Por: Giovanna Rodrigues
Durante décadas, a tzarina Alexandra Feodorovna foi considerada por muitos como uma monarca extremamente reclusa em sua vida doméstica e indiferente às necessidades de seus súditos. Contudo, desde os seus primeiros anos como soberana, Alexandra estava empenhada em seguir o exemplo e legado de sua mãe, a princesa Alice do Reino Unido, nas obras filantrópicas. Com a chegada da Primeira Guerra Mundial, tanto ela quanto suas quatro filhas – Olga, Tatiana, Maria e Anastásia – desempenharam um admirável trabalho nas causas sociais.

Da esquerda para a direita: Tatiana, Olga e a tzarina Alexandra como enfermeiras da Cruz Vermelha, acompanhadas de Anastásia e Maria.
Na sua juventude, a jovem princesa Alix de Hesse se envolvia em obras de caridade, visitando intuições de ensino, hospitais e dando patrocínio para variadas ações sociais. Tal costume foi levado para seu novo lar, a Rússia. Agora conhecida como tzarina Alexandra Feodorovna, era necessário que esta desempenhasse um trabalho social visível para seus súditos. Ela deveria agir como uma verdadeira matushka (mãezinha) do povo russo.
Com efeito, uma das primeiras tentativas da jovem imperatriz nas causas sociais foi formar um grupo de tricô na cidade de São Petersburgo, com a finalidade de reunir participantes para fazer cerca de três agasalhos para distribuir aos necessitados, mas infelizmente a ideia foi rejeitada pelas damas da elite. Após se estabelecer no novo país, Alexandra iniciou seu trabalho nas obras filantrópicas com grande determinação e sinceridade, tomando a frente de vários projetos, sendo eles: instituições de ensino para futuras empregadas domésticas e outra para preparar amas-secas em Tsárskoe Selo; inaugurações de creches para mães que trabalhavam, asilos para os mais desprovidos; ciente da imensa mortalidade infantil em seu país e das questões envolvendo o cuidado de grávidas, ela organizou o envio de parteiras para as áreas mais distantes e rurais.
Durante suas estadias na Criméia, a tzarina se mostrava determinada a continuar com suas obras de caridade, sendo que muitas das vezes ela incluía as próprias filhas. Ela fazia visitas aos sanatórios de tuberculose que ela própria patrocinava (sendo que ela mesma arcava com todos os gastos, tirando de sua própria fortuna). Um dos hospitais que as quatro filhas da tzarina se envolviam era o Sanatório Alexandre III (fundado em 1901 por Alexandra), localizado em Ialta, que amparava cerca de 460 pacientes. A tzarina desejava que suas filhas dessem continuação aos trabalhos sociais da família, algo que causou um pouco de preocupação por parte da corte. Em uma ocasião, uma dama da tzarina se mostrou um tanto preocupada de ver a imperatriz permitindo que as meninas tivessem contato com pacientes em último estágio de consumpção. A resposta de Alexandra foi simples e clara: “Acho que não vai fazer mal às crianças, mas tenho certeza de que faria mal aos doentes se achassem que minhas filhas estão com medo do contágio” (apud RAPPAPORT, 2016, p.194).

A tzarina Alexandra transformou os palácios reais em hospitais para os soldados feridos na guerra.
Uma das ações mais conhecidas da tzarina Alexandra foi O Dia da Flor Branca, um evento de caridade para a Liga Antituberculose e os sanatórios de Ialta, que era festejado no dia 23 de abril (Dia de São Jorge). Outro grande evento organizado pela tzarina foi o Grande Bazar de Caridade, com a finalidade de auxiliar os sanatórios. Anualmente, a tzarina fazia questão de colocar suas filhas para tricotar, costurar, bordar, pintar aquarelas e produzir objetos para vender. Os lucros obtidos no bazar de Alexandra foram enormes, sendo que foi possível arrecadar milhares de rublos para as obras de caridade.
Com a chegada da Primeira Guerra Mundial, a tzarina e suas filhas iriam realizar algo nunca feito pelas mulheres da família real durante quase 300 anos de dinastia Romanov: foram voluntarias como enfermeiras!
No início de setembro de 1914, a tzarina, acompanhada de Olga e Tatiana, iniciou seu treinamento na Cruz Vermelha, adotando os títulos de Irmã Romanova, número 1, 2 e 3 (respectivamente). As três mulheres abandonaram seus vestidos elegantes e suas pérolas pelos simples uniformes de enfermeiras. Essa nova experiência foi uma oportunidade para Alexandra estar mais perto de seus súditos. Para ela em particular era também uma fonte de consolo e até uma certa felicidade poder cuidar dos feridos, conforme ela mesma disse: “Para alguns, pode parecer desnecessário que eu faça isso, mas…precisam tanto de ajuda e todas as mãos são úteis” (apud MASSIE, 2014, p.340), e que “Cuidar dos feridos é meu consolo” (apud RAPPAPORT, 2016, p.258).
Já para suas quatro filhas – Olga, Tatiana, Maria e Anastásia –, foi como uma janela que se abria para conhecer um novo mundo. Andes disso, as meninas viviam em uma espécie de “gaiola dourada”, sendo muito protegidas por sua mãe, com poucos amigos e não conheciam quase nada da realidade para além dos muros do palácio. Nunca viram de fato o sofrimento e com Guerra tudo isso mudou rapidamente.
O treinamento durou cerca de dois meses e durante esse período as três mulheres observaram cirurgias e prestavam auxílio. Inicialmente, as primeiras tarefas que lhes foram dadas era a aprender a fazer curativos. As irmãs mais velhas tinham diariamente a função de trocar os curativos de cerca de quatro pacientes (ao longo da guerra esse número foi aumentando), ferver fios de seda para os pontos, preparar chumaços de algodão, enrolar bandagens, auxiliar a esterilizar e a preparar os instrumentos para as cirurgias. Durante o treinamento, tanto a mãe quanto as filhas tiveram aulas sobre teoria médica com a Dra. Gedroits (aristocrata lituana que atuou como médica-chefe no Hospital da Corte e foi uma das primeiras mulheres médicas qualificadas na Rússia).

Foto digitalmente colorida da grã-duquesa Tatiana, acompanha de soldados russos hospitalizados.
As três mulheres Romanov entraram nesse cenário sem serem poupadas de nada. Era um trabalho de enfermagem verdadeiro e nele havia todo tipo de dor e sofrimento. Segundo um relato de Anna Vyrubova (dama da imperatriz que também se voluntariou como enfermeira): podemos ter uma noção básica da atuação de Alexandra nesse meio:
Vi a imperatriz da Rússia na sala de cirurgia…segurando cones de éter, manuseando instrumentos esterilizados, assistindo às mais difíceis operações, recebendo das mãos de cirurgiões atarefados pernas e braços amputados, removendo curativos sangrentos e até bichados, suportando todas as cenas, cheiros e agonias do mais horrível de todos os lugares, um hospital militar no meio da guerra (apud MASSIE, 2014, p.341).
Sendo assim, Alexandra estava determinada a cumprir seu papel como matushka do povo nesse momento crítico e lamentável. A tzarina ficou à frente de inúmeros hospitais, sendo que muitos deles ela bancava os custos tirando recursos de sua fortuna pessoal. O Palácio de Catarina serviu como um hospital e as demais propriedades de Tsarskoe Selo também tiveram esse destino. Além disso, a tzarina possuía uma preocupação a mais: o conforto espiritual dos soldados nos campos de batalha, trabalhando muito para a distribuição de centenas de bíblias e saltérios para as tropas.
A tzarina escrevia e detalhava sua nova rotina ao seu amado esposo, Nicolau II, agora longe de casa. Em uma das inúmeras cartas a seu marido, datada de 21 de outubro de 1914, ela relata a Nicolau seus primeiros passos como enfermeira:
Pela primeira vez, raspei a perna de um soldado perto e em volta da ferida…três operações, três dedos foram retirados porque gangrenaram e estavam muito podres… Meu nariz está cheio de cheiros medonhos de feridas gangrenadas. […] Fui ver o ferimento do nosso porta-bandeira- horrível, ossos esmagados, sofreu horrivelmente durante a imobilização, mas não disse uma palavra, só ficou pálido, com o suor escorrendo pela face e pelo rosto. (apud MASSIE, 2014, p.341).
Tanto Olga como Tatiana tiveram papéis públicos escolhidos por sua mãe (além do trabalho como enfermeiras). Olga foi vice-presidente do Conselho Supremo para o Cuidado das Famílias dos Soldados e das Famílias dos Feridos e Mortos. Já Tatiana foi muito bem-sucedida em seu trabalho, tendo envolvimento ativo com trabalhos para promover abrigos, lares para grávidas carentes, orfanatos e cozinhas de sopão.

As grã-duquesas Olga e Tatiana Romanov como enfermeiras na Primeira Guerra Mundial.
As irmãs mais novas, Maria e Anastásia, também tiveram seus papeis durante a guerra. Sua mãe lhes deu a missão de visitar diariamente seu hospital em Feódorovski Gorodok (próximo ao Palácio de Alexandre). Durante as visitas, as jovens conversavam com os feridos, se distraiam com jogos de tabuleiros e ajudavam os pacientes a aprender a ler e a escrever cartas. Em uma das cartas a seu pai, Anastásia descreve um pouco do sofrimento que presenciou:
Meu precioso papai! Parabéns pela vitória. Ontem visitamos o trem- hospital Alexei. Vimos muitos feridos. Três morreram na viagem- dois deles oficiais[…]. Ferimentos muitos graves, de tal forma que dentro de dois dias o soldado deve morrer; eles estão gemendo. Depois fomos ao grande Hospital da Corte: mamãe e nossas irmãs ficaram fazendo curativos e Maria e eu andamos entre os feridos, conversamos com todos, um deles me mostrou um grande fragmento de metralha que tiraram de sua perna, junto de um grande pedaço [de carne]. Todos disseram que querem voltar e se vingar do inimigo. (apud RAPPAPORT, 2016, p. 267-8).
Como podemos perceber, essa experiência contribuiu muito para o amadurecimento e crescimento das quatro meninas. Pela primeira vez, elas puderam sentir a realidade em suas vidas. A tzarina Alexandra, por sua vez, se entregou completamente a esse serviço. Antes era uma mulher triste, parada e vivia com seus muitos problemas físicos e psicológicos, mas com o início do trabalho como enfermeira ela se tornou uma pessoa ativa, gentil e deixava seus problemas de lado para ajudar os feridos. Com a abdicação de Nicolau, todos os hospitais, amigos feitos e lembranças agradáveis ficariam para trás e as cinco mulheres jamais voltariam a ter essa experiência.
Referências Bibliográficas:
MASSIE, Robert. K. Nicolau e Alexandra: o relato clássico da queda da dinastia Romanov. Tradução de Angela Lobo de Andrade. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.
RAPPAPORT, Helen. As irmãs Romanov: as vidas das filhas do último tsar. Tradução de Cássio de Arantes Leite. Rio de Janeiro: Objetiva, 2016.
_.Os últimos dias dos Romanov. Tradução de Luís Henrique Valdetaro. Rio de Janeiro: Record, 2020.
Texto revisado por Renato Drummond Tapioca Neto
Parabens Renato, por mais esse trabalho de pesquisa, muito triste a trajetoria dos Romanov, gostei em conhecer um pouco mais.
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Obrigado, Hind. Mas o crédito dessa vez vai todo para a leitora Giovanna Rodrigues. Ela que escreveu esse ótimo texto!
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