“Eu me despeço deste mundo e de vocês”: as últimas palavras de Ana Bolena

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

Na madrugada do dia 18 de maio de 1536, Ana Bolena, Marquês de Pembroke, outrora rainha da Inglaterra, recebia o Santo Sacramento. Eram duas da manhã e ela começava a se preparar para sua execução, marcada para mais tarde naquele dia. Ana insistiu para que William Kingston, condestável da Torre de Londres, estivesse presente quando ela fizesse sua última confissão, para testemunhar quando ela afirmasse ser inocente das acusações pelas quais fora condenada à morte. Mesmo seu antigo inimigo, o embaixador imperial Eustace Chapuys, ficou impressionado com a atitude da “concubina” (como costumava se referir a Ana em seus despachos) e forçado a admitir que, tanto antes quanto depois de receber o Sacramento, Ana ressaltou para aqueles que a culpavam “sob perigo de danação da sua alma, que ela não tinha se comportado tão mal quanto o rei seu marido estava convencido”. De acordo com Susan Bordo, “no século XVI, falar qualquer outra coisa além da verdade num momento como esse seria um convite para a total condenação divina”. Sendo assim, “Ana não tinha nada a ganhar com a perda de sua salvação por causa de uma mentira” (2013, p. 112). Por agora, todos aqueles que estavam em contato próximo com ela deveriam ser convencidos de sua inocência, independentemente das convicções políticas que possuíssem.

Ana Bolena, presa na Torre de Londres, por Edward Cibot (1835).

Ana Bolena, presa na Torre de Londres, por Edward Cibot (1835).

Quando o dia clareou, Ana Bolena acreditava sua execução ocorreria antes do meio-dia. Mas acabou sendo adiada mais de uma vez, o que certamente foi uma provação para ela. Primeiramente, avisaram que ela deveria esperar até que a Torre estivesse evacuada de certos observadores simpáticos. Depois, porque o carrasco, um espadachim francês que fora chamado de Calais especialmente para essa ocasião, se atrasou. Ana começou então a ficar impaciente, dizendo que gostaria de já “estar morta e passado sua agonia”. Kingston, que estava observando a prisioneira, tentou reconforta-la, dizendo que a execução seria rápida e que “não haveria dor”. A condenada, por sua vez, retrucou dizendo que “ouvi dizer que o carrasco era muito bom, e eu tenho um pescoço pequeno”. Então, de acordo com Kingston, “ela colocou sua mão ao redor [do seu pescoço] e começou a rir”. Mesmo em momentos como esse, Ana Bolena não abandonava seu humor negro, permitindo-se fazer piada inclusive do próprio destino. Diante disso, o condestável da Torre relatou que ela encontrava “muita alegria e prazer na morte”. À medida que o momento da execução era postergado, a vítima ficava mais perturbada. Conforme Kingston relatou mais tarde, “ela acreditava-se preparada para morrer, e temia que a demora enfraquecesse a sua resolução” (BORDO, 2013, p. 112-13).

Como o carrasco não chegou em tempo, a execução foi transferida para o dia seguinte. De acordo com Marie Louise Bruce (1972, p. 330), Cromwell, o secretário do rei e artífice da queda de Ana Bolena, temia que ela, em seu último discurso, declarasse sua inocência para um grande público de ouvintes simpáticos à sua causa. Nas palavras da biógrafa:

Cromwell esperava que se a execução fosse adiada para uma data e horário indefinidos, o povo ficaria impaciente e voltaria para casa. Ele particularmente não desejava que estrangeiros assistissem à morte de Ana. Sob ordens de Cromwell, Kingston forçou aqueles que já estavam sentados esperando no pátio a irem embora. Relatórios da execução de Ana, nada lisonjeiros ao rei, não deveriam cruzar o mar rumo à Europa (BRUCE, 1972, p. 130).

A execução de um nobre era usualmente um evento público, mas no caso de Ana Bolena se queria evitar o máximo possível de espectadores. Ela poderia ser uma rainha impopular entre os súditos, mas não era segredo para uma boa parte deles que as acusações feitas contra ela provavelmente haviam sido forjadas. Ana passou sua última noite em companhia das quatro damas encarregadas de lhe vigiar, dividida entre a religiosidade e o riso. “As pessoas”, ela disse, “não encontrarão dificuldade em achar um apelido para mim, eu deverei ser a rainha Ana sem-cabeça” (BRUCE, 1972, p. 331).

Recriação do vestido que Ana Bolena usou na sua execução. Figura exposta no Museum of Ventura.

Recriação do vestido que Ana Bolena usou na sua execução. Figura exposta no Museum of Ventura.

Na manhã de sexta-feira, dia 19, a quantidade de pessoas na Torre de Londres esperando para ver a primeira vez que uma rainha inglesa era decapitada era relativamente pequena, se comparada ao dia anterior. Estavam presentes Thomas Cromwell, encarregado de supervisionar a execução, o Lorde Chanceler, Audley, juntamente com o arauto Wriothesley. Os duques de Suffolk e Norfolk, tio de Ana, também estavam lá, assim como o duque de Richmond, filho bastardo de Henrique VIII com Bessie Blount. Ainda haviam o prefeito de Londres e seus xerifes e, depois deles, os habitantes da Torre. O espanhol Antonio de Guaras, que possuía amigos vivendo dentro do recinto, conseguiu entrar na noite anterior, deixando para a posteridade um testemunho em primeira mão da morte de Ana Bolena, apesar dos inúmeros esforços de Cromwell para que nenhum estrangeiro assistisse à execução. No seu Spanish Cronicle, De Guaras disse que Ana “mostrou um ‘espírito demoníaco’ enquanto a via caminhar, seguida de quatro jovens damas, cerca de 50 metros, ligeiramente morro acima, dos aposentos do auxiliar do guardião até o gramado”, parecendo “alegre, como se não fosse morrer” (FRASER, 2010, p. 341). Para Antonia Fraser, porém, é possível que aquela aparente animação se devesse tanto à indiferença quanto a recepção positiva do seu destino, uma vez que ela estaria finalmente livre da sua agonia.

Escoltada por William Kingston, Ana Bolena se dirigiu ao patíbulo, onde o carrasco já lhe esperava. Usando um vestido de damasco escuro, manto de arminho e capelo inglês, ela subiu as escadas e dirigiu um discurso ao público, conforme extraído do The triumphant reign of Henry de Eighth, de Edward Hall, contemporâneo do evento:

Bom povo cristão, eu não vim aqui para passar sermão; eu vim para morrer. De acordo com a lei e pela lei fui julgada para morrer, e, portanto, eu não direi nada contra isso. Não vim aqui para acusar qualquer homem, nem para falar daqueles que me acusaram e condenaram à morte, mas eu rezo a Deus que salve o rei e mantenha-o por muito tempo reinando sobre vocês, pois príncipe mais misericordioso jamais existiu, e para mim ele sempre foi bom, gentil, e senhor soberano. E se alguma pessoa intervir em minha causa, eu peço a ele [o rei] que o julgue melhor. E assim eu me despeço do mundo e de vocês, e cordialmente peço-lhes que rezem por mim (apud IVES, 2010, p. 358).

Em seu último discurso, Ana Bolena demonstrou a submissão que a coroa esperava dela. Fica então a pergunta: “como ela pode não protestar sua inocência?”. Na opinião de Eric Ives, a convenção demandava isso, assim como a religião. Caso contrário, quem sofreria com as consequências seria a pequena Elizabeth, única filha da rainha que ainda não havia completado três anos quando sua mãe morreu. Por outro lado, a vítima não fez uma admissão pública dos seus pecados ou qualquer confissão de que havia lesado o rei. “Ana falou firmemente ‘com um sorriso agradável’, e logo as notícias de que ela morreu ‘corajosamente’ percorreram Londres” (IVES, 2010, p. 358).

Existem, porém, outras versões para as últimas palavras de Ana Bolena, além destas apresentas por Edward Hall. A essência do discurso é praticamente a mesma, porém alguns detalhes, a depender da fonte, podem fazer toda a diferença. Com efeito, o imperialista Antonio de Guaras não era o único estrangeiro presente na execução da rainha. Havia também um português, que numa carta escrita para um amigo de Lisboa, disse que as últimas palavras de Ana foram as seguintes:

Bons amigos, eu não vim aqui para me desculpar ou me justificar, embora saiba muito bem que qualquer coisa que eu possa dizer em minha defesa não vai me ajudar, e que pelo mesmo eu não tenho qualquer esperança de vida. Eu vim aqui apenas para morrer, e assim me submeter humildemente à vontade do rei, meu senhor. E se em minha vida eu ofendi Sua Graça, o rei, certamente com minha morte eu agora me expio. E eu não culpo meus juízes, nem de outra maneira qualquer pessoa, nem nada além da cruel lei terrena pela qual eu morro. Apesar dos meus defeitos, quaisquer que sejam, eu suplico a vocês, bons amigos, que rezem pela vida do rei, meu senhor soberano e de vocês, que é um dos melhores príncipes na face da Terra, e que sempre me tratou tão bem quanto poderia. Portanto, eu me submeto à morte de boa vontade, humildemente pedindo perdão ao mundo (apud WEIR, 2010, p. 282).

A execução de Ana Bolena (ilustraçã do Observer of Sunday).

A execução de Ana Bolena (ilustração do Observer of Sunday).

O tom dessa versão do discurso difere em algumas partes da de Edward Hall. Aqui, Ana Bolena assume publicamente que possui falhas, quaisquer que fossem. Apesar de não fazer acusações contra seus juízes ou qualquer outra pessoa, ela condena a lei que a julgou a morrer, o que na prática não deixava de ser uma crítica ao rei e ao seu governo. Tanto nesse como no outro discurso, Ana faz um apelo ao povo para que reze pela alma do rei, como de costume em tais ocasiões. Mostrando-se humilde à vontade do soberano, a vítima esperava livrar sua família de qualquer retaliação por parte do monarca. Ao fazer uma crítica à lei terrena que a condenou à morte, a vítima poderia estar colocando em perigo a vida de sua filha. Esse aspecto, por sua vez, põe em questão a completa fidelidade dessa versão discurso, apesar do autor da fonte ser uma testemunha considerada imparcial pela maioria dos historiadores. Por outro lado, Hall é claramente favorável a Henrique em sua obra, de modo que poderia muito bem alterar as palavras do último discurso de Ana Bolena para enfatizar a obediência dela à vontade do rei. O autor da Spanish Cronicle, porém, apresentou uma terceira versão:

Não pense, bom povo, que eu sinto por morrer, ou que eu fiz qualquer coisa que mereça a morte. Minha culpa foi meu grande orgulho, e meu grande crime foi convencer o rei a abandonar a minha senhora, rainha Catarina, por causa de mim, e eu peço que Deus me perdoe por isso. Eu digo a todos vocês que tudo daquilo de que sou acusada é falso, e a principal razão da minha morte é Jane Seymour, assim como eu era a causa da doença que vitimou minha senhora (apud WEIR, 2010, p. 283).

O conjunto dessas palavras, entretanto, seriam mais que suficiente para que o rei derramasse sua cólera sobre todos aqueles que estivessem próximo aos Bolena, o que não aconteceu. Além disso, parece mais que improvável que Ana, em seu último discurso, assumisse qualquer culpa no divórcio de Henrique VIII e Catarina de Aragão ou mencionasse Jane Seymour como a responsável por sua morte. Antonio de Guaras era claramente simpático à causa da princesa Maria, filha de Catarina, e um dos muitos que se referiam a Ana como “concubina”. Sem dúvida essas palavras, caso fossem verdadeiras, teriam provocado verdadeiro deleite na corte espanhola.

Memorial na Torre de Londres que marca o suposto lugar de execução de Ana Bolena.

Memorial na Torre de Londres que marca o suposto lugar de execução de Ana Bolena.

Embora tendo possivelmente omitido algumas das palavras finais da rainha, a versão de Edward Hall parece ser a mais aceitável entre as outras, incluindo a portuguesa. Após dizer suas últimas palavras, um a um os adornos do vestuário de Ana Bolena foram retirados por suas damas, que foram presenteadas por sua senhora, deixando o pescoço dela livre para a espada. A vítima então pagou ao carrasco com um saco de moedas de ouro e o perdoou pelo que estava prestes a fazer. Por fim, seus olhos foram vendados e então ela se ajoelhou, murmurando uma pequena oração: “a Jesus entrego minha alma”. De repente, o executor disse ao seu assistente “traga-me a espada”. A intenção era distrair a vítima, que moveria sua cabeça em outra direção, oferecendo assim um ângulo perfeito para o golpe. Os lábios de Ana ainda se moviam quando a lâmina fez seu serviço. A execução foi tão rápida que, numa piscar de olhos, a cabeça e o corpo de Ana Bolena estavam separados. O carrasco então ergueu a cabeça da vítima para os poucos espectadores daquele evento. Não foi providenciado caixão ou qualquer sepulcro digno para ela. A primeira rainha decapitada da Inglaterra foi colocada dentro de uma caixa de flechas e enterrada sob o piso da capela de St. Peter ad Vincula, na Torre. Séculos mais tarde, a história iria redimi-la, devolvendo-lhe o título de rainha e consagrando-a com uma das mulheres mais corajosas que o mundo já viu.

Referências Bibliográficas:

BORDO, Susan. The creation of Anne Boleyn: a new look at England’s most notorious queen. – New York: Houghton Mifflin Harcourt, 2013.

BRUCE, Marie Louise. Anne Boleyn: a biography. – New York: Coward, McCann & Geoghegan, 1972.

FRASER, Antonia. As Seis Mulheres de Henrique VIII. Tradução de Luiz Carlos Do Nascimento E Silva. 2ª ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010.

IVES, Eric W. The life and death of Anne Boleyn: ‘the most happy’. – United Kingdom: Blackwell Publishing, 2010.

WEIR, Alison. The lady in the tower: the fall of Anne Boleyn. – New York: Ballantine Books, 2010.

4 comentários sobre ““Eu me despeço deste mundo e de vocês”: as últimas palavras de Ana Bolena

  1. É realmente tocante ler o que aconteceu nesse fatídico dia com a Ana Bolena, acredito que seja uma das maiores injustiças da histórias (mas a história é escrita muitas vezes sob atos injustos).
    Lindo monumento que foi erguido para ela era Vitoriana ❤
    Parabéns Renato por mais um texto brilhante!

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  2. Ha 45 anos que leio e estudo sobre a vida de Ana Bolena, tive a alegria de ir à Torre, ver o suposto lugar de sua execução e seu nome escrito no chão do altar da capela de Sao Pedro in Vincoli. A ascensao e queda de Ana Bolena encaixam-se perfeitamente na teoria de Rene Girard sobre “o bode expiatorio”. Ana foi grande na sua subida e na sua queda e permanece como uma das mulheres mais afascinantes da Historia. Fato esta que a sua figura foi um tormento para Henrique VIII na hora da morte.

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