A esposa relegada: Maria Leszczyńska, a rainha polonesa da França – Parte I

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

O reino da França foi, ao longo dos séculos, o palco para algumas das mulheres mais ilustres da história. Amantes ou rainhas, nobres ou burguesas, ativistas políticas, artistas, escritoras, pensadoras, prostitutas, bruxas, elas ofereceram brilho a um período que até hoje exerce verdadeiro fascínio para muitos de nós. Seja nas câmaras do Louvre, passeando pelos jardins das Tulheiras ou desfilando pelos salões dourados de Versalhes, podemos encontrar personagens icônicas, tais como Catarina de Médicis e sua arquirrival, Diana de Poitiers; a irreverente Margarida de Valois, mais conhecida pelo apelido carinhoso de Margot; a talentosa Madame de Sévigné e seu time de précieuses, mulheres versadas na arte da conversação e com uma opinião nada modesta sobre as coisas do mundo, das quais se destaca Madame de Maintenon, a esposa secreta de Luís XIV. Isso para não falar de outras famosasmaitresses reais, como Madame de Montespan, Madame de Pompadour e Madame Du Barry. Completando esse time de superestrelas, temos as soberanas Maria de Médicis, Ana de Áustria e, principalmente, Maria Antonieta, que pode ser considerada a mais famosa de todas as rainhas da França, retratada com esmero pelos habilidosos pinceis de Élisabeth- Louise Vigée-Le Brun, uma das maiores artistas do século XVIII.

Estanislau I da Polônia e sua família, em 1709 (por Johan David Schwartz)

Todas essas mulheres, em maior ou menor grau, deixaram uma marca indelével na história daquele país. Perto delas, poucos prestariam atenção na polonesa Maria Leszczyńska, cuja imagem permanece obscurecida pela presença de Jeanne-Antoinette Poisson, Marquesa de Pompadour. A negligenciada rainha de Luís XV é uma figura pouco explorada pela historiografia francesa, exceto quando a enquadram no papel de esposa traída, que vivia à margem da sombra da amante do rei. Entretanto, Maria possui uma história muito interessante para contar: a trajetória de uma princesa que foi privada do seu direito e acabou se sentando no trono mais cobiçado da Europa. Segunda filha do rei Estanislau I da Polônia com Catarina Opalińska, Maria Karolina Zofia Felicja Leszczyńska nasceu em Trzebnica, na Polônia, em 23 de junho de 1703, dois anos antes de seu pai ter sido eleito rei pela Dieta, em 1705. O reinado de Estanislau, porém, teve vida curta, pois em 1709 ele foi deposto do trono em decorrência da derrota dos exércitos suecos naquele país e substituído por Augusto II, eleitor da Saxônia. Esse acontecimento marcou o início da desventura de Maria e sua família, que passou a depender dos favores de Carlos XII e da rainha viúva da Suécia, Hedwig Eleonora de Holstein-Gottorp.

Vivendo às custas da caridade da Coroa Sueca, Maria foi aos poucos se educando na língua e na cultura local, o que lhe permitiria, anos mais tarde, receber tranquilamente os embaixadores suecos na França com a carinhosa frase “välkommen, kära hjärta” (“bem-vindos, meus queridos”). Graças à influência da rainha viúva, ela e sua família foram incluídos entre os membros destacados da high society na cidade de Kristianstad. Em 1714, foram enviados para feudo de Zweibrücken, uma propriedade de Carlos XII no Sacro-Império. Mas, com a morte do rei, quatro anos depois, precisaram abandonar o local e, em seguida, foram acolhidos pelo regente da França, Felipe II, duque de Orleans, em Wissembourg, na província da Alsácia. Ali eles passaram a viver de forma bastante modesta para os padrões de uma família real, ou mesmo de uma família real deposta. Seus cômodos eram muito pequenos e mal tinham dinheiro para pagar o salário dos poucos criados que lhes serviam, uma vez que até mesmo as joias da rainha Catarina haviam sido penhoradas para pagar as despesas da manutenção da casa. Em decorrência dessa situação, o relacionamento do casal de soberanos se tornou bastante difícil, pois Catarina responsabilizava unicamente Estanislau pela sua falta de sorte. Segundo Therese Louis Latour, Maria era a única que dava apoio ao seu pai, graças à sua natureza compassiva e à sua capacidade de “sofrer em silêncio e nunca aborrecer os outros com seus problemas”.

Maria Leszczyńska aos 10 anos de idade, por Johan Starbus.

Como o tempo mostrará, a capacidade de Maria Leszczyńska seria posta à prova na mais controversa corte da Europa. Em 1725, Estanislau I e sua família já viviam há dezesseis anos no exílio, quando um pedido inusitado da Coroa Francesa chegou às suas mãos: o rei Luís XV, de apenas quinze anos, desejava desposar a jovem Maria, de vinte e um. O pedido deixou a todos os Leszczyński bastante espantados. Eles não pertenciam à grande aristocracia e sequer tinham um tostão para o dote da noiva, exceto um capital de desventuras acumuladas ao longo dos anos. Estanislau não poderia ficar mais contente com a notícia: “Minha filha, ajoelhemos e agradeçamos a Deus!”, disse o rei deposto diante de uma confusa Maria. “O que aconteceu, meu pai? Chamaram-no de volta ao trono?”, quis saber a jovem princesa, ao que Estanislau, sem conseguir conter a felicidade, respondeu: “O Céu nos concede muito mais: sois rainha da França”. Esse diálogo entre pai e filha diz muito sobre a pouca valorização que a Coroa da Polônia tinha perante as demais monarquias da Europa. Para Estanislau, era preferível sua filha se tornar rainha consorte de Luís XV do que retornarem ao antigo trono. Obediente aos pais e ansiosa por lhes trazer essa alegria, Maria se resignou com perfeita serenidade ao destino que a política dos homens havia lhe reservado.

Com efeito, Maria Leszczyńska não ignorava a difícil tarefa que havia caído nas suas mãos. Em Wissembourg tinha ouvido falar do caráter sombrio e fechado de Luís XV. Nascido em 15 de fevereiro de 1710, Luís perdeu seus pais, o duque da Borgonha e Maria Adelaide de Savóia quando ele tinha apenas dois anos. “Tive a desgraça de não saber o que significa perder uma mãe”, disse ele anos mais tarde. Do seu bisavô, Luís XIV, guardou poucas lembranças, além das palavras que o Rei Sol lhe dirigira quando ele ainda era uma criança: “Meu pequeno, sereis o maior rei do mundo”. Aos cinco anos de idade, o jovem Luís herdou a Coroa da França, embora o governo ficasse nas mãos de seu primo, o duque de Orleans. Desde então, o jovem foi submetido a uma intensa rotina de estudos preparatórios para alguém na sua posição. Era muito adulado pelos cortesãos, que o tempo todo cultivavam nele a consciência de sua superioridade e lhe colocavam para assumir cerimônias públicas. No palco da corte de Versalhes, o principal ator era o rei. Luís precisava aprender a dominar todas as regras desse mundo de representações. Quando atingiu os onze anos, o regente deu início à sua educação política, demonstrando-lhe como funcionava a burocracia do Estado e o que se esperava dele como soberano. Seu treinamento, porém, foi interrompido quando, em 1723, o duque de Orleans faleceu.

O jovem rei Luis XV, por Charles Sevin De La Pénaye (1721).

Após a morte do primo, Luís XV decidiu tomar nas mãos as rédeas do governo, recusando se servir de um primeiro ministro. Apesar de sua inteligência, não se sentia confortável no exercício do poder e tinha muitos problemas em conciliar suas funções públicas com o espaço privado. Sua antiga governanta, Madame de Ventadour, certa vez dissera que Luís “sentia-se aliviado quando não tinha de ser rei”. O estudo de geografia, ciências e medicina, juntamente com seu esporte favorito, a caça, constituía para ele uma verdadeira válvula de escape de suas ocupações. “Sua lucidez, que o levava a considerar, antes mesmo das vantagens, os riscos e as incógnitas inerentes a toda ação política, somava-se a uma insegurança congênita dotada de um efeito paralisante”, ressaltou a biógrafa Benedetta Craveri (2007, p. 269). Não obstante, Luís era um ardoroso defensor do absolutismo monárquico e aos preceitos do avô, Luís XIV, a quem o jovem rei prestava um autêntico culto. “Fugitivo de si mesmo, Luís também fugia dos outros. À parte as cerimônias oficias, em que, protegido pela etiqueta, cumpria escrupulosa e competentemente todas as suas obrigações, o soberano evitava tanto quanto possível expor-se ao público” (CRAVERI, 2007, p. 269). Lidar com pessoas que não conhecia e ter de responder às várias sulipas e pedidos deixavam o jovem rei bastante aborrecido. Era com esse soberano tímido e reservado que Maria Leszczyńska iria se casar.

Para além de um marido retraído e pouco afável, que tinha pouquíssima experiência com as mulheres, a futura rainha teria de aprender a lidar com todo um universo de regras de etiqueta e protocolos que moviam a corte de Versalhes. Fazia 42 anos que a França esperava por uma nova soberana, desde a morte de Maria Teresa da Áustria, e a escolhida não agradou nenhum pouco a antiga nobreza:

Embora movida pelo máximo zelo e dotada de notável dignidade natural e de um senso instintivo de representação, [Maria Leszczyńska] se via diante da difícil tarefa que a aguardava sem ter a mais remota ideia da infinita gama de nuances de que era tecida a vida da corte e dos conflitos escondidos que se agitavam sob sua elegante superfície. Teria sido necessário que alguém a aconselhasse, mas seu marido ainda era jovem e inexperiente demais para fazê-lo, e não havia nenhuma rainha-mãe nem um grande expoente da família real em condições de guiar seus primeiros passos (CRAVERI, 2007, p. 265).

Apesar de possuir feições agradáveis e dotada de uma natureza gentil e religiosidade profunda, Maria precisaria de muito mais do que isso para sobreviver em Versalhes. “Esse casamento não agrada a ninguém. Todos estão curiosos para ver que acolhida lhe reservará o rei, que é frio, ainda um menino e não mostra nenhum interesse pelas mulheres, tanto mais que ela não é bela, nem mesmo graciosa, e é muito tímida”, argumentou o advogado parisiense Edmond-Jean-François Babier, verbalizando assim o descontentamento nacional com a escolha do rei. “É de se preocupar se o casamento irá ou não se consumar”, completou Babier.

Maria Leszczyńska como rainha da França (atribuído a lexis Simon Belle).

De fato, para contrair aquele matrimônio, Luís tivera de renegar sua noiva de sete anos, a infanta espanhola Mariana Vitória, para se casar com uma princesa capaz de engravidar. Naquele momento, a única disponível era Maria Leszczyńska, que fora recusada anteriormente como candidata por conta do seu baixo nascimento. Foi preciso então vencer o preconceito e enviar um pedido formal a Estanislau I, requisitando a mão da jovem. Por sua vez, Maria recebeu com entusiasmo o pedido, embora não os seus futuros súditos. O casamento por procuração ocorreu em Estrasburgo. A partir daí, ela passaria a assinar suas cartas e documentos com a variação francesa de seu nome, Marie. Ela e seu marido se encontraram pela primeira vez em 4 de setembro de 1725, próximo ao palácio de Fontainebleu, e, ao contrário das expectativas gerais, o jovem rei a recebeu da forma mais gentil possível. Foi dito que, ao descer da carruagem, a rainha quis se ajoelhar, mas o rei não permitiu. Em vez disso, a beijou energicamente dos dois lados da face. Os dois passaram horas conversando dentro do veículo até o palácio, onde a cerimônia de casamento teria lugar, no dia seguinte. A união foi consumada logo após o banquete. Dentro de um espaço de seis meses, conforme ressaltou um incrédulo Babier, Maria Maria Leszczyńska “passou da mais triste e mais desventurada condição ao primeiro trono do mundo”.

Referências Bibliográficas:

ALGRANT, Christine Pevitt. Madame de Pompadour: senhora da França. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.

CRAVERI, Benedetta. Maria Leszczyńska: a rainha polonesa. In: Amantes e rainhas: o poder das mulheres. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 262-274.

FRASER, Antonia. O amor e Luís XIV: as mulheres na vida do Rei Sol. Tradução de Heloísa Mourão. Rio de Janeiro: Record, 2009.

2 comentários sobre “A esposa relegada: Maria Leszczyńska, a rainha polonesa da França – Parte I

  1. Os primórdios da organização civil social, mundo afora, apontam superioridade dinástica a clãs, onde membros, sucessores na linhagem, e há muitos casos, alegavam suas origens em ‘deuses’. Falácia, desde sempre, e em todos os possíveis casos registrados.
    Perante Deus, onipotente, onisciente (cognoscível e incognoscível)e onipresente, somos precisamente iguais.

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