Por: Renato Drummond Tapioca Neto
A Idade Moderna trouxe consigo não só a formação do Estado Absolutista e a difusão de novas ideias advindas do pensamento renascentista e iluminista, como também a entrada cada vez maior das mulheres na esfera política, campo no qual sua atuação costumava ser bastante limitada. No século XVI, reinos como o da Espanha, Portugal, França, Inglaterra, Escócia e Países Baixos (atual Holanda) observaram a ascensão do que se convencionou chamar recentemente de “monarquia de gênero”, com um número crescente de princesas e rainhas governando, ora como regentes (Portugal, França e Países Baixos), ora em seu próprio nome (no caso dos outros países supracitados). Embora a disseminação de certas teorias que eram contrárias ao governo feminino permanecessem constantes no decorrer dos séculos seguintes, isso não impediu que as mulheres continuassem a ascender a uma posição considerada essencialmente masculina. Entre os anos de 1725 e 1796, por exemplo, a Rússia foi palco não de um, mas de quatro reinados, ocorridos quase em ordem sucessória, cujas figuras de destaque foram mulheres. Uma sequência de golpes de Estado pôs no trono russo personalidades como Catarina I, Ana I, Isabel I e Catarina II, responsáveis, em grande parte, pela modernização do país e representantes por excelência da monarquia de gênero naquela parte do mundo.

Catarina I da Rússia
Contudo, para esclarecer as circunstâncias que levaram essas quatro mulheres à administração da Máquina do Estado, precisamos retroceder aos anos finais do governo do czar Pedro I (chamado de “o Grande”) e a reformulação feita por este na lei de sucessão ao trono. Em 5 de fevereiro de 1722, o czar suspendeu o princípio de primogenitura masculina, adotado até então, e estabeleceu que o monarca tinha o direito de escolher seu herdeiro, independentemente de este ser homem ou mulher, filho de seu corpo ou não. Dois anos depois, Pedro I nomeou sua esposa, Catarina, como co-regente da Rússia. Em 1725, quando o imperador morreu sem, contudo, escolher um sucessor, a candidatura de Catarina ao trono foi apoiada pelos regimentos da guarda Semenovsky e Preobrazhensky, além de setores importantes da aristocracia, que viam na czarina a garantia da manutenção de seu poder. Imediatamente, o Santo Sínodo, o Senado e os Altos Oficiais a reconheceram como governante de Todas as Rússias. Com isso, Catarina inaugurava uma nova página na história do país, criando um precedente para que outras mulheres, no curso do tempo, assumissem sua posição e dessem continuidade às reformas de Pedro I na modernização do vasto império russo.
Nascida Marta Skowronska, provavelmente em 15 de abril de 1684, Catarina era filha de pais camponeses, de nacionalidade lituana ou escandinava. Semianalfabeta, se tornou órfã muito cedo e foi criada sob os cuidados de parentes. Viúva e trabalhando como lavadeira para sobreviver, Marta chamou a atenção do imperador em 1705 na casa do conde Aleksandr Menshikov. Em pouco tempo, se tornaram amantes e ela se converteu à fé ortodoxa, mudando de nome para Catarina. Permaneceram numa relação de concubinato até o ano de 1712, quando Pedro a tomou Catarina por esposa, legitimando em seguida as duas filhas que com ela tivera, Ana e Isabel. O fato de ter sido nomeada co-regente pelo seu marido nos induz a observar a quantidade de confiança que Pedro depositava na sua esposa. Catarina sabia muito de seus projetos e aos poucos foi se familiarizando com a burocracia estatal. Durante os 16 meses em que reinou depois da morte de Pedro, ela demonstrou muita prudência, dando continuidade a algumas das reformas do czar, embora o poder de fato residisse nas mãos do seu antigo amante, o conde Menshikov. Ela faleceu aos 43 anos de idade, em 1727, deixando o trono para o neto de Pedro I, Pedro II, fruto de seu primeiro casamento com Eudóxia Lopukhina.

Ana I da Rússia
Com efeito, o reinando de Pedro II teve uma temporalidade tão curta quanto o de sua antecessora. De saúde debilitada, tinha apenas 12 anos quando ascendeu ao trono, falecendo menos de dois anos depois, em janeiro de 1730. Sua morte, porém, colocou fim à linhagem masculina direta dos Romanov, desencadeando uma crise dinástica que se estenderia até o final do século. Foi sucedido por sua prima, Ana, filha do czar Ivan V, irmão de Pedro I. Embora nascida no seio da realeza (em 7 de fevereiro de 1693), Ana recebeu uma educação bastante modesta para uma grã-duquesa. Sabia escrever em francês e alemão, mas nunca avançou além dos rudimentos da literatura. Quando seu primo, Pedro II, morreu sem nomear um sucessor, o Conselho Privado tinha nas mãos a difícil tarefa de escolher um governante para o país. As duas candidatas mais próximas da coroa, que se encontravam disponíveis, eram Ana e Isabel, a filha adolescente de Pedro I. Optando por Ana, os conselheiros acreditavam poder facilmente controla-la. Como condição para receber a coroa, a nova czarina foi forçada a subscrever nove artigos, que limitavam sua esfera de atuação política. Situação essa que não perdurou por muito tempo, pois, em 8 de março, um golpe de estado, encabeçado pelos amigos de Ana, destituíram os membros do Conselho Privado e os poderes da imperatriz lhe foram restaurados.
O início do governo de Ana I foi marcado por medidas autoritárias, que visavam castigar todos aqueles que se demonstrassem contrários à sua pessoa. Alguns historiadores costumam enxergar o reinado dela como um período dominado pela política dos alemães da região do Báltico. Outros pesquisadores, porém, defendem a ideia de que personalidades como Biron, Münnich, Osterman, Levenvolde e outros, ocupando altos cargos na corte, lutaram para levar a imperatriz a demonstrar maior inclinação pelo seu povo. De todas czarinas do século XVIII, Ana era a única que tinha puro sangue russo. Apesar de sua impopularidade, ela fez o máximo possível para dar continuidade às políticas interna e externa do seu tio, Pedro I. Em 1732, ela transferiu a capital da Rússia novamente para Moscou e criou novos regimentos militares, em que pudesse confiar. Em 1736, ela entrou em guerra com o império Otomano, marcando assim o início de uma série de disputas que só terminariam no reinando de Catarina II, com a vitória da Rússia. Pela primavera de 1740, sua saúde começou a se deteriorar. Em vista da morte iminente, Ana nomeou seu sobrinho de apenas um ano, Ivan, como herdeiro, em detrimento de Isabel, que tinha uma reivindicação mais forte. A czarina morreu aos 47 anos, deixando um bebê no trono e a mãe deste, Ana Leopoldovna, como regente.

Isabel I da Rússia
Cansada de esperar e de ver seu país governado pelos ministros estrangeiros favorecidos por Ana Leopoldovna, Isabel resolveu agir. À meia noite do dia 25 de novembro, ela partiu para o quartel da Guarda Preobrazhensky. Lá chegando, falou: “vocês sabem de quem eu sou filha. Sigam-me!”. Rumando para o Palácio de Inverno, e, sem qualquer resistência da guarda, Isabel caminhou até o quarto de Ana para informa-la de que o reinado de seu filho, Ivan VI, havia chegado ao fim. Um de seus primeiros atos como imperatriz foi derramar promoções, títulos de nobreza e outras recompensas para aqueles que a haviam ajudado a galgar o trono. Contudo, seu principal problema precisava ser resolvido com urgência: escolher um sucessor. Como nunca se casou ou conseguira engravidar de algum de seus múltiplos amantes, Isabel nomeou o filho de sua irmã, Ana, como herdeiro. A criança de 14 anos, batizada em homenagem ao avô, Pedro, era duque de Holstein. O jovem tivera uma infância muito conturbada pela rígida educação luterana que recebeu de seus tutores, de modo que passou a nutrir uma aversão pela ortodoxia e por tudo o que era russo. Como era seu parente mais próximo e filho da irmã de quem tanto gostava, Isabel se viu forçada a aceita-lo como herdeiro. Tornou-se imprescindível, então, casa-lo com alguma princesa, na expectativa de que a linhagem dos Romanov voltasse a se ramificar.
Entre tantas garotas europeias nascidas em berço esplêndido, a escolha de Isabel I recaiu sobre Sofia Frederica Augusta de Anhalt-Zerbst, um principado alemão de menor importância. Após se converter à fé ortodoxa ela recebeu o nome de Catarina. A história, porém, se lembraria dela coma “a Grande”. A visão da czarina causou grande impacto na jovem, como ela se recordou anos depois nas suas Memórias. Alta, robusta, loira e de intensos olhos azuis, Isabel passou para Catarina uma imagem de poder e soberania que exerceriam influência sobre ela por muitos anos. Em várias ocasiões, ela deixava seus ministros completamente sem paciência. Resolvia os assuntos de Estado quando e onde queria. “Vívida e feliz, em amor consigo mesma”, assim a descreveu o historiador russo Vasily Klyuchevsky. Isabel, assim como suas antecessoras Ana Ivanovna, e sua mãe, Catarina I, deu continuidade ao programa de reformas de Pedro I, porém, com uma inclinação maior para a cultura. Fundou teatros, Companhias de Ballet, construiu e reformou palácios e autorizou a publicação de muitas obras da literatura ocidental. Vaidosa, possuía um guarda-roupas com mais de 15 mil vestidos e não tolerava a presença de uma mulher mais elegante do que ela. Ao morrer, em 5 de janeiro de 1762, deixava o país nas mãos de um jovem extremamente arrogante e despreparado para governar.

Catarina II da Rússia
O reinado do czar Pedro III, porém, estava destinado a ter vida curta, assim como o de Ivan VI. Não era um monarca querido, nem pelo corpo diplomático de ministros, nem pelo povo, que nunca fez questão de conquistar. Suas políticas teriam levado a Rússia a tornar-se um estado satélite da Prússia, não fosse a realização de outro golpe de estado, protagonizado por ninguém menos que sua esposa, Catarina. Ela não era uma Romanov de sangue, mais possuía toda o carisma e inteligência que faltavam a seu marido. Tendo consumido vorazmente as obras de escritores iluministas, o que lhe valeu o posteriormente o título de “déspota esclarecida”, e observado de perto a postura de Isabel I como monarca, Catarina, apoiada pela Guarda Preobrazhensky e pelos irmãos Orlof, tomou a coroa das mãos de seu marido. Em detrimento do seu filho com Pedro, Paulo, foi proclamada Imperatriz de Todas as Rússias. Algumas teorias, baseadas em declarações póstumas da própria Catarina, afirmam que a criança não era filha do czar deposto, mas de um dos amantes da imperatriz, Sergei Saltykov. Sendo verdade, a linhagem de sangue dos Romanov se encerrou com a morte de Pedro III, assassinado em 17 de julho de 1762, sob as mãos dos irmãos Orlof. O envolvimento de Catarina nesse atentado até hoje não foi comprovado, embora muitos de seus contemporâneos, como a imperatriz Maria Teresa da Áustria, a acusassem de regicídio.
O governo de Catarina II pode ser considerado um dos mais prósperos, não só da história Russa, como também de toda a Europa. Como disse um dos seus principais biógrafos, Robert K. Massie, “foi uma figura majestática na era da monarquia. […] Na história da Rússia, ela e Pedro, o Grande, se destacam pela capacidade e pelas realizações, em comparação com os outros 14 czares e imperatrizes nos trezentos anos da dinastia Romanov” (2012, p. 620). Catarina II enxergava a si própria como a legítima herdeira do legado de Pedro I, dando prosseguimento ao processo de ocidentalização do país. Ela importou para o império a filosofia moral, política e jurídica da Europa, sua literatura, arte e arquitetura, suas instituições de ensino e a medicina. Nunca gostou de títulos extravagantes, nem mesmo o de “a Grande”, que começaram a lhe atribuir ainda em seu tempo de vida. “Meu nome é Catarina II”, disse ela em resposta à nomenclatura onerosa. Após sua morte, porém, os russos passariam a se referir a ela apenas como “Catarina, a Grande”, em reconhecimento pelos 34 anos em que se dedicou àquele país. Com ela, o século das czarinas chegou ao fim. Um mudança na lei de sucessão, feita por seu filho, Paulo I, restabeleceu a princípio de primogenitura masculina, pondo fim aos sucessivos golpes de estado que haviam alçado ao poder essas quatro mulheres, que contribuíram para disseminar a potencialidade do governo feminino em todas as partes do mundo.
Referências Bibliográficas:
FRASER, Antonia. The Warrior Queens: Boadicea’s Chariot. UK: Arrow Books, 1999.
GRISTWOOD, Sarah. Game of Queens: the women who made sixteenth-century Europe. Nova York: Basic Books, 2016.
MASSIE, Robert K. Catarina, a Grande: retrato de uma mulher. Tradução de Ângela Lobo de Andrade. – Rio de Janeiro: Rocco, 2012.
MONTEFIORE, Simon Sebag. Os Romanov: 1613-1918. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
Muito bom ver artigos fidedignos à história, principalmente envolvendo Catarina II. Durante a pesquisa sobre a Imperatriz, o que mais vimos foram destaques à sua vida privada em detrimento à trajetória exemplar de sua vida e governo. Parabéns pelo conteúdo!
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