (2010, p. 94), um dos aspectos mais interessantes no testemunho de Foxe é que para ele, uma mulher tão religiosa e cheia de virtudes como Ana Bolena não poderia ser considera culpada pelos adultérios de que ela fora acusada em 1536. William Latymer, um dos capelães de Ana, argumenta que a rainha ajudava a todos aqueles que sofriam de perseguição, demonstrando “constante afeição para com os pobres evangelistas” (apud BERNARD, 2010, p. 92). Devemos a Latymer a famosa história de que em certa ocasião a rainha teria repreendido uma de suas damas, Madge Shelton, por escrever em seu livro de orações “poesias tolas”, assim como se escandalizara com o rei pelas notas de amor que ele deixara no mesmo livro. Entretanto, argumenta Eric Ives (2010, p. 279), tanto Latymer quanto Foxe estavam mais preocupados em promover a imagem de Ana como uma espécie de “boa matriarca” da reforma e, portanto, devemos olhar para o testemunho deles com alguma reserva.

William Tyndale, por artista desconhecido.

William Tyndale, por artista desconhecido.

Todavia, um campo muito mais seguro para se avaliar a religiosidade de Ana Bolena (como dito na primeira parte deste texto) consiste no interesse dela pelas Sagradas Escrituras em vernáculo. O próprio Latymer escrevera que ela era “muito experiente na língua francesa, exercitando-se continuamente na leitura da Bíblia em francês assim como em outros trabalhos do mesmo efeito”. Ela possuía, inclusive, uma edição de 1534, feita em Antuérpia, da tradução da Bíblia em francês por Lefèvre, em 1528. Ainda de acordo como William Latymer, Ana constantemente discutia as Sagradas Escrituras como o rei, o que não é impossível, apesar de Latymer ser a nossa única fonte sobre isso (BERNARD, 2010, p. 96). Contudo, um valioso suporte acerca do interesse da rainha pela Bíblia em vernáculo provém de uma carta que ela escrevera em favor Richard Hermon, um mercador e cidadão de Antuérpia, que reclamava por ter sido privado de suas relações com a Inglaterra apenas por importar para o país algumas cópias do Novo Testamento em inglês, ainda nos tempos em que o Cardeal Wolsey era chanceler do reino (BERNARD, 2010, p. 97-98).

O mais interessante na atitude de Herman, é que ele poderia ter pedido pela ajuda de Cranmer ou Cromwell, mas preferira apelar à rainha, que, por sua vez, atendera ao seu pedido. Esse fato corrobora a tese de ABREU (2003, p. 229) de que o favor de Ana Bolena a tais protestantes fora de grande relevância para a penetração do luteranismo em solo inglês. Em 1534, Richard Herman já estava liberto de sua prisão imposta por Wolsey, e se encontrava em Londres a exigir indenização pelos danos que a sua detenção lhe causou. Foi por essa época também que William Tyndale estava ocupado com a impressão de uma edição melhorada de sua tradução do Novo Testamento e tomou conhecimento do caso de Herman. Sentindo-se tocado pela atuação da rainha inglesa, especialmente por saber que uma mulher como ela apreciava seu trabalho, além de proteger e apoiar tantos outros que sofriam perseguições por suas crenças, Tyndale decidira presentear a sua patrona com um exemplar de luxo da sua nova edição do Novo Testamento (ABREU, 2003, p. 230).

Edição do Novo Testamento de William Tyndale dedicada a Ana Bolena.

Edição do Novo Testamento de William Tyndale dedicada a Ana Bolena.

A cópia que William Tyndale encomendara para Ana Bolena era impressa em pergaminho, recheada de ricas ilustrações e encadernada em marroquim azul. Na capa do livro, lê-se em letras grandes e douradas em fundo vermelho: Anne Regina Angliae (Ana Rainha da Inglaterra). Para ABREU (2003, p. 230-231) é provável que tivesse sido com o apoio da rainha que o Novo Testamento de Tyndale fora publicado pela primeira vez na Inglaterra, em 1536. Apesar de esse ano coincidir exatamente com o da execução da soberana, o processo de edição da obra se iniciara muito antes, quando ela ainda estava em posse de seus poderes. Vale ressaltar também que a tradução das Sagradas Escrituras por Tyndale era a melhor feita até então, tendo servido como base para traduções posteriores da Bíblia, ainda durante o reinado de Henrique VIII.

Retha Warnicke (1989, p. 151) ressalta que como rainha, Ana Bolena exigia de suas damas um comportamento exemplar. Elas deveriam comparecer aos sermões diariamente e se reportar a um livro de devoção, exposto em seus aposentos, que continha algumas orações e salmos em inglês. Teria sido este o cenário para a história contada por Latymer, sobre Ana discutindo com sua prima e dama de companhia, Madge Shelton, por rabiscar alguns versos no referido livro. Embora no passado Ana Bolena tivesse sido uma amante de poesias, especialmente das de Thomas Wyatt, sua elevação ao posto de rainha alterou essa situação. Ela queria seguir os passos de sua antecessora, Catarina de Aragão, assim como da rainha de Navarra e da princesa Renata da França, duquesa de Ferrara, e se tornar um exemplo de mulher cristã para toda a Europa. Uma vez que os governantes daquele tempo acreditavam que a segurança da dinastia dependia da bênção de Deus e do suporte que davam à Igreja, então Ana teria razões mais do que políticas para enfatizar sua devoção em assuntos espirituais (WARNICKE, 1989, p. 152).

Ana Bolena, por artista desconhecido.

Ana Bolena, por artista desconhecido.

Apesar de tudo o que fora até aqui exposto, devemos classificar Ana Bolena como luterana? Por causa de sua posição favorável à tradução da Bíblia, mais tarde muitos reformadores a descreveram como protestante (WARNICKE, 1989, p. 153). As evidências para tal afirmação existem, mas ainda não são conclusivas quanto a esse aspecto. Entretanto, se Ana não era protestante, em seu breve reinado era demonstrara grande afinidade por aqueles que eram. Já para Karen Lindsey (1995, p. 100), ela não era um catalisador na reforma inglesa, mas sim um elemento dentro dessa equação.  Durante a ascenção da princesa Elizabeth ao trono em 1558, muitas famílias passaram a alegar que a sua ascendência protestante provinha de sua família materna, especialmente por parte de sua mãe e seu tio, George. Entretanto, na era elisabetana, a comunidade cristã já se encontrava consolidada em dois campos distintos: protestante e católico. No período henriquino, por sua vez, “muitos dos ímpetos reformadores de indivíduos que desafiavam o poder do Papa e defendiam a Bíblia em vernáculo não significavam uma completa conversão à Fé Protestante” (ABREU, 2003, p. 233).

Nesse caso, Ana Bolena poderia ter sido uma “reformadora” da Igreja Católica, sem ser uma completa defensora da Reforma Protestante. Na opinião de Eric Ives (2010, p. 287), é mais seguro classifica-la como uma evangelista nos moldes do humanismo francês. Segundo o martirologista John Foxe e William Latymer, a rainha fora vítima de um complô papista para derrubá-la do trono. Contudo, não devemos resumir a queda de Ana Bolena em maio de 1536 a questões religiosas, quando na verdade uma série de outros fatores interferiu na questão, principalmente a sucessão da coroa, haja vista que ela não fora capaz de gerar um herdeiro varão para o trono.   Em seu último discurso, proferido de cima do patíbulo em 19 de maio de 1536, também podemos perceber alguma evidência de suas convicções religiosas, mas existem tantas versões do mesmo que, por sua vez, acabam tornando essa numa fonte inconclusiva. Por fim, deixo a palavra final para a própria rainha, extraída de uma conversa da mesma com William Kingston enquanto se encontrava presa na Torre: “eu deverei ir para o céu, pois eu fiz coisas muito boas em meus dias” (BERNARD, 2010, p. 106).

Referências Bibliográficas:

ABREU, Maria Zina Gonçalves de. A reforma da Igreja em Inglaterra: acção feminina, protestantismo e democratização política e dos sexos. – Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003.

BERNARD, G.W. Anne Boleyn: fatal attractions. – London: Yale University Press, 2010.

IVES, Eric W. The life and death of Anne Boleyn: ‘the most happy’. – United Kingdom: Blackwell Publishing, 2010.

LINDSEY, Karen. Divorced, Beheaded, Survived: A Feminist Reinterpretation of the Wives of Henry VIII. – Cambridge, M A: Da Capo Press, 1995.

WARNICKE, Retha M. The rise and fall of Anne Boleyn: family politics at the court of Henry VIII.UK: Cambridge University Press, 1989.

Um comentário sobre ““Eu fiz muitas coisas boas em meus dias” | A religiosidade de Ana Bolena – Parte II (final)

  1. Se não podemos definir sequer a religiosidade do próprio Henrique VIII, não seria muito diferente com Ana Bolena. Ela foi a rainha do Ato de Supremacia.

    Logo, eu imaginaria ela muito alinhada às posições do rei. Fiquei surpreso em ver que ela teve algumas posições mais avançadas, inclusive na defesa de autênticos reformadores que estavam sob perseguição.
    Podemos, então, admitir sua crença como protestante, ao menos na forma como se delineava o protestantismo em sua época.

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